terça-feira, 19 de outubro de 2021

Dezoito mais um

 


Para a minha avó, Maria Graciosa
6 de Outubro 1930 - 19 de Outubro 2020



“Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração... É preciso que haja um ritual.”

(in “O Principezinho”, Antoine de Saint-Exupéry)

 

 

 

Ligava-te às dezoito horas. Todos dias. E, se te ligava às dezoito mais um, logo me dizias que já estavas preocupada. Desculpa.

 

 

As tuas mãos enrugadas pousavam-se sobre o colo, em cima do avental de xadrez azul ou verde, na antecipação da hora. Entre elas, o telemóvel. Não eras mulher de tecnologias. Mas importavas-te com isto. Com saberes que o telemóvel tocava. E que, quando tocasse, a voz de alguém estaria do outro lado.

 

As vozes que te chegavam, nesse dispositivo estranho e dantesco, eram quase sempre vozes que te amavam. Mas não as vias como vozes que te amavam. Vias como pedaços de céu, feitos para tu amares e cuidares e honrares, como se o próprio deus-filho, descido da cruz, tivesse recorrido aos meandros tecnológicos, para te falar na voz de seu pai.

 

Expressões tuas, de voz tão alegre quanto alegre uma voz pode ser, ficaram-me gravadas na alma, de uma forma tão intensa que, nem que a doença do esquecimento me assome, continuarei com a sombra cintilante desse trejeito na mente. Atenderes o telemóvel. E dizeres “Oh [e o nome de alguém]”. Caberem todas as coisas nesse nome que dizias. Fosse de quem fosse. E ser, ocasionalmente, alguém que perdeste por culpa minha... e doer-me a mágoa por detrás da tua voz, tão cheia de saudades.

 

Vi-te muitas vezes de mãos pousadas no regaço, esperando o toque do telemóvel. A minha voz era a que chegava às dezoito horas. Porque um dia, em minha casa, me apercebi que o comprimido das seis da tarde era sempre esquecido, e eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, comprimido a comprimido. Fosse como fosse. Então, estivesse a fazer o que estivesse. Fosse reunião, workshop, entrevista ou banho, eu largava tudo e ia. Às dezoito horas. Ligar-te.

 

Tu, que sempre esquecias o comprimido, nunca te esquecias da chamada. Atendias com uma rapidez clássica, no primeiro toque. E dizias: estava mesmo à espera da tua chamada. Fazias-me questionar as razões pelas quais te esquecias da hora, apenas para o comprimido. Mas, na realidade, o comprimido estava tomado... e só querias aquele minuto ou dois... ou hora ou duas... de me teres do outro lado da linha.

 

Conhecias-me pela voz. Estás triste. E eu deixava cair a lágrima silenciosa, alegrando a voz com todas as mutações teatrais da vida. Não, avó, estou bem. Estou só cansada. E um pequeno silêncio. E a tua. Não, eu conheço-te. Tu estás triste.

 

Devia ter estado sempre feliz, avó. Porque estava a falar contigo. E porque tinhas tido as mãos no regaço, segurando o telemóvel, à espera das dezoito horas.

 

 Ligava-te às dezoito horas. Todos dias. E, se te ligava às dezoito mais um, logo me dizias que já estavas preocupada. Desculpa. Fazia por ligar um pouco antes, quando dava. Nem sempre deu.

 

Eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, comprimido a comprimido. Fosse com a chamada corrente das dezoito horas ou com a das dezoito mais um, que já te preocupava. Eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, para haver sempre a tua voz do outro lado da chamada, cuidando das minhas tristezas e alegrias com o mesmo amor.

 

Talvez devesse ter-me apercebido que não era o comprimido mas a chamada que te agarrava à vida. E talvez devesse ter ligado mais vezes às dezoito menos um, para termos mais um minuto para falar.

 

Todos os dias, às dezoito horas, eu ainda olho para o telemóvel. Gesto inadvertido, de relógio biológico incompreensível, de sentido de tarefa, de vontade de ouvir. Esqueço-me que a dezoito (mais um), o dia anoiteceu triste e o planeta te perdeu a voz.

 

 

Ainda tenho o teu contacto nos meus favoritos.

 

 

Se te ligasse e atendesses, talvez dissesses. Estás triste. Conhecias-me pela voz. Estou, avó, estou mesmo. Tenho saudades tuas.


Marina Ferraz





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