terça-feira, 19 de novembro de 2019

Acendes-me


Fotografia de Raul Pinto

Apagaram-me o sol. A luz dos olhos. Poentes. Aliás, toda a gente o diz. Que eu sou sombra. Que eu sou negro. Uma espécie de buraco onde não há espaço para que caiba senão o vazio.

Disseram-me. Já perdeste o que nunca tiveste. Como se alguém pudesse. Perder o que nunca teve. Senta-te e espera pela morte, que é melhor. Eu sentei. Esperei. Pela morte. No escuro de mim e no vazio das auroras que nunca nasciam nas paredes desse lar desfeito.

Não foi porque não quisesse levantar-me. Mas a desolação era chumbo. A desolação era metálica e sabia a sangue. E eu só conseguia mover os olhos para o soalho onde definhava, porque eles ardiam com as lágrimas, sempre que eu tentava procurar o céu. E não havia céu. Eu sabia que não havia céu. Só um teto repleto de rachas e humidade. Só um negrume igual ao meu, feito das poeiras do antigamente.

Apagaram-me o sol. A luz dos olhos. Poentes. E, de rojo no chão, olhos incansáveis de chão, enchendo o chão de rios que tinham nascente em mim, eu desejei pés que me partissem os ossos. Adolescente desejo de chorar com razão justificável.

Mas havia um rio. Um rio que se juntava ao meu, no meu chão, de quando em vez, criando uma afluente de qualquer coisa inexplicável. Vindo, sei lá eu de onde. Fazendo, sei lá eu o quê.

Servos da tristeza intemporal da vida, nenhuma das nascentes que somos parecia mais do que o curso para um oceano de morte. E ambos honrávamos os deuses da efemeridade. E ambos desejávamos a morte. Então, descolando o rosto do soalho, quisemos saber. Pelo menos saber. Que outra nascente é essa, que flui quando o sol se apaga. E a luz dos olhos. Poentes.

Os teus olhos eram mel. E mágoa. E tinham histórias sobre o que podia ter sido e não foi. Histórias sobre a perda do que não se teve. Como se alguém pudesse. Perder o que não tinha. E, sentando-me para ver melhor o que me entrava, de forma tão inusitada, nos dias vazios, vi-te acender a luz. Essa luz. Não a do sol. A dos meus olhos. Ortivos.

Escondemo-nos nas sombras. Permanecemos nas sombras. O sol que não há secou o rio que não flui. Há uma luz acesa. Acendes-me. Dentro das quatro paredes da casa. Sarando, aos poucos, as rachas do teto. E as minhas.

Acendes-me. O corpo débil. A mísera vontade. A vontade de olhar para o céu na esperança de ver céu, sem ardor nos olhos. Acendes-me.

Sim. Em tempos, apagaram-me o sol. A luz dos olhos. Aliás, toda a gente o diz. Que eu sou trevas. Que eu sou negrume. Dentro destas paredes não sou. Os dias cabem nas pontas dos teus dedos. Acendes-me os olhos. Gostava de acender os teus.





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