terça-feira, 23 de abril de 2024

Entrevista

Imagem gerada por I.A.

Dizem que nasci há um século. Parece que foi ontem. Na verdade, já andava por aí na antiguidade a vaguear as ruas. Não gosto muito de falar sobre o local onde nasci ou sobre os meus pais. Mas prometi que lhe contava tudo… Sou filho do Domínio e da Ganância. Nasci no Povoado da Soberania. Ensinaram-me de pequenino a nunca ser pequenino. Nem que precisasse de escalar a pele dos outros para subir para os seus crânios. Nem que isso lhes esmagasse os crânios.

 

Desenvolvi um negócio poderoso. Uma máquina capaz de separar pessoas como trigo e joio. Definindo o valor humano com base no retorno. Baseando na troca toda a atividade dos meus subordinados, destinando-lhes fome e desesperança, em troca de ouro e diamante.

 

Encontrei escravos. Fiz escravos. Explorei escravos. Depois, aboli a escravatura. Depois, encontrei outro nome para os escravos. Percebi que é rentável ter os livres pela trela da necessidade. E é assim que os passeio na rua. Que os coloco no trânsito matinal. Que os levo das casas húmidas e a crédito para os trabalhos esgotantes de salário mínimo.

 

Não, não. Não me preocupo muito com essa coisa das árvores. Mas pedi aos meus amigos que fingissem que sim. A retórica é tudo! Não podemos esperar lucros substanciais de atos sustentáveis, meu amigo, não podemos. Esquivamos questões com uma estação de efluentes aqui, um parque de eólicas acolá. E chega. Tenho os melhores médicos à beira do colchão sempre que precisar deles. Pergunta por eles? Pois, eles têm os serviços de saúde públicos, quando os há. Os curandeiros sem instrução, quando não os há. E acreditam em Deus. Deus que os salve!

 

Crianças?! Sim! Adoro crianças! Estou no negócio de produzir crianças e no negócio de fazer crianças produzir. Também estou no negócio de pôr crianças nos braços dos meus amigos inférteis, tirando-os dos braços voluntários (ou involuntários) de mães – coitadas – que sabem que não podem criá-los, pobres criaturas, com as condições de vida em que estão. Olham-me como bom samaritano. Por vezes imploram para que as leve também. E, por vezes, eu faço-o. Mesmo quando não pedem. Mesmo quando não querem. Sempre é necessário mão-de-obra arrigada e disposta a lançar-se à lavoura, na promessa do amanhã melhor.

 

Amigos? Tenho muitos! Sou o primeiro na lista do incentivo para que prosperem! Ofereço-lhes vantagem competitiva pelo Natal. Um lobby político e uma brechazinha legal aqui e ali, pelo aniversário. Vou-lhes dando oligopólios descomplicados em jantaradas, limpando tributações, recomendando férias em paraísos fiscais. Temos uma boa relação e, sem eles, certamente seria impossível uma longevidade como a minha. Aliás, é por isso que dominamos um bocadinho o mercado imobiliário em todo o lado e promovemos a renovação das áreas urbanas mais interessantes, para que possamos ter encontros mais privados, entre pares, sem gentinha e gentalha a interromper os nossos encontros. É muito bonito de ver, tanta gente de bem, tanta gente abastada.


Se sei que há gente a viver nas ruas e a morrer em guerras? Deixe-me rir. Eu pus gente a viver nas ruas e comecei as guerras. Ou acha o quê? Que não há casas para todos? Que a paz interessa a alguém? Vejo que pensa como um pobre. Quanto recebem hoje os jornalistas mesmo? Ah… pois… recibos verdes! Bem me parecia…

 

Entenda. Eu faço os meus jantares de caviar e louça debruada a ouro enquanto assisto aos discursos. Políticos que prometem que vão melhorar o sistema económico. Manifestantes que imploram por trocos. Gente trucidada por um bocadinho de terra. Eu sei como anda o mundo, meu amigo. Só não interessa... Em nenhum momento os ouve dizer: Vamos recuar à antiguidade. Vamos recuar um século. Vamos matá-lo. Lambo os dedos e continuo a comer. Alimento-me deste sistema que ninguém quebra ou parece querer quebrar!

 

Estou no negócio da sobrevivência. E os outros que morram.

 

O meu nome? Pensei que já tinha dito. Ah, é para registo seu?! Tudo bem! Capitalismo.


Marina Ferraz




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terça-feira, 16 de abril de 2024

10 Vertical

 


Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros?

 

A pergunta tem um eco em mim. Repete-se, como o toque do telefone da recepcionista, que parece desocupada, mas não o atende.

 

Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros? Porque é que não atendem o telefone? Se o telefone toca, deve ser para atender.

 

E porque é que ninguém parece importar-se que tenham acendido luzes tão fortes? Ou que insistam em pôr a música aos berros? Ou que não atendam o telefone?

