terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A história do degrau



O movimento é ascendente mas o chão escorrega. E aqui estamos, os dois, felizes. Como se a história tivesse terminado. Como se os teus dedos palmilhando linhas inócuas sobre a minha pele despida fossem fiéis. E queremos envelhecer juntos. Uma imbecilidade que dizemos em voz alta, como se alguém quisesse realmente ser velho. Falhou-me, aqui, perceber. Que eu queria. Ser velha.

Talvez fosse sobejamente óbvio. Mas falhou-me a perceção. Ser velha significava morrer em breve. E essa era a única maneira de ficarmos juntos para sempre. Se o sempre fosse um espaço curto e algo ambíguo, feito das nossas juventudes. O mundo está todo ao contrário.

Subimos um degrau. O degrau era de mármore. Antigo. Suportando a cruz de um olhar sobre a imensidão. E, subindo o degrau, subíamos também o sonho incauto. Fomos demasiado imprudentes. Mas tentei dar-te a mão para que não caísses. Ou para que caíssemos juntos. Mas o mundo está todo ao contrário.

Era uma diferença incontornável entre nós. Tu querias estar vivo. A mim, sempre me importou pouco se estava viva ou morta… só não queria estar triste outra vez. E achei que, subindo o degrau, ainda que caíssemos e nos finássemos ali, haveria felicidade nas horas poentes da vida.

Então, segurei-te. Era a história do degrau que me dava inspiração e esperança. Porque o via, apoio e amparo, de pés que queriam ir lá: ao lugar onde o tudo é o todo que se faz inteiro. À torre mágica dos castelos encantados de contos de fadas que começam com “era uma vez”. Mas o mundo está todo ao contrário.

Subo sozinha o degrau. Porque não quiseste ser velho, como eu queria ser velha. Juntos. E o degrau ficou vazio dos teus pés, à medida que largando a minha mão te apoiavas noutra e continuavas a escalar, rumo ao céu.

A minha torre é o mundo. E talvez a história do degrau seja também a minha. Pisada e repisada. Suporte e sustento. Servindo apenas para levar ao topo quem só lá se dispõe a parar. O mundo está todo ao contrário.

Ainda quero ser velha contigo e já estou velha sozinha. As rugas inusitadas da minha alma põem o sol da vida três vezes num dia. Na hora do silêncio, na hora da memória e na hora do cansaço. A velhice sabe a água com gelo. É fria e insípida… e cerca de 70% do meu corpo. Dizem-me que tenho a vida toda e apetece-me gritar. Teria. Mas o mundo está todo ao contrário.

Vou condescendentemente atrás de explicações que não existem. No degrau de mármore. Na vida e no desespero. Em ti. Descubro que sou ou fui vida. Descubro que a história do degrau é também a minha. Respiro no vidro que embacia e escrevo nele mais um poema que se apaga da história do mundo.

E talvez nem seja o mundo… Talvez, na vida real, seja simplesmente tudo ao contrário. Talvez seja por isso que, aqui, os contos de fadas começam com “viveram felizes para sempre”. E, quando dás conta, já “era uma vez”.

A história do degrau é também a minha. Sento-me nele, para virar costas à subida. Estou cansada. Olho a escadaria marmórea que inunda com o sangue e o suor que dediquei ao sonho para o qual, afinal, ia sozinha. Lanço o olhar sobre esse passado e sei que valeu a pena. Tenho este texto e todos os seus irmãos. Sou mãe de poemas. Estou morta e ainda fértil. Agarro-me à ideia de que, a mim, sempre me importou pouco se estava viva ou morta… mas sei que não queria estar triste outra vez. Enfim… a história do degrau é também a minha. E o mundo está todo ao contrário.

A história do degrau é também a minha. Somos só o meio para outro fim. Está na hora do cansaço. Sinto-me triste e sei que sou velha. Sento-me no degrau. Tudo o que não dói adormece. O resto de mim sofre de insónias. E aproveita para entrar na hora do silêncio, colhendo memórias como flores sem história. Fazendo um bouquet de solidão. Sentindo que o mundo está todo ao contrário.





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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Luz




Nem a luz direta entra nos olhos vazios, conquistados pelas sombras e os abismos do mundo. Ser poeta não é ser luz. É justamente ser sombra e abismo. Morar nos olhos que vertem. Para que outros olhos se iluminem.

Pedaços fragmentados de gente. Que passam pelas ruas, como gente. Mas sem que ninguém veja. Que são gente. Fragmentos inusitados e gestos que são sombra. Encontrando nos murais da rua mensagens. Também elas fragmentos com vida própria. Trazendo negrume à luz das avenidas.

Colocamos sal nas feridas. E pedras sobre os olhos cansados da insónia. A culpa é da tinta – pensamos. Do caixão. Da ideia que permanece rota e sentada sobre o sono. Acutilante. Constantemente chamando. Constantemente querendo saber se falta muito para chegar lá. À luz. A essa que não temos.

Recordo a água nos teus olhos. Um mergulho veraneante, numa espécie de sol que tu tens e eu nunca tive. Pergunto se fui o espaço onde a tua luz se acendeu ou o local onde ela se foi. Terei sido o abismo e a sombra de ti? Preocupa-me que eu seja escuridão. Mas preocupa-me mais que queiras que eu seja apenas a luz lisa do sol alto do meio-dia. E se eu estiver condenada a ser sombra e abismo? E se for isso – já pensaste?! – a fazer brilhar o sol que julgas ser teu, enquanto me julgas por roubá-lo ao céu, todos os dias, para que possas tê-lo?

Não! Tens razão. Eu não sou luz. E não brilho sob o toque luminoso do sol que trazes contigo. Não gero alegrias no meu ventre podre e infértil. Em vez disso, arranco do peito o fino fio de cristal que me fazia gente no olhar alheio. Afio-o noite dentro. Faço um punhal que me rasgue a pele. Faço do sangue, tinta. Anoiteço. Escrevo-te uma constelação de alegrias para que possas, no dia seguinte, ser novamente um espetro dissidente da minha dor e viver a tua vida em paz.

Drena-me a tua presença porque te dediquei a minha. Sobra pouco do sal nas minhas entranhas quando tudo o que quero proteger em mim és tu. E dói. E, porque dói, escrevo. E, porque escrevo, sinto a luz esmorecer, como um dia que anoitece. Nem a luz direta entra nos olhos vazios, conquistados pelas sombras e os abismos do mundo.

Não, meu amor, eu não sou como toda a gente. Eu nem sei se sou gente. E, por certeza, trago a noção de que só amo os verões porque sou gelo à espera de derreter novamente no sol dos teus olhos.

Mas ser poeta não é ser gente. Ser poeta não é ser luz. É justamente ser sombra e abismo. Morar nos olhos que vertem. Para que outros olhos se iluminem. Para que os teus se iluminem.

Não há luz direta que me entre nos olhos. E talvez seja melhor assim. Para que não vejas que eles choram. E nunca saibas que o fazem para que os teus possam sorrir.






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terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Por outra pessoa

Autor da foto: Miguel Pião



Desculpa. Não quero ser indelicada nem ferir os teus sentimentos. Eu sei que ainda acreditas que te amo. E, em alguma medida, sei que tens razão. Eu nunca deixei de amar ninguém. Mas, e é esta a honestidade tosca que já não consigo calar – desculpa – estou apaixonada por outra pessoa.

A pessoa por quem eu estou apaixonada faz de mim, indubitavelmente, alguém melhor. É ele que me anima quando tenho um dia mau por causa do trabalho e, se as minhas inseguranças me pesam ao final do dia, é ele que me diz que eu sou especial e que tudo vai ficar bem.

As suas palavras irritam-me e comovem-me na mesma medida. Fazem de mim algo melhor do que eu e acreditam em mim mais do que eu consigo. Levanto-me das palavras que ele diz e abraço-as. Ele acolhe o abraço. Quer o abraço. Às vezes pede-o e diz que o faz sentir-se em casa.

A pessoa por quem estou apaixonada tem sempre assunto de conversa. Sobre o dia recheado ou sobre a pacatez das horas, onde nada se passou. Mas não se torna silêncio nem me abandona com a solidão, sabendo-me escrava de memórias. Na verdade, ele mesmo é memórias. Algumas felizes e algumas tristes, todas cheias de alma, porque ele não sabe ser metade de si. Há um todo no tudo que ele cultiva. E, por isso mesmo, quando fala em eternidade, eu não sinto que ele vá. Ainda que os medos me façam pensá-lo e até dizê-lo. Não. Não sinto que ele vá.

Estou apaixonada por outra pessoa. Tu achas que é por ti. Mas não. Já não. É que, quando te foste embora, eu comprei a tua caixa. Lá dentro, basicamente, não há nada que seja teu. Mas está tudo o que me deste. E algumas fotos, que pendiam pela casa. Descobri, em dois minutos, que teria bastado uma caixa com metade do tamanho. Acho que fui mesmo assim. Acreditei que eras mais. Que me davas mais. Mas os espaços são feitos de ar. E sufoco. Com saudades dessa versão de ti que, pura e simplesmente, não existe. Descobrindo que estou apaixonada por outra pessoa.

Tu achas que és tu. Talvez pudesses ser tu. Será que podes ser tu? Hoje, eu já não sei. Mas, neste momento, não és. Estou apaixonada por outra pessoa. Aquela que tu, de tanto defenderes, passaste a crer que eras. Mas não és. Porque essa pessoa não mentia, prometendo horas que não dá, braços que não estende e carinho que não dedica. Essa pessoa, preferiria a verdade dura: o tempo passou e fui. E eu choraria, talvez. E doeria, talvez. Mas pela partida. Não pela mentira, onde pende a promessa da presença no lugar do silêncio que se planta.

Não quero ser indelicada nem ferir os teus sentimentos. Eu sei que ainda acreditas que te amo. Amo. Nunca deixei de amar ninguém. Mas estou apaixonada por outra pessoa. E olhando para ti o que mais magoa é isso mesmo: ver-lhe a casca e já não conseguir vê-la. A ela. A essa pessoa por quem estive, estou e estarei apaixonada para sempre. Essa pessoa que mora na metade vazia da caixa.






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terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

As leis da física




O meu pai ensinou-me. Por isso, provavelmente, não é culpa de ninguém. Senão minha. Que não aprendi. O mundo é física. Tudo é física. Tudo se rege pelas leis inevitáveis e incontornáveis. Dela. Da física. Não é culpa de ninguém. Senão minha. Que não aprendi.



Pedi-te. Tenho este amor. Sou toda amor. E o amor que sou e tenho é todo teu. Por isso, para que ele não me pese. Para que ele não deixe marcas vincadas na pele da minha alma. Por favor. Guarda-o. Coloca-o nesse coração dourado.

Pedi-te. E anuíste.

O sentido das coisas que não se vêem reside nas coisas que se sentem. Vi-te, atabalhoadamente, atirar o meu amor para dentro do peito. E vi sempre que ele te vertia. E notei-te o esforço intemporal para colocares dentro de ti os seus tentáculos de sonho.

Não notaste o peso de imediato. Primeiro, carregares o meu amor, meio por dentro, meio de arrasto, foi simples. Sorrias. Mas depressa começaste a perceber que o meu amor, dentro e fora de ti, era uma espécie de sombra. E escureceu-te o olhar. Escureceram-te as mãos. Essas, com as quais tentavas agarrar os excessos do amor e colocá-lo de volta no peito.

Eu pedia. Tenho este amor. Sou toda amor. E o amor que tenho e sou é todo teu. E tu tentavas, desesperado, colocar dentro de ti esse pedaço inusitado de mim. Também tu gostavas de acreditar que ele era teu.

O amor pesa. Desculpa. A diferença subtil entre leveza e leviandade tomou forma nos espaços tentaculares do meu amor. Talvez ele se tenha agarrado à tua pele. Tolhendo-te os movimentos. Prendendo-te. O meu amor, esse opressor, não queria impedir-te. Queria apenas evitar cair no chão como, naquele tempo, tinham já caído tantas e tantas promessas.

És a minha pessoa. E tu a minha. Para sempre. Sempre e para sempre. Porque nunca deixei de amar ninguém. Nem eu.

Foste arrancando os ramos secos, penetrantes, desse amor que se agarrava a ti para não cair, criando raízes dentro do teu peito e proliferando, qual erva silvestre, pelo resto do teu sistema, pela tua pele, pela sala que te acolhia.

E eu, que te abraçava, sentia o amor. E pensava que ele era teu. Não imaginava que abraçasse, nos teus braços, o meu amor por ti.

Mas tu percebeste. E libertaste-te do amor. Do meu amor. Não é culpa de ninguém. Senão minha. Que não aprendi as leis da física.



Em tempos quis. Muito. Que guardasses o meu amor dentro do teu coração. Desculpa. Sempre fui mais de emoções do que de racionalidades. Não entendia as leis da física. Não podes. Hoje sei. Tiveste de procurar um amor mais pequeno. De o colocar nesse coração dourado. Porque o meu amor, pela sua dimensão infindável, não cabia.






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