quarta-feira, 20 de maio de 2009

Peças Soltas

Vá lá… não tem mal nenhum! Vamos fazer de conta que somos crianças. Que não temos responsabilidades nem horários. Que tu não precisas de sair agora para ir trabalhar e eu não preciso de ir tratar das minhas coisas. Vamos fingir que não temos nada para fazer além de prestar atenção um ao outro, está bem?
Sentamo-nos no chão de pernas entrelaçadas uma na outra, frente a frente. Eu mexo desajeitadamente no cabelo, enrolando-o no dedo com a típica desatenção de quem pensa no que jogar a seguir e tu ris da minha incoerência sem sequer saberes que é isso que te leva a rir.
Então, fingimos que não sabemos nada um do outro. Pode ser? Eu conto-te um sonho meu e tu contas-me um teu, depois eu conto-te um segredo e tu fazes o mesmo. Podemos começar pelas coisas mais simples. A tua cor favorita, o que mais gostas de fazer, qual é o teu clube de futebol… mas tu sabes que são só dois segundos até eu saber quais são os teus medos, de que é que te arrependes mais na tua vida, o que gostavas de ter feito e não fizeste (e porque não fizeste!).
É verdade que também o saberás de mim. Fragmentos do meu passado juntos num puzzle indefinido de milhares de peças. E há aquelas que nunca encaixam, não há? Acontece-me o mesmo quando penso em ti.
Quando dermos por nós, esta corrida louca e ingénua ao passado terá sido o maior erro de sempre mas, ainda assim, prefiro arriscar. Quero saber quem és! Quero saber porque é que olho para ti com olhos-estrela, porque é que me fazes sentir tão feliz.
E eu vou-te pintar de negro e roxo, as minhas cores favoritas enquanto faço o que gosto mais e imagino um futuro para nós. Não entenderás os meus medos nem as coisas de que me arrependo mais porque não sabes que elas só poderão existir depois de ti.
Quando te levantares e acabar este jogo. Quando conheceres de mim mais do que toda a gente e eu conhecer de ti mais do que devia, vai ser aí que as minhas peças soltas te vão começar a incomodar e que as tuas peças soltas vão começar a encaixar erradamente em todo o lado.
Quando acabar o jogo e tu já não estiveres sequer para te sentares comigo e fingires que somos crianças, vai ser aí que eu vou compreender que cada uma dessas peças a que não dei importância faziam parte do teu puzzle e jamais poderiam fazer parte do meu.
Mas hoje eu quero entender porque é que te olho com olhos-estrela. Quero saber porque é que me sinto tão feliz quando olho para ti.
Vá lá! Conta-me um segredo que eu conto-te um meu e não digo a ninguém o que me contares… não tem mal nenhum sermos crianças uma vez mais neste mundo onde crescer é a única coisa que parece realmente errada.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sábado, 9 de maio de 2009

Lágrimas de Pedra II


Hoje, percorri ruas e vielas. Não era a mesma solidão. Já não era a solidão de não haver mais do que ilusões e desilusões na minha vida! Era a solidão deixada pela própria solidão, a ausência desse sentimento que sempre me fez odiar o ar que respirava.
Hoje, cheguei até ti vestida de enganos e de certezas, vestida de orgulho e de esperança. E levaste os meus medos para um qualquer lugar onde jamais poderia chegar sozinha.
Esta noite, ao contrário de tantas noites, tu olhaste para mim e fizeste-me uma vénia. Os teus olhos de pedra estiveram mais perto do que nunca, a tua mão tocou o chão para me cumprimentar. Amei-te mesmo depois de terem manchado a tua fachada. Descobri que te amaria ainda que fizessem contigo as maiores barbaridades e então sorri porque é bom ainda te amar depois de tudo o que se passou…
Calou-se a multidão a teus pés e cantou-se o fado. Cantou-se a beleza, o amor e saudade. As tuas lágrimas de pedra caíram, invisíveis para todas aquelas pessoas, mas eu vi-as. Vi-as quando as guitarras começaram a tocar e quando o meu orgulho e a minha esperança passaram o meu ombro esquerdo e a minha capa foi finalmente traçada.
Senti finalmente que uma era se acabava para outra começar. E ouvi a tua voz uma vez mais, dizendo que eu ia a tempo de mudar o rumo do mundo e que fechar os olhos por um tempo não significava que não pudesse abri-los para ver tudo de forma mais clara.
Então, de capa já traçada, olhei para ti e apercebi-me de que eu era muito pequena e que a vida era grande demais para a perder numa tristeza sem razão.
Não sei se foi pelas palavras finalmente ouvidas, pelos teus olhos pousados em mim ou se foi simplesmente pela minha capa negra finalmente traçada mas senti-me feliz. Realmente feliz. Aquela felicidade completa e única que é tão rara nesta vida.
Talvez o mundo me tenha levado por caminhos errados (tortuosos, até). Ou talvez não tenha sido o mundo. Admito: talvez tenha sido eu própria a culpada dos meus caminhos! Mas esses caminhos errados levaram-me justamente para o ponto de partida. Cheguei a casa. Não sei definir como gosto de voltar finalmente para casa! Gosto de sentir finalmente que sei onde está o meu lar. E se agora me sinto assim, não terão valido a pena todos os meus erros?
As tuas lágrimas de pedra nunca vão secar, da mesma forma que algumas partes de mim continuarão infinitamente maculadas. Tu e eu temos a eternidade. Temos a maravilhosa certeza de que é para sempre! - Tu tens os teus olhos de pedra, os teus abençoados olhos que ano após ano podem presenciar as reacções de pessoas que traçam a capa pela primeira vez, olhos que podem ter um vislumbre de paixão em mil gestos para depois verem num simples olhar o verdadeiro amor. E eu, eu terei sempre esse olhar, esse olhar agora livre de grandes gestos que não valem nada, mas repletos de sensatez e de maturidade.
Cheguei a ti, nua de tristeza e amargura. Foi a primeira vez que me olhaste e viste que eu sorria. Foi a primeira vez que acreditaste na minha expressão alegre. Foi a primeira vez que conseguiste acreditar quando afirmei não ser apenas tua.
E eu ouço a tua voz, como antes ouvia. Falas-me durante alguns minutos, fazendo-me corar um pouco com algumas expressões que, de tão reais, me fazem sentir embaraçada. De súbito a música pára e tu calas-te respeitosamente. Então, ergo o meu tricórnio no ar em vez de bater palmas (afinal, não se aplaude o fado), agito-o levemente num agradecimento mútuo ao fadista que me fez pensar, aos amigos que mataram a minha solidão, às palavras que acalmaram a minha saudade, à madrinha que traçou a capa negra do meu traje minhoto e a ti, meu abrigo, que estiveste aí uma vez mais, olhando para mim por entre a multidão e vendo-me vestida de orgulho e de alegria.
A lua estava cheia e ia alta no céu um pouco nublado. O fado recomeçou e eu vim embora, saciada. Silêncio… ouçam apenas o silêncio agora! Porque é música aos meus ouvidos o bater satisfeito do meu coração!

Marina Ferraz

8 de Maio de 2009
Serenata