terça-feira, 30 de março de 2010

Hoje

Hoje ela riu e hoje chorou. Hoje, a sua felicidade verteu nos seus olhos tristes como rios de uma mágoa contente. E as gargalhadas ecoaram pelo deserto de todas as coisas amarguradas.
Acordou cedo. Estava consciente apenas da ruína. Não acreditava em nada e queria tudo. Arrastou os medos pelo braço e atirou-os pela janela, incapaz de os deixar atormentá-la.
E lavou a cara de esperança, recusando-se a chorar mais. Hoje ela viveu. Feliz e triste. Completa e incompleta. Pedaço despedaçado de eternidade ausente. E nenhuma das suas mágoas a assombrou. Nenhum silêncio veio substituir as palavras que pensava.
Hoje ela acreditou e perdeu a fé. Mas em momento algum se despediu da constância do seu ser. E, quando fizeram questão de vir roubar o sol do céu para o cobrirem de estrelas tristes, ela acendeu uma vela e respirou fundo o aroma adocicado da saudade, envolta na luz quente do passado.
Hoje ela riu e hoje chorou. Sentiu. Era raro nascer um sentimento no seu peito morto pelo tempo. Então, hoje, quando a sua felicidade verteu nos olhos tristes, como um rio de contentamento, ela vestiu o seu melhor sorriso e foi passear pela cidade dos seus sonhos.
E hoje ela viveu. Consciente e inconsciente. Feliz e triste. Completa e incompleta. Na realidade do sonho. No sonho da realidade. Na realidade sonhada. E foi noite e dia. Amanhecer e anoitecer. Tudo… e, simultaneamente, nada.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

quinta-feira, 25 de março de 2010

Copo de Morte

- Um copo de morte, por favor!
Um sorriso do outro lado do balcão. Um sorriso pelos meus olhos vermelhos. Um sorriso pelo meu rosto molhado. O sorriso de quem sempre soube que pediria a morte como salvação de momento e não como pena a cumprir eternamente.
O líquido, cor de âmbar, ardeu ao percorrer-me a garganta. Sabia bem aquele travo a fim. Aquele sabor a não mais chorar. Aquele travo agridoce que pararia o meu coração, demasiado cansado de bater.
Podia ter-me arrependido. Podia ter sentido saudades de mim. Saudades de ti. Saudades do teu sorriso que jamais voltaria a estar do outro lado do balcão, pronto a servir-me a morte.
Tudo o que senti foi a calma de poder encontrar a paz além do teu sorriso trocista.
Bebi um copo de morte para fechar os olhos à alma. Porque a minha alma estava quebrada. Sangrava sempre, invisível aos olhos dos cegos que usam apenas o olhar para distinguir o que é físico.
E a minha alma não tinha nada de imortal!
O teu sorriso matou-me a alma naquele copo de morte que apenas me parou o coração.
- Um copo de morte e a conta…
Pousei a cabeça sobre os braços e sorri. Estava feliz. E os teus olhos brilharam antes de chorarem. Antes de servires a ti mesmo um copo da mesma morte à qual me condenaste muito antes de sorrires.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

sexta-feira, 12 de março de 2010

Carta

Hoje caminhei sobre os destroços da cidade até que os meus pés sangrassem. Procurei-te em cada esquina, em cada migalha de destruição. Não vi qualquer sinal de vida. Supus, por isso, que talvez já não estivesses vivo. Antes de o dizer em voz alta, o vento tapou-me a boca com milhares de mãos e obrigou-me a seguir pelo deserto.
Como se tu pudesses ter fugido… como se pudesses ter virado costas ao nosso amor na primeira batalha desta guerra sem fim.
Caminhei pelo deserto, consciente de que era mais simples acreditar na tua traição do que na tua morte. Como poderias ter morrido, meu querido, se ainda tenho no peito um coração a bater e ele é teu?
Caminhei pelo deserto durante dias. Até que a sede e o cansaço me venceram e me deixei dormir junto a um morro de pedra. Estava frio. Lembro-me que estava frio e que as minhas lágrimas pareciam congelar naquela noite sem lua.
Não te encontrava e não entendia porquê. Estavas tão vivo dentro de mim. Estavas tão acordado na minha memória.
Os teus olhos, castanhos e doces, suaves e intensos, continuavam a fitar os meus olhos fechados, numa recordação presente. E os teus braços envolviam-me para que eu não sentisse frio. Eu sabia, contra tudo o resto, que estavas vivo. E podiam dizer-me que era loucura. Não importava. Era a minha verdade, ainda que fosse mentira para todas as outras pessoas.
Acordei com a brisa nos meus cabelos. Sentia-me tão cansada como antes. Como se nunca tivesse dormido. Agarrei um punhado de areia e apertei-o com força, tomando força para me levantar.
E tornei a caminhar, como se pudesse percorrer o mundo inteiro com os pés feridos, à tua procura.
Por fim, regressei à nossa cidade destruída. Outra vez. E tu eras um nome numa pedra. Numa pedra que te lembrava como se não estivesses vivo. Como se não fosses aparecer para me perguntares onde tinha estado. Um nome e uma data numa pedra. Apeteceu-me rir da ironia. Tinhas sido tanto. Como podias ser apenas um nome?
Puseram-me a mão no ombro, para me confortarem. Como se ter acordado fosse um motivo para terem pena de mim. Eu limitei-me a afastar-me daquele toque que não era teu. Não podia aceitar o apoio de ninguém. Afinal, eu sei que o teu coração não parou. Deste-mo e eu guardei-o sempre dentro de mim. Tratei-o com cuidado. Fi-lo sobreviver à guerra, à dor e ao deserto.
Fui eu que perdi o coração. É o meu coração que reside debaixo dessa pedra com o teu nome. Foi ele que parou de bater no teu último suspiro.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

terça-feira, 2 de março de 2010

Dúvida

Quem compra um objecto partido,
Ainda que seja o melhor do mundo?
Quem escolhe ler um livro sem sentido
Ainda que digam como é profundo?

Quem ama uma loucura incoerente
Ainda que sobeje de pureza?
Quem escolhe a tempestade, indolente,
Por maior que seja a sua beleza?

Quem não optaria por estradas
Mais certas e mais fáceis de seguir?
Quem escolheria ter vidas trocadas
Com quem só trapos pode vestir?

Quem suportaria a própria alma
Optando por uma vida infeliz?
Como chegaria a paz, a calma
Nesse tormento que não se diz?

E quem quereria um coração
Partido e remendado como o meu?
Quem guardaria a desilusão
Que o amargo destino me escolheu?

Quem quer curar fantasmas alheios
Ou beijar lábios secos de saudade?
Quem quer ouvir histórias de permeio,
Contando como é triste esta ansiedade?

Quem poderia querer-me assim,
Quando pertenço, triste, a meu passado,
E tudo o que há de bonito em mim
S’ encontra no meu coração quebrado?

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet