Gosto de ler livros usados. Principalmente livros usados que já foram lidos. Que trazem alguns traços de manuseamento. Páginas amarelecidas do tempo. Lombadas com pequenos riscos verticais, acusando abertura e que nos permitem saber que a espinha vertebral da obra, ali colando ou cosendo o miolo, sofre já os males da idade. Como entendo esses livros! Já lá vai o tempo em que a minha não tinha dano...
Um livro usado é um livro que já fez companhia a alguém. Que já se deu a alguém. Que, possivelmente, já dormiu na cama de alguém. Que, provavelmente, andou de mãos dadas com o absurdo da paragem, permitindo que o cansaço mergulhasse na história, na aventura da página seguinte.
Um livro usado já transformou pessoas apáticas em super pessoas. Já lhes deu alento. Já lhes segurou a solidão, agitando-a até que fosse apenas solitude. E já beijou na boca o tempo, já se estendeu pela imortalidade da mente humana e enraizou ideias, como quem rega a planta do canteiro.
Alguns livros usados não foram usados. Chegam-me às mãos, ansiosos e desconfiados dos meus intentos. Como se tivessem medo de que a capa lhes seja aberta pela primeira vez. Será que dói? Perguntam-me isto. Tento ser gentil com os livros usados que ninguém quis ler. Prometo-lhes que não os vou magoar, à medida que folheio uma página e outra. Carícia suave e terna, que eles acabam por amar, silenciando as perguntas e rendendo-se, enquanto descobrem que as mãos são mais suaves do que as prateleiras, e aprendem a respirar com os pulmões todos, sem a compressão dos irmãos-livro renegados que os apertavam.
Alguns livros antigos são arrancados das mãos de donos negligentes. Muitas vezes nem foram lidos, mas apenas maltratados. Estes são os mais difíceis de domar. São livros que não sabem aceitar um carinho, porque nunca viram carinho. Que têm medo de entrar na carteira, porque foram fechados e arrastados em mochilas, batendo contra todo o tipo de material, sem cuidado. Trazem capas e folhas amassadas. Encolhem-se, quando tentamos pegar neles. São desconfiados, difíceis de conquistar. Demoram a aquietar-se. As páginas vêm muitas vezes sublinhadas e riscadas, pendurando aqui e ali um homem-traço enforcado. Às vezes, quando perdem a vergonha, contam-me que foram à escola, mas não ensinaram nada a ninguém. Dizem isto com mágoa. Não era o que esperavam quando os tiraram da prateleira, na livraria. Tiveram os sonhos vilipendiados. Apetece-me beijar estes livros. A pouco e pouco, vendo-me o cuidado, eles aquietam-se. Quando o fazem, tornam-se os livros mais fiéis e dóceis. São livros que se lembram, depois de esquecer, o tamanho do verbo amar.
Quando arrumo estes livros nas prateleiras, depois de lidos, eles esperam que eu saia e falam uns com os outros. Contam que fiz chamadas apenas para ler frases soltas a outras pessoas. Que, sozinha, fiz comentários em voz alta, enquanto os lia. Que lhes disse “boa noite” sempre que me deitei depois de ler algumas páginas ou capítulos. Que, por vezes, me veem a levantar a custo porque me deitei três capítulos mais tarde do que o previsto. Ouço-os a rir, nas prateleiras. Soam todos gentis e felizes. Calam-se quando eu entro, evidentemente... só me falam para me contar as histórias que trazem dentro. Mas o que dizem uns aos outros, é muito mais...
Na caixa ao lado da prateleira, estão os livros que ainda não li. Ouvem estas conversas e aguardam pela sua vez. E, lançando as mãos ao próximo, eu amenizo-lhes a ansiedade. Calma, já aí vou! Irei. Enquanto puder.
Um dia, a capa da minha própria vida será definitivamente fechada. Encerrará o seu último capítulo. Espero que alguém cuide dos meus livros. Que alguém diga: foi a sua única pena, morrer antes de os ler a todos. Que alguém seja bondoso ao manuseá-los. Que alguém saiba que eles foram – são – o motivo pelo qual nunca fui e não sou só.
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