terça-feira, 16 de junho de 2015

Morreste-me




O presente do verbo amar é morreste-me.

Ontem. Ainda te lembras? Ontem andámos de mãos dadas pelas ruas. Não tinhas medo. Nem das ruas. Nem de dar as mãos. Não tinhas medo de erguer o rosto. Encostavas os lábios aos meus ouvidos. Sussurravas. O que dizias? Segredos. Meus e teus. E do mundo inteiro que sabia o que dizias, embora sussurrasses. Olhavas para mim. E eu via o brilho dos teus olhos. Parecia que abarcavas o mundo no olhar, cada vez que olhavas para mim.
Ontem. Parece que foi há mil anos atrás mas não foi. Foi ontem. Escrevias o meu nome nas estrelas. Dizias que elas se tinham alinhado para nós. Inventavas histórias sobre Deuses que nunca foram criados. Dizias que havia um Deus só para a nossa paixão. Que, algures, tecia a fio de ouro, o destino que havíamos de partilhar.  No melhor e no pior, dizias-me. E eu acreditava em ti. Loucamente. Cegamente. Como apenas acredita quem, por manobras desajustadas do destino, ergue os pés do chão e não vê mais do que histórias de fantasia permeando a realidade. Como raios de sol por entre sombras numa floresta de treva.
Ontem. Ontem, o presente do verbo amar era "amo-te". Eu dizia-o. Tu também. E apostávamos que não haveria outra forma de conjugar o amor que não essa que acontecia num presente perfeito. E, nas tuas palavras, cheias de poemas e pedidos, eu desenhei eternidades e contos de fadas. O presente do verbo amar era "amo-te". "Até morrer", acrescentavas. E tinhas a certeza.
Ontem. Avisaram-me, é claro. Disseram-me que havia palavras ocas e promessas irreais onde eu lia perfeição. Mas ontem... ontem eu estava surda de não ouvir ninguém além de ti. E as tuas palavras diziam, em cada linha, que o mundo lá fora nos pertencia e as pessoas não nos importavam.
Ontem. Loucos. Tu e eu. Idiotas. Senhores de um tempo que não nos pertencia. Donos de lugares aos quais não tínhamos direito. Ontem. Irracionais. Incoerentes. Ontem cortámos as mãos em juras de sangue. Abrimos a ferida. E ela nunca mais vai sarar.
Ontem. Ainda foi ontem, não foi? O teu olhar encontrou outros mundos. De os abarcar, brilhou mais forte. As mãos desenlaçaram-se. As promessas quebraram. Foste. Eu fiquei. Presa ao ontem. Não este. Aquele no qual me tinhas dito que me amavas. Mais do que tudo. Até morrer.
Ainda estás vivo. Fico feliz. Algures. Seja onde for. Seja com quem for. O teu coração pulsa. Respiras. Tornas o mundo um lugar melhor, inconsciente de que ontem, apenas ontem, tinhas nos lábios promessas vazias de tudo.
Ao meu lado, onde morava o meu amor, vive agora a sombra da morte. Essa que devia ser a única com a força de te roubar de mim. É com ela que enlaço as mãos.
Tu estás vivo. O amor também. E eu? Sombra de ontens que não regressam e de um amanhã que não vem. Estás em mim. Mas és só uma recordação que se esbate nas sobras do passado. Não estás. O presente do verbo amar é morreste-me.

Marina Ferraz




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Podem ver as regras de participação aqui,

2 comentários:

  1. bem legal o testo bem condincente parabens

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  2. Lindíssimo este texto, melancólico, profundo, intenso. Gostei muito!

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