Muitas pessoas culpam o Mercúrio retrógrado pelos seus problemas. Ali, pertinho do Sol, o movimento inverte-se. De repente, por causa disso, a Joana derrama o café em cima dos apontamentos e chumba a Matemática. E que ninguém lhe atribua a culpa do sucedido… ou aponte as noites sucessivas a ver séries a Netflix em vez pegar no livro… foi sem sombra de dúvida, o Mercúrio retrógrado…
Eu não derramei café. Mas a minha mãe também sempre disse que isto não era o da Joana. Então, não derramei café. Lágrimas, sim… tenho derramado algumas. E perdido batalhas. E sentido o peso universalmente grande da falha. Culpa minha, talvez, que de mercúrio já nem termómetro tenho. Mas culpo também o retrógrado. Não Mercúrio. O pensamento… O país… O mundo…
Dotado de um conservadorismo arraigado, o país bebe da tradição com a mesma sofreguidão com que mama imperiais a ver o futebol. Entre pontapés de canto e arremessos ao poste, defende-se o lugar-de-cada-um com base nas convenções de género. E alguém diz que a família tradicional ainda é instituição. Alguém concorda e acrescenta uma palavrinha de censura ao aborto, aos contracetivos, ao divórcio… porque já não há valores fortes, como aqueles que o cinto de um homem de família deve saber impor à esposa e aos filhos!
Religiosamente, os fiéis destas ideias vão votando os escolhidos de Deus para que se alapem no Parlamento. Longe de oficial, o lema Deus-Pátria-Família desenha novos sinais de menos na economia, em prol de uma sociedade de fé, que se move a café, para ser fértil e alimentar a fétida economia com lavoura que enche apenas os bolsos de quem já os tem cheios. O que a malha legal não leva, a burocracia incentiva e a corrupção garante. Que procurar novos sistemas é conversa fiada. Utopia. Discurso de negacionistas e teoristas de conspirações múltiplas.
Noções rígidas como o pão de anteontem são roídas. A crítica é fácil e, como o glúten, inflama a carne. O resultado? Ismos! Muitos ismos! Classicismo, racismo, machismo… e outros ismos, mesmo sem ismo, como a xenofobia, a misoginia e outros. Tudo parte do sistema educativo, onde a tradicionalidade impera. Ensinando a olhar para o lado quando a guerra é longe. E a treinar a disciplina de soldado, para obedecer às convenções mornas, que antes fossem mortas, em vez das crianças em Gaza.
Enquanto se lambem dedos para virar as páginas onde se dita às gentes a servidão, cultiva-se nas terras sem pausio a mesma colheita triste de uma justiça injusta, de uma educação deseducada, de uma dependência económica que tem como última esperança a venda da dívida sob a gabardina ordinariamente reveladora do crédito. Gente que compra taxas impossíveis e que variam sempre a favor do sistema… Mas a dívida que mais se perpetua é justamente aquela de que não se fala. A desse sistema. Esse que não quer evoluir para permitir infraestruturas atualizadas, diversidade em ambiente de aceitação, uma inclusão que o seja realmente, estendendo-se aos limites de temas como o género, a sexualidade, a etnia, a cor da pele, a nacionalidade… mas também a doença, as deficiências, as neurodivergências e o ser-se, simplesmente…
Eu não derramei café. Lágrimas, sim… tenho derramado algumas. Olho o mundo e sinto-me profundamente triste. Logo eu, que acho que sou feliz. Estou triste a olhar o mundo… e dizem que é normal sentir-me assim, porque entre 1 e 25 de Abril estivemos em Mercúrio retrógrado…
Mas…
Não acho que não é o Mercúrio retrógrado que me afeta… mas o pensamento, o país, o mundo… esses retrógrados sem calendário…
Atualmente, graças a todo um sistema arcaico de vida, a Terra deve 313 biliões de dólares. Não sabemos bem a quem... Talvez seja a Mercúrio…
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