terça-feira, 30 de junho de 2015

Sou loucamente só



Sou loucamente só:
Acordo de silêncio
E durmo desgarrada.
Não tenho amor, não tenho nada,
Sou loucura e digo que sou ninguém.

Tenho sonhos: toda a gente tem!
Mas calo os meus ao vento
Não lhos digo!
Da tormenta faço mãe,

Dos dias faço castigo.

Sou loucamente só,
Ando entre a gente
E desconheço a vida.
Não tenho nem começo nem partida,
Sou poeta e digo que sou demente.

Tenho a poesia:
Ela canta no silêncio da casa,
Afasta-me a tristeza, a agonia.
Cada rima é um som, é uma asa,
Nela voo e digo ser alegria.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

Este poema integra, também, a colectânea "Som de Poetas" da Papel de Arroz Editora

terça-feira, 23 de junho de 2015

De mim para comigo



Deixo esta carta à pessoa que fui.
O mundo soube ser odioso para ti. Não tiveste culpa disso. Não tiveste culpa que, pelos corredores, fizessem troça dos teus caracóis, dos teus vestidos, dos laçarotes no teu cabelo. Não tiveste culpa que te levantassem as saias, que te atirassem ao chão, que se rissem de ti. O mundo soube ser odioso. As pessoas foram cruéis. A culpa não foi tua.
Escola e casa eram portos seguros que nunca o foram. De um lado, essas gentes sem traço de humanidade. Do outro, a tristeza, os problemas. Não falavas desses problemas, eu sei. Mas viste-os todos. Viste lágrimas e histerias e momentos infindáveis de mágoa. Nos tempos em que devias ter conhecido uma felicidade inigualável, fizeste as pazes com a dor, aceitaste-a, abraçaste-a. Não conheceste outra coisa.
Havia, claro, sorrisos. Momentos bons. Mas, se a vida é feita na balança infinita do bom e mau, admite-o: não foste feliz. Não te deixaram ser. Mas tu não conhecias mais nada. É natural que te deixasses levar.
Apagaste-te. Se não tiveste culpa do ódio invejoso do mundo, disso tiveste. Podias ter ripostado. Mas querias demasiado ser aceite. Para quê? Para que querias tu fazer parte daquele grupo que não fazia mais do que plantar no teu peito o sofrimento? Não sei porque querias. Mas querias e não conseguiste. Então, apagaste-te. Viraste do avesso o que havia de bom em ti. Criaste o teu mundo. Nunca deixaste ninguém entrar.
Algumas pessoas chegaram à muralha e ponderaste erguer o portão. Mas as pessoas desiludiam-te antes de o fazeres. Não era simples. Não era simples acreditares que alguém seria melhor do que aqueles que te feriram. Então, encafuaste-te. Alguns dirão que o fizeste dentro das quatro paredes do teu quarto. Mas tu sabes. Foi pior. Foi dentro de ti que te escondeste. E, presa nesse mundinho, que justificavas com trabalho, antipatia e resmunguice, deixaste de saber ser pessoa.  Deixaste de entender gostos que não os teus. Deixaste de saber falar sobre os teus gostos, sobre as tuas preferências, sobre o teu eu. Com o tempo, deixaste de saber falar do que quer que transplantasse a linha da formalidade ou do superficial. Eras tu contigo e com uma multidão ao redor da muralha que nunca ninguém transpôs. E, cada hipotético companheiro de mundo de fantasia, acentuou isso mesmo. As pessoas atiravam-te pedras. Tu erguias muralhas. E ficaste só. Construíste um monstro. Saibas ou não. Foi isso que fizeste dentro da superfície muralhada da tua pele.
Não tenho pena de ti, porque te respeito demasiado. Sobreviveste. Mas sei que erraste. Sei que devias ter ripostado mais vezes. Sei que devias ter-te escondido menos. Sei que devias ter vivido mais. Mas tu não sabias. E respeito, por isso, o que fizeste.


