Na voz de Katia Guerreiro
Eu sei muito bem o que acontece quando morre o amor. Já o
disse. E alguém já o compôs. E alguém o instrumentou. E alguém o cantou. E
alguém o ouviu. Eu sei muito bem o que acontece quando morre o amor. Mas não
sei. Não faço ideia. Pergunto às estrelas e ao vento. E elas brilham e ele
sopra. Riem-se. Mas não respondem. O que acontece quando o amor não morre?
Eu tentei afogar o meu amor. Mas o país estava seco e ardia.
Na falta de água, nessa seca que deixa o chão argiloso cheio de frestas, tentei
afogá-lo nas minhas lágrimas. Manter-lhe a cabeça submersa nesse mar feito de
gigantismo e mágoa. Mas o amor passou a respirar o sal. Temperou com ele as
feridas para que não fechassem. E disse. Eu
sou resiliente. Eu vivo. O amor não morreu.
Eu tentei rasgar o meu amor. Agarrar-lhe nos membros, meio
toscos. Trucidá-los. Insistir que ele exibia traços desconexos nas lembranças.
Esmiuçá-lo, tão pormenorizadamente, que o meu encontro com a dor se tornasse
inevitável e jorrasse apenas sangue do que outrora fora seiva e forma de estar.
Mas o meu amor rasgado foi como a cabeça da Hidra de Lerna. E, de todas as
vezes que eu o retalhava, ele vinha mais forte, com mais identidades toscas,
rir aos meus ouvidos. Dizendo. Eu sou
plural. Eu vivo. O amor não morreu.
Eu tentei alvejar o meu amor. Usei balas de palavra. Usei
balas de silêncio. Usei balas de coreografia. Usei balas de grito. Usei balas
de desapego. Usei balas de desespero. Falhando o alvo, que eras tu e acertando
irremediavelmente no efeito de boomerangue, num ato hostil que sempre me
acabava no peito, esburacando-o. E, dos espaços abertos pela bala, caíram as
esperanças, porque eram pequenas. Mas não o amor, enorme e desmedido. E, com a
voz saindo a par com a esperança, ele dizia.
Eu sou eterno. Eu vivo. O amor não morreu.
Eu tentei esfaquear o meu amor por ti. As lâminas eram finas
como folhas de papel. Porque eram folhas de papel. E nelas, com canetas
igualmente finas - tantas vezes cor de realeza, tantas vezes cor de sangue – eu
ia esventrando, com investidas cruas, o que sobrava de pensamento leve para
poder ser crua e cruel. Inabalável, nos cortes finos da lâmina das folhas do
meu eu caduco, a voz ainda falava. Eu sou
a tinta. Eu vivo. O amor não morreu.
Eu tentei envenenar o meu amor por ti. O meu veneno era a
acidez da alma, que te odiava. Odiava. Odiava. Até odiar menos. Até não odiar.
Até só dizer que odiava. Até saber que nunca tinha odiado. E acabar a dizer
“amo-te”. O meu veneno foi uma sequência de impropérios, com “foda-ses” e
“merdas” jorrados contra paredes nas quais só eu batia a cabeça. Sem medo das
formulações frásicas, havia o riso. Permanente. Da voz. Eu sou a palavra. Eu vivo. O amor não morreu.
Eu sei muito bem o que acontece quando morre o amor. Já o
disse. E alguém já o compôs. E alguém o instrumentou. E alguém o cantou. E
alguém o ouviu.
Eu sei muito bem o que acontece quando morre o amor. Soube o
que acontece quando morre o amor no mesmo dia em que ele desapareceu dos teus
olhos. E no mesmo dia em que, de dentro deles, desapareceu a sombra poética de
todos os meus sonhos e passou a existir vazio.
Eu sei. Sei muito bem o que acontece quando morre o amor.
Nascem poemas, poetas, canções e futuros inesperados.
Mas eu não preciso de saber o que acontece quando morre o
amor. Preciso de saber outra coisa. Isto. Como acalmar a mágoa. Como amortecer
a dor. Como travar as lágrimas. Preciso de saber o que fazer quando o amor não
morre.
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