terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Votos de ano novo

 ou Filosofias de uma flor que ninguém arrancou




 

O que quero para o próximo ano? Bem...

 

 

Antes de ela sair de casa, a mãe gritou-lhe. Leva o casaco. Logo quando vieres, estará frio.

 

Nesse momento, outra menina levantou-se do lugar para o ceder ao idoso quando entrou. O autocarro ia cheio. Empoleirou-se levemente, com a parca extensão de braço, nos pequenos ferros colocados para o efeito. Pousou os olhos na rua.

 

Na rua, o mendigo saía da loja, contando moedas pretas e com uma lata de comida para o cão que o esperava à entrada, junto ao passeio mal cuidado.

 

Mais à frente, a senhora levava sacos cheios da loja e tinha enterrado o salto num espaço aberto entre duas pedras. O cavalheiro olhou-a nos olhos, reconhecendo uma espécie de tristeza funda nos olhos dela. Baixou-se e ajudou-a a libertar-se. Sem mais, despediu-se, cortês e atrasado, na direção do emprego.

 

Irritado com a vida, com o mundo, com o potencial de chuva anunciado na televisão, o patrão ameaçou novamente o cavalheiro de que iria despedi-lo por ser um inútil, deixando um espaço de mágoa que o levaria à varanda para chorar sem vergonha.

 

Na varanda, a colega de longo prazo acabou de engolir a penúltima bolacha do pacote – as favoritas dele - e estendeu-lho, oferecendo a última. Depois, afastou-se para lhe permitir que tivesse privacidade. Ele sorriu levemente e pousou os olhos delgados na rua.

 

Na rua, passava uma senhora idosa com uma criança pela mão, ensinando-a a acariciar as flores sem as arrancar. E, ao passar, impaciente, um jovem gritou com ela. Sai da frente velha! Ela pediu desnecessariamente perdão e a menina, percebendo-lhe o ânimo triste, convidou-a a ir até à rua perpendicular, dar uma moeda ao sem-abrigo que tinha o cão.

 

No final do dia, o idoso contou à esposa que uma menina lhe tinha cedido o lugar no autocarro. E a mulher respondeu que, na sua saída com a neta, tivera encontros menos simpáticos. Quando a filha chegou, para ir buscar a menina, falou do gentil cavalheiro que lhe tinha poupado complicações, ajudando-a a libertar-se no passeio. No mesmo passeio, o sem-abrigo depositou uma festa entre as orelhas caninas e deu uma trinca grande na sandes que comprara com o dinheiro que a senhora gentil e a menina bonita lhe tinham dado.

 

A flor, que ainda estava viva e que ninguém tinha arrancado, comentou então com as ervas e à árvore mais próxima:

 

É curioso.

As pessoas que melhor entendem o amor são as que não tentam explicá-lo.

As pessoas que estão lá nos momentos mais complicados, são as que nunca to prometeram.

As pessoas que conhecem o mais fundo da tua alma são as que nunca tentam definir-te.

As pessoas que te criticam são as que têm maiores problemas de autoestima.

As pessoas que respeitam o teu espaço são aquelas que, sem tentar, conquistam mais espaço em ti.

As pessoas mais bondosas são as que passaram maiores provações.

As pessoas mais rudes são as que ficam desarmadas com carinho.

As pessoas que se calam mais são aquelas que têm mais para dizer.

E as histórias que estas pessoas contam trazem gente dentro, como contos para crianças adultas que ainda têm fé numa humanidade que as trai.

 

Apagou-se a luz na casa do cavalheiro. Chegando à janela, observou a lua. Descrente do mundo e lembrando o olhar fundo de tristeza da senhora que ajudara e o toque compassivo da colega que o deixara chorar. Lembrando o cão que batia o rabo contente aos pés do mendigo que o alimentava.

 

Os comprimidos que tinha sobre a mesa eram parte do plano da noite. Parte de um plano de fim. Desistiu da ideia. Pensando neles. Neles e nesses pequenos gestos de bondade. É que, quando os pensava, ainda encontrava, no mundo, aquele restinho inebriado de fé.

 

Este é o segredo dos segredos que ninguém conta. Visível para quem olha com a alma. Ainda há pessoas que parecem árvores. São elas que alimentam o mundo de oxigénio. São elas que fazem com que valha a pena acordar novamente amanhã.

 

Por isso, sei exatamente o que gostaria que acontecesse no próximo ano! E os desejos são estes: Que para o ano, alguém acarinhe a flor sem a arrancar. Que alguém ceda o lugar do autocarro a quem precisa mais. Que alguém tenha um ato de bondade com um estranho na rua ou com um conhecido que precisa de apoio. Que alguém dê uma moeda a um sem-abrigo. Que alguém fale sobre o que de bom encontrou no mundo naquele dia.

 

Quanto a mim... que a minha mãe continue a lembrar-me de levar o casaco quando sair... para que eu possa manter o corpo e o coração quentes, mesmo no Inverno mais frio!


  Marina Ferraz




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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Casa (sem som)*

 



Agarro, no ar, todos os conceitos. Bato levemente sobre o peito. No lado esquerdo do peito. Onde moram ilusões. Onde moram segredos. Amores. Eternidades. Cheguei. Digo. Cheguei. Lá. A casa...

 

O coração bate. Cada batimento é isso. Casa. Casa. Casa. O lugar onde se guarda o todo. O lugar onde se guarda o tudo. O lugar onde a família é amor. Onde o amor é pleno. Onde o amor é sempre e para sempre.

 

Casa. Um batimento de coração, solto. O espaço que a mão toca, para acender a luz da alma. O recanto onde os dedos se dão, enlaçando as estrelas com todas as possibilidades do amanhã.

 

Existe um ritmo cardíaco acelerado nessa palavra que se diz sem som. Casa. Casa. Casa. Um aceno de “bom dia”. Um beijo de “boa noite”. Um aviso lento para não te esqueceres do casaco nos dias frios. Um aviso morno para não te esqueceres do guarda-chuva quando as nuvens estão carregadas. Um aviso ténue para levares um abraço quando o dia é triste.

 

Amor. Casa é amor. Amor é casa.

 

E amar é encontrar uma casa. Essa que fica aqui. No lado esquerdo do peito. Onde moram ilusões. Onde moram segredos. Amores. Eternidades.

 

Repete-se, até ser canção. Não tem voz. Não tem som. Tem pulsação. Casa. Casa. Casa. Casa.

 

Constrói-se. Repete-se. Vive-se.

 

Melhor do que ter casa, é ser casa. Nesse batimento cardíaco que acelera. