"Lê-me a sina", pediste. Tinhas o jeito abrupto de
um homem do mar mas a suavidade terna de amante que há muito navegava as marés
do meu corpo. Agarrei-te as mãos calejadas. A manhã cinzenta, ainda nos
primeiros acordes de luz, era feita de névoa e escuridão. Lá fora. Mas não na
nossa cama, onde me estendias a mão e me pedias que te lesse a sina.
Fechei os olhos. Fechei-os para te imaginar o rosto. O teu
rosto cheio de sorrisos e sonhos para amanhã, espelhando a felicidade do mundo,
irradiando sonhos, impulsionando a minha fé na vida. Fechei-os no toque quente
da tua mão, desejando que ela se desprendesse da minha e percorresse as curvas
do meu corpo cigano, em busca de um momento de prazer antes da partida. Desejaria
isso. O teu rosto na minha mente, aquando desse toque feito de conforto.
Seguido do anuncio simples: "a tua sina diz que, quando voltares, teremos
de volta a felicidade que hoje levas no convés". Mas quando fechei os
olhos. Quando os fechei para te imaginar o rosto. Quando os fechei, à espera da
sina mais breve e concreta, onde eu era tua e tu eras meu, tudo o que vi foi o
vazio de dois olhos abertos, onde não havia esperança, onde não havia
felicidade, onde não havia vida. Uma imagem longínqua, que parecia desfocar-se
nos destroços amadeirados de um barco com o meu nome. Subitamente, o calor da
tua mão não era conforto. Queimava. A imagem era um fragmento inusitado de tudo
o que eu não queria ver. Tão crua, tão fria, tão vazia que dela tive o ímpeto
de desviar o olhar, o ímpeto de te soltar a mão num recuar melindrado. Mas
tinha mergulhado em ti. Tinha mergulhado nos confins do teu futuro. E sentia no
peito, como via, com os olhos cheios de medos, esse amanhã.
A imagem permaneceu. Com as ondas. Subindo e descendo nessa
incessante náusea de improváveis. E a chuva. A chuva caía, cada vez mais
gélida, sobre esse oceano onde, de olhos abertos, não vias. E a madeira a
flutuar tornava-se uma imagem cada vez mais esbatida, cada vez menos nítida, à
medida que enegrecia à tua volta o mundo e o inferno te puxava para o fundo.
Fundo. Cada vez mais fundo. Braços pendendo, ondeando, sem vida que os fizesse
esbracejar. E quero gritar "luta". Mas fica preso na garganta o grito
que te sabe ido. Não podes lutar. Mas eu posso. E luto contra essa imagem que
insiste em entrar em mim, no toque da tua mão. Mas a imagem permanece e
continuas a afundar-te, afastando-te do ar, afastando-te da madeira tosca que
flutua, afastando-te do sonho que sonhámos juntos.
Sinto as lágrimas nos olhos. Sinto-as como se a premonição
desse destino fosse tão concreta como uma notícia confirmada nos anteontens do
mundo. E obrigo-me a abrir os olhos, enquanto a tua mão calejada se retira da
minha e se dirige ao meu rosto molhado, para o limpar.
"Não vás", imploro-te.
"Ora, sabes que vou...", é a resposta sem
perguntas. E nascem em mim mil dúvidas. Para que te leio eu a sina, meu amor,
se não queres sabê-la? Se não me ouves? Se sempre te prevejo a morte e sempre a
ignoras? Não te faço estas perguntas. E tu não esperas por elas. Esperas apenas
provar-me errada, entrando de braços abertos pela porta deste nosso lar, viúvo
de finais felizes.
Beijas-me os lábios. Beijas-mos como se eu tivesse acordado
de um sonho e nada fosse verdade. Beijas-mos como se fosses voltar a beijá-los.
E, agarrando nas tuas coisas, vais, deixando no ar um "amo-te" que
serve também de "adeus".
Com a porta batida, digo-te que sei que não me amas. Amas,
certamente. Mas não me amas. Não sei quem amas mais. Se é o mar ou a aventura
ou a sina que te espera noutro porto. Não sei quem amas mais. Sei que não sou
eu.
Fico sozinha com a cama desfeita. Não sei se voltas. Não sei
o que farei se não voltares. Não sei o que fazer com a imagem concreta da
premonição que me atormenta há tantos anos. De todas as amantes que podias ter
tido, escolhes dar-te a essa cortesã imprevisível, cheia de marés de
temperamento instável.
A minha alma cigana não quer o luto. Peço ao mar que hoje te
leva que em breve te traga de volta. Não sei se ele ouve. Sinto o eco da
premonição nas paredes nuas da casa deserta. As ondas rebentam. A chuva cai. Amanhece
lá fora. Anoitece em mim.
Marina Ferraz
* Imagem retirada da Internet
Este texto integra, também, a colectânea "Premonições" da Lua de Marfim Editora
Muito bom :)
ResponderEliminarmuito interessante
ResponderEliminarAdorei o texto! :D
ResponderEliminarUm belíssimo texto, que nos faz pensar.
ResponderEliminarUm belíssimo texto, que nos faz pensar.
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