quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Dos clichés...

 


Pessoas que nos marcam não morrem. É cliché. Eu sei. Mas gosto deste.

 

Podem vir dizer-me quantas vezes quiserem os outros clichés e negarei cada um. Com o tempo tudo se esquece. Nada resiste ao tempo. O tempo cura tudo.

 

Quem procura a cura talvez se identifique.... e eu entendo. Há, talvez, um esmorecer da intensidade do sofrimento, uma habituação à presença da saudade que deixam os ausentes. A pouco e pouco, o tempo leva a voz e o cheiro, torna-se mais ténue o memorar da expressão dos olhos onde morava a alma. Mas não acredito que tudo se esquece. Não preciso de cura. E sei que resiste ao tempo: o amor, os gestos perpetuados em quem fica, as ideias repetidas de forma leve e quotidiana. Não existe agente erosivo que transforme isto em poeira.

 

Pessoas que nos marcam não morrem. Talvez ninguém morra. Gosto de pensar que toda a gente deixa no mundo uma marca indelével na passagem. E, hoje, no dia do idoso, no dia que marca o adormecimento de um homem que precisou de nascer para eu viesse a nascer também, eu trago nas mãos e por dentro muito mais do que a memória.

 

Poderia falar-vos, é claro, da pessoa que me viu entrar pela sala, cheia de emoção, no alto dos meus maduros 6 anos, ainda sem saber escrever bem as vogais e dizendo avô, avô, já sei o que quero ser quando for grande! Quero ser escritora. Podia dizer-vos que ele ergueu os olhos do romance da Agatha Christie, que afastou o cigarro com leveza e que me disse – melhor conselho de sempre! – então, escreve. Ou podia falar-vos do dominó, do gelado no murinho, dos filmes ao domingo à tarde, do chocolate quente, da piza caseira, do trajeto entre a cozinha e o quarto com o copo de água, do whiskey, das vindimas, da barraca na praia, do boné e do olhar meigo. Podia dizer tantas, tantas coisas.

 

Eu trago a memória. Mas a memória não importa. Importa que a memória não vem só. Traz consigo o amor. Todo o amor. Esse sentimento resiliente que, depois de 19 anos, não atenuou. E o amor torna-me grata pela saudade. Esse sentir a falta que é gesto de gratidão à vida por me ter permitido tê-lo de mão na minha, escutar as suas palavras, partilhar cada momento.

 

Não gosto da ideia de que o tempo cura tudo. Eu não preciso que o tempo me cure do amor. Levo-o comigo. Pretendo continuar a levá-lo comigo, mesmo quando isso assustar os outros. Porque o amor não é um erro. E senti-lo não é fraqueza. E cuidá-lo, mesmo na ausência, não é delírio, nem ilusão... Pessoas que nos marcam não morrem. Abençoado cliché, este que me conforta no luto da vida, fazendo-me ver além da capa exígua do visível.

 

 

Hoje, neste aniversário da tua ida, é como se aqui estivesses. Corro para ti e digo. Avô, avô, quero ser escritora. E tu respondes. Escreve. E ainda é o melhor conselho do mundo, porque me colocas na mão o amor indestrutível que trago comigo.

 

No reencontro, avô, devolverei esta tua parte para novamente a partilharmos. Até lá, resguardo-a dos outros clichés. E escrevo. Porque me disseste para o fazer... porque cabia o mundo todo nas tuas palavras... e, vê lá bem, a eternidade.

Marina Ferraz



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