 

A mulher tem uma criança de três ou quatro anos. A criança bate com o copo de plástico na mesa. Impaciente. A mãe lê a revista. Folheia-a de forma estranha. Uma página adiante. Duas para trás.

 

Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros? Porque é que não atendem o telefone? Porque é que a mulher não diz à criança que não deve bater com o copo? Porque é que a mãe folheia sem ler, como se não quisesse acabar de ler?

 

E já passam dois minutos da hora da consulta. Se atrasar mais de dez, de certeza que já apanho trânsito. Raios! Ainda tenho de ir trabalhar. E porque é que a recepcionista não atende o telefone? Por este andar, quando chegar a casa, vai ser tarde. Se calhar não janto para adiantar as coisas. Mas estou com fome. Já estou com fome. Será que o espaço das empadas ainda está aberto? Fica a caminho… e já ia “jantada”. Mas normalmente não há onde estacionar. Melhor não. Vou perder mais tempo! Como quando chegar a casa. Ou não. Vamos ver a hora a que chego. Talvez seja só mais um bocadinho.

 

Meu… Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros? Porque é que não atendem o telefone? Porque é que a mulher não diz à criança que não deve bater com o copo? Porque é que a mãe folheia sem ler, como se não quisesse acabar de ler? E o que é que o raio do médico está a fazer? Palavras cruzadas?

 

Olha! Se calhar aquela revista tem palavras cruzadas. Sempre me entretenho. Também devem ser só uns minutinhos…

  

Uns minutinhos.

 

O atenuar das luzes. O esvanecer da música. O telefone que para de tocar. O copo que já não soa a bomba. A mulher que desaparece do campo de visão.

 

O médico chama. Não ouço.

 

10. Vertical. 

"Pessoa com síndrome de caraterísticas sensoriais e sociais divergentes". 7 letras.(*)

 

O médico volta a chamar. Mais alto. Acorda-me.

 

Se não tivesse só 6 letras, acho que a resposta era essa... O meu nome.


Marina Ferraz


(*) Lembremos que Abril é, também, o mês de consciencialização sobre o autismo





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terça-feira, 9 de abril de 2024

12 mm

 


Parei em frente à montra de uma pastelaria. Olhei para ela. Os doces de Lisboa parecem sempre melhores debaixo da luz. Uma chamada de marketing para o alimento pouco sadio, tantas vezes desnecessário, só para matar a fome à gula. Alimento inflacionado para os turistas. Esvaziando o bolso dos turistas e dos outros. Para que o dono tenha alimento. Para que continue vivo e possa pagar a renda astronómica e o salário do confeiteiro e das duas empregadas de balcão, que prefeririam a companhia de uma terceira nas horas de enchente.

 

Apetece-te alguma coisa? Perguntam-me. Apetece-me tudo. Mas principalmente chorar. Não o digo. Em vez disso, encolho os ombros. Estou só a olhar para o vidro. Estava. Ver o que fica além dele é pura casualidade. Relação de protões e fotões numa escala de luz visível… Mas estou só a olhar para o vidro e a pensar. Um pensamento com exatamente 12 mm.

 

 

12 mm não é nada. Poucas coisas assim seriam medidas. E, mesmo as que são… Cabem um pouco mais de 83 medidas de 12 mm num metro. Com 12 mm de chuva por hora, ainda se fala em chuva fraca… Mas 12 mm também é muito. Mesmo, mesmo muito. É muito quando, trespassado por uma bala de uma 12 mm, alguém se esvai em sangue até perder a vida, deixando mães e irmãos, filhos e amigos com muito mais do que 12 mm de mágoa. É muito quando, escrevendo a receita dos óculos e das lentes de contacto, o médico consulta a tabela distométrica para converter as graduações, considerando os 12 mm de distância a que uma armação coloca as lentes oculares, para que a visão seja precisa. É muito quando, parado onde eu estou, um sem abrigo com fome olha além dos 12 mm de vidro, para a comida à qual não tem direito.

 

Apetece-me chorar. É isto que não digo, mas penso, olhando para os 12 mm envidraçados e toda a sua fragilidade. É isto que não digo, mas penso, quando os olhos fixados deixam de focar os doces lisboetas e focam o reflexo do pedinte que estende a mão às gotas da chuva, para colher as lágrimas dos deuses.

 

Entre mim e o sem abrigo há dois metros que são muitos quilómetros... Tão distantes quanto os 12 mm que o separariam dos bolos, se estivesse onde eu estou. E sinto-me sozinha, como se essa distância fosse também a que me separa de todas as outras pessoas, que seguem pela rua, em passo apressado, um pouco cegas à realidade das montras e das pessoas que pedem esmola na calçada.

 

Apetece-te alguma coisa? Perguntam-me. Estou só a olhar para o vidro. Respondo. Mas a verdade é que estou a olhar para 12 mm de mundo… e para o mundo inteiro. Para a ilusão de proibições feitas de material frágil e pouco denso, a agirem com a precisão metálica das balas das pistolas de 12 mm quando ceifam vidas. Para as lentes dos óculos de quem passa, talvez com graduações mal calculadas e que não consideraram os 12 mm que separam a lente do olho, provocando cegueira seletiva quando se trata de andar pelas ruas ou ver os telejornais.

 

 

Apetece-te alguma coisa? Parada, à frente da montra de uma pastelaria, olhando um vidro e os reflexos no vidro, dou por mim a ver-me a mim mesma e não sei se gosto do que vejo. Quero trincar a realidade e cuspi-la por ser amarga. Apetece-me isso. Cuspir a realidade na cara de quem cospe fel sobre as gentes, sem pensar nela. Sempre é melhor cuspir do que ir engolindo as mentiras que perpetuam este mar frio de tristezas, na ilusão de que não somos parte do problema, nem potenciadores de soluções.

 

Apetece-te alguma coisa? Apetece! Apetece-me um mundo melhor. Para levar! Um mundo onde não haja quilómetros entre mim e os outros. Entre os outros e os outros. Entre os outros e este ser que acho que sou. Apetece-me um mundo onde os bolos da montra sejam, como as gotas de chuva, para todos. Apetece-me um mundo… mas um mundo que não existe. Que me dizem, rindo, que não vai existir. Não respondo. Porque sei que ali se vendem só pastéis para matar a gula. E o que eu tenho é fome de justiça.

 

Não sei se as lágrimas se medem em milímetros, como a chuva. Nem se um choro de 12 mm é um choro fraco. Mas apetece-me chorar.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 2 de abril de 2024

Caridade

 


Não quero saber se temos o mesmo sangue. Ou se somos amigos de longa data. Ou conhecidos. Ou fruto de um flirt qualquer. Não quero saber se dormimos juntos. Amantes de noites ocasionais. Ou amantes de noites regulares. Ou cama sem a dignidade que cabe na palavra amante.

 

Não quero saber quem tu és… Não faças o favor de me amar!

 

Eu nunca precisei que me amassem por caridade e dispenso a compra e venda de favores emocionais.

 

Se queres salvar a alma, sai à rua e alimenta quem tem fome. Vai dar o teu tempo aos idosos nos lares. Mudar a fralda de órfãos e crianças retiradas às famílias, por falta de amor ou dinheiro. Envia as roupas que despiste ou que te despiram para os países de terceiro mundo. Não deites lixo para o chão. Evita o plástico. Recicla. Toma banhos mais curtos. Desliga a torneira enquanto lavas os dentes. Come menos carne. Amarra-te às árvores que vão ser abatidas. Assume-te contra a guerra. Qualquer guerra. A guerra de um. A guerra do outro. Sê pacifista. Objetor de consciência. Vai às manifestações. A todas! As climáticas e as que fazem mau clima para quem está no poder. Vota. Mas vota a pensar nos outros e não no teu umbigo. Planta árvores. Não arranques flores. Vai com baldes de água apagar incêndios. Dá lume a quem quer fumar uma ganza e se esqueceu do isqueiro. Mantém a porta aberta para a pessoa atrás de ti entrar ou sair. Vai a pé ou de bicicleta. Dá conferências, palestras, workshops e Ted Talks sobre a bondade e a empatia. Começa grupos temáticos de apoio às vítimas de abuso, de agressão, de luto, de vício ou de trauma. Faz caridade com o mundo, que bem precisa. Eu dispenso.

 

Eu nunca precisei que me amassem por caridade! Por isso, se estás a tentar fazer à alma o que os suinocultures fazem aos porcos, não faças. Eu não sirvo de lavagem, para nutrir o ego de ninguém. Estou muito cansada de cobrança. Estou muito cansada de opiniões. Estou muito cansada de favores e favorzinhos que nunca pedi, cobrados por dá-cá-aquela-palha. Não sou lavagem nem burro para gostar de palha. Não faças o favor de me amar.

 

Mas, por favor, reserva a energia que te tomaria esse favor. Esse esforço. Esse. De me amares. De fingires que amas. Reserva-a e vai fazer algo que valha a pena.

 

O mundo está muito mais necessitado de amor do que eu estou. Porque eu me amo. Muitíssimo. E, mesmo que não faça tudo o que mundo precisa, tento. Tento dar esse amor imenso que me chega e sobra, espalhando-o um pouco por toda a parte.

 

Tenho a alma lavada de bênçãos e dispenso caridade.

 

E o único favor que peço é que, se um dia eu quiser esse tipo de afeição, se um dia o pedir, me matem. Será, certamente, porque esgotei o amor que tenho para dar. E o meu papel na Terra estará, então, cumprido.


  Marina Ferraz




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