Deixo esta carta à pessoa que sou.
O mundo soube ser odioso para ti. Não tiveste culpa disso. Quando te fechaste, tornaste-te igual ao mundo. Disso sim... tens culpa!
Dentro da tua solidão, criaste padrões para tudo. Habituaste-te a eles. Deixaste de aceitar conselhos, incentivos, palavras de apoio, opiniões diferentes da tua. Diziam-te que não dava para falar contigo. Não entendias. Não querias saber. Devias ter entendido. Devias ter percebido que esse foi o principio que fez com que sofresses tanto: as pessoas não se importam umas com as outras... mas, sabendo disso, tu não devias ser uma delas!
Tornaste-te uma delas quando deixaste de ouvir. Sem ouvires, magoaste pessoas. Não quaisquer pessoas. As que te amavam mais. Deixa-me perguntar: Afinal, quem és tu? Dona e detentora de todo o saber e razão? Respondo, também: Não és! Sofreste muito... óptimo! Aprende com isso! Supera isso. Sê melhor do que o mundo foi para ti. Não tentes lutar sendo igual a tudo o que odeias...
Abriste o portão da muralha. Deixaste alguém entrar. E, desde então, ele tem tentado que derrubes a muralha. Não, ele não te quer ver vulnerável. Ele sabe que és forte. Sabe-o, mesmo quando tu não sabes. E quer que pares de te esconder, qual menininha desamparada. Quer que dês o salto. Que sejas a mulher que ele sabe que tens potencial para ser. Isso implica que ouças e que aprendas a falar numa linguagem comum. Já não és tu sozinha. Está na hora de abrires a alma, da mesma forma que abriste o portão.
É importante que deixes o passado lá atrás. Sofreste mas agora és feliz. Aprende a sorrir com o rosto, com os olhos, com os lábios. Aprende a deixar cair a máscara de indiferença. Não és indiferente. Ele merece ver-te sorrir. Então, sorri. Não é difícil. É só pores cá fora o que trazes dentro de ti.
Dirias que és quem és. É verdade. Mas aprende a lição que ninguém te ensinou no confinamento voluntário que operaste: Não és perfeita. Os teus gostos não são mais importantes do que os dos outros. As tuas opiniões não valem assim tanto. Há muito que não sabes sobre a vida. Assume-o! Deixa-te de tretas. Esquece as ideologias tontas. Não és, como não eras, perfeita. Talvez nunca sejas. Então, esquece os argumentos.
Neste momento, tens o mundo nas mãos. Tens quem te abrace e aconselhe. Ouve-os. Ouve-o. Sabes que ele tem razão. Para quê tanta teimosia?
És feliz porque o deixaste entrar na muralha. Serás mais feliz se deixares a muralha cair. O mundo de fantasia da criança que foste só poderá ser real se aprenderes a ser uma pessoa melhor, uma pessoa completa, uma pessoa feliz e uma mulher adulta. Já passou o tempo de te esconderes. Está na hora!


Deixo esta carta à pessoa que serei.
Não sei o que te aconteceu. Posso apenas desejar. Desejar que me tenhas ouvido. Desejar que tenhas feito as pazes com o passado e com o mundo que te magoou.
Guardo muitos desejos para ti! Primeiro, espero que sejas feliz. Feliz-feliz. Que sorrias todos os dias, pelo menos uma vez, mesmo quando o dia for mau. Que saibas parar para apreciar a vida. Que vivas!
Espero que ele ainda esteja aí. Espero que tenhas mudado o que devias e deixado intacto o que não valia a mudança. Havia muito em ti para mudar, no meu tempo. Mas também havia algo de subtil e belo nas entranhas do que escondias lá dentro. Espero que tenhas sabido a diferença. Espero que ele te tenha ensinado, aos poucos, o que, hoje em dia, eu ainda não vejo.
Espero que tenhas aprendido a ouvir os outros. A ser melhor com os outros. A dar o melhor de ti. Quanto a ele. Espero que, além de seres feliz, o faças feliz. Ele merece. Sempre mereceu. E é tão bonito vê-lo sorrir, com aquele sorriso completo que ilumina os olhos azuis. Espero não tenhas cometido os meus erros. Espero que tenhas aprendido. E, Deuses, espero que ele esteja aí. Quero que ele esteja, quando eu for tu! Não acho que possa ser feliz sem ele.
Não sei se alcançaste os sonhos pelos quais me digladio. Não faz mal, se não conseguiste. Eu tentei. Aposto que também tentaste. Isso é o que importa mais. Não tentes ser perfeita, está bem? Já tentámos isso... não deu bom resultado. Em vez disso, tenta ser correta contigo e com os outros. É só isso que importa. Mas, se estás aí, se ele está contigo, aposto que sabes isto melhor do que eu.
Não sei o que fazes. Não sei o que passaste entre hoje e esse futuro aí em frente. Mas sei que, se fores feliz, valeu a pena.
Lembra-te só disto: deixamos no mundo o que plantamos na nossa alma. Dá o melhor de ti. Sempre. Seja a quem for. Deixa o melhor de ti ganhar raízes neste mundo.
Deixa que isso aconteça como hoje eu deixo esta carta.

Marina Ferraz
* Imagem retirada da Internet


Estou a sortear um exemplar da obra "Fragmentos de Mim" na minha página de facebook.
Podem ver as regras de participação aqui.




terça-feira, 16 de junho de 2015

Morreste-me




O presente do verbo amar é morreste-me.

Ontem. Ainda te lembras? Ontem andámos de mãos dadas pelas ruas. Não tinhas medo. Nem das ruas. Nem de dar as mãos. Não tinhas medo de erguer o rosto. Encostavas os lábios aos meus ouvidos. Sussurravas. O que dizias? Segredos. Meus e teus. E do mundo inteiro que sabia o que dizias, embora sussurrasses. Olhavas para mim. E eu via o brilho dos teus olhos. Parecia que abarcavas o mundo no olhar, cada vez que olhavas para mim.
Ontem. Parece que foi há mil anos atrás mas não foi. Foi ontem. Escrevias o meu nome nas estrelas. Dizias que elas se tinham alinhado para nós. Inventavas histórias sobre Deuses que nunca foram criados. Dizias que havia um Deus só para a nossa paixão. Que, algures, tecia a fio de ouro, o destino que havíamos de partilhar.  No melhor e no pior, dizias-me. E eu acreditava em ti. Loucamente. Cegamente. Como apenas acredita quem, por manobras desajustadas do destino, ergue os pés do chão e não vê mais do que histórias de fantasia permeando a realidade. Como raios de sol por entre sombras numa floresta de treva.
Ontem. Ontem, o presente do verbo amar era "amo-te". Eu dizia-o. Tu também. E apostávamos que não haveria outra forma de conjugar o amor que não essa que acontecia num presente perfeito. E, nas tuas palavras, cheias de poemas e pedidos, eu desenhei eternidades e contos de fadas. O presente do verbo amar era "amo-te". "Até morrer", acrescentavas. E tinhas a certeza.
Ontem. Avisaram-me, é claro. Disseram-me que havia palavras ocas e promessas irreais onde eu lia perfeição. Mas ontem... ontem eu estava surda de não ouvir ninguém além de ti. E as tuas palavras diziam, em cada linha, que o mundo lá fora nos pertencia e as pessoas não nos importavam.
Ontem. Loucos. Tu e eu. Idiotas. Senhores de um tempo que não nos pertencia. Donos de lugares aos quais não tínhamos direito. Ontem. Irracionais. Incoerentes. Ontem cortámos as mãos em juras de sangue. Abrimos a ferida. E ela nunca mais vai sarar.
Ontem. Ainda foi ontem, não foi? O teu olhar encontrou outros mundos. De os abarcar, brilhou mais forte. As mãos desenlaçaram-se. As promessas quebraram. Foste. Eu fiquei. Presa ao ontem. Não este. Aquele no qual me tinhas dito que me amavas. Mais do que tudo. Até morrer.
Ainda estás vivo. Fico feliz. Algures. Seja onde for. Seja com quem for. O teu coração pulsa. Respiras. Tornas o mundo um lugar melhor, inconsciente de que ontem, apenas ontem, tinhas nos lábios promessas vazias de tudo.
Ao meu lado, onde morava o meu amor, vive agora a sombra da morte. Essa que devia ser a única com a força de te roubar de mim. É com ela que enlaço as mãos.
Tu estás vivo. O amor também. E eu? Sombra de ontens que não regressam e de um amanhã que não vem. Estás em mim. Mas és só uma recordação que se esbate nas sobras do passado. Não estás. O presente do verbo amar é morreste-me.

Marina Ferraz




Estou a sortear um exemplar da obra "Fragmentos de Mim" na minha página de facebook.
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terça-feira, 9 de junho de 2015

Premonição



"Lê-me a sina", pediste. Tinhas o jeito abrupto de um homem do mar mas a suavidade terna de amante que há muito navegava as marés do meu corpo. Agarrei-te as mãos calejadas. A manhã cinzenta, ainda nos primeiros acordes de luz, era feita de névoa e escuridão. Lá fora. Mas não na nossa cama, onde me estendias a mão e me pedias que te lesse a sina.
Fechei os olhos. Fechei-os para te imaginar o rosto. O teu rosto cheio de sorrisos e sonhos para amanhã, espelhando a felicidade do mundo, irradiando sonhos, impulsionando a minha fé na vida. Fechei-os no toque quente da tua mão, desejando que ela se desprendesse da minha e percorresse as curvas do meu corpo cigano, em busca de um momento de prazer antes da partida. Desejaria isso. O teu rosto na minha mente, aquando desse toque feito de conforto. Seguido do anuncio simples: "a tua sina diz que, quando voltares, teremos de volta a felicidade que hoje levas no convés". Mas quando fechei os olhos. Quando os fechei para te imaginar o rosto. Quando os fechei, à espera da sina mais breve e concreta, onde eu era tua e tu eras meu, tudo o que vi foi o vazio de dois olhos abertos, onde não havia esperança, onde não havia felicidade, onde não havia vida. Uma imagem longínqua, que parecia desfocar-se nos destroços amadeirados de um barco com o meu nome. Subitamente, o calor da tua mão não era conforto. Queimava. A imagem era um fragmento inusitado de tudo o que eu não queria ver. Tão crua, tão fria, tão vazia que dela tive o ímpeto de desviar o olhar, o ímpeto de te soltar a mão num recuar melindrado. Mas tinha mergulhado em ti. Tinha mergulhado nos confins do teu futuro. E sentia no peito, como via, com os olhos cheios de medos, esse amanhã.
A imagem permaneceu. Com as ondas. Subindo e descendo nessa incessante náusea de improváveis. E a chuva. A chuva caía, cada vez mais gélida, sobre esse oceano onde, de olhos abertos, não vias. E a madeira a flutuar tornava-se uma imagem cada vez mais esbatida, cada vez menos nítida, à medida que enegrecia à tua volta o mundo e o inferno te puxava para o fundo. Fundo. Cada vez mais fundo. Braços pendendo, ondeando, sem vida que os fizesse esbracejar. E quero gritar "luta". Mas fica preso na garganta o grito que te sabe ido. Não podes lutar. Mas eu posso. E luto contra essa imagem que insiste em entrar em mim, no toque da tua mão. Mas a imagem permanece e continuas a afundar-te, afastando-te do ar, afastando-te da madeira tosca que flutua, afastando-te do sonho que sonhámos juntos.
Sinto as lágrimas nos olhos. Sinto-as como se a premonição desse destino fosse tão concreta como uma notícia confirmada nos anteontens do mundo. E obrigo-me a abrir os olhos, enquanto a tua mão calejada se retira da minha e se dirige ao meu rosto molhado, para o limpar.
"Não vás", imploro-te.
"Ora, sabes que vou...", é a resposta sem perguntas. E nascem em mim mil dúvidas. Para que te leio eu a sina, meu amor, se não queres sabê-la? Se não me ouves? Se sempre te prevejo a morte e sempre a ignoras? Não te faço estas perguntas. E tu não esperas por elas. Esperas apenas provar-me errada, entrando de braços abertos pela porta deste nosso lar, viúvo de finais felizes.
Beijas-me os lábios. Beijas-mos como se eu tivesse acordado de um sonho e nada fosse verdade. Beijas-mos como se fosses voltar a beijá-los. E, agarrando nas tuas coisas, vais, deixando no ar um "amo-te" que serve também de "adeus".
Com a porta batida, digo-te que sei que não me amas. Amas, certamente. Mas não me amas. Não sei quem amas mais. Se é o mar ou a aventura ou a sina que te espera noutro porto. Não sei quem amas mais. Sei que não sou eu.
Fico sozinha com a cama desfeita. Não sei se voltas. Não sei o que farei se não voltares. Não sei o que fazer com a imagem concreta da premonição que me atormenta há tantos anos. De todas as amantes que podias ter tido, escolhes dar-te a essa cortesã imprevisível, cheia de marés de temperamento instável.
A minha alma cigana não quer o luto. Peço ao mar que hoje te leva que em breve te traga de volta. Não sei se ele ouve. Sinto o eco da premonição nas paredes nuas da casa deserta. As ondas rebentam. A chuva cai. Amanhece lá fora. Anoitece em mim.

Marina Ferraz
* Imagem retirada da Internet



Este texto integra, também, a colectânea "Premonições" da Lua de Marfim Editora

terça-feira, 2 de junho de 2015

O meu pedaço de caos

ou Crónica sobre um Cabelo (a)Normal



Nasci com a peculiaridade de herdar, de pai e mãe, os piores genes capilares da história planetária. De alguma forma, a trunfa indecisa entre ondas e liso da minha mãe, aliado ao cabelo cacheado e desalinhado do meu pai deu origem a algo que gosto de apelidar de "juba".

O meu cabelo mistura, com facilidade, todos os traços do caos. Tem vida própria. Vontade própria. É emancipado. Independente. Não aceita conselhos. Nem imposições. Quando tentam moldar-lhe a vontade, tende a espetar em todas as direcções.

No meu cabelo, qualquer corte parece o mesmo. Os caracóis formam-se como lhes convém e sem respeitar o esforço dos profissionais que tentam dar-lhe forma. Esticado, permite que se notem as nuances ruivas que permeiam o castanho. Durante vinte minutos, isto é... Depois, o volume rouba-lhe as características e o ciclo recomeça.

Esses vinte minutos de relativa cedência costumam ser os mesmos que fazem as cabeleireiras que conheci ao longo da vida esbugalhar os olhos e suspirar. Porque, quando contrariado, o meu cabelo exprime-se adolescentemente, dificultando a vida dos outros e fazendo, da aparentemente simples tarefa de alisamento, uma tarefa de duas horas e esforço militar.

Chamam-se os reforços: champô para cabelos secos e estragados, champô para caracóis rebeldes, amaciador para cabelos ásperos, máscara para crina de cavalos... Mais o spray de alisamento. Gel, cera, laca. Tudo o que houver à mão com uma descrição que grite "amenizador de caos".

É perante este cenário, em frente à montra interminável de produtos para cabelo, nas grandes superfícies, que dou por mim a pensar...

Lendo apenas a descrição de uma dúzia de embalagens é possível encontrar: para cabelos lisos, ondulados, encaracolados e afro; secos, estragados, queimados do sol, com pontas espigadas, oleosos, fracos, sem volume, sem vida, pintados... e, troçando-me, junto a estes, a indicação, no fundo de outras embalagens: "para cabelos normais".

A minha escolha nunca recai sobre estes. O meu pedaço de caos não enuncia normalidade. Mas questiono-me: O que será um cabelo normal? Não será certamente liso, nem ondulado, nem encaracolado, nem seco, nem oleoso... nem nenhum dos que se enquadre nas restantes opções! Talvez um cabelo normal seja um cabelo caucasiano, ocidental, heterossexual, casado, com um emprego das nove às cinco e que vá à missa, aos Domingos, com os seus filhos. Talvez seja um cabelo que gosta de ver T.V. e de beber uma ocasional cerveja enquanto a mulher cozinha. Ou talvez seja um cabelo que finge ler o jornal enquanto o metro não chega à estação e se envolve em discussões sobre futebol.

O meu pedaço de caos, em toda a sua vontade própria, não será, certamente, normal. Como também eu não sou. É rebelde. Incontrolável. Tem personalidade. E, talvez por isso, junta-se a uma enorme massa de rejeitados que não se enquadram na norma. O problema da norma é, claro, o facto de não existir fora do papel onde se enuncia. As únicas pessoas que imagino que escolham aquele champô são as que não lêem as descrições ou as que, perante tanta escolha, não saibam o que é melhor para si.

Eu herdei, dos meus pais, os piores genes capilares da história do planeta. O meu cabelo já era difícil antes de eu ser e já não se dizia normal antes de eu própria recusar o rótulo.

Mas a sociedade insiste. Identifica tipos. Usa-os como rótulos de embalagem. E atira-nos à cara que existe, além disto, uma normalidade. Ser normal não é regra, mas antes objectivo. Infelizmente, não só para o cabelo.

Estendo frequente a mão para longe do normal. Amo o meu pedaço desalinhado de rebeldia. São as características exacerbadas que nos tornam nós. E um bocadinho de caos nunca fez mal a ninguém...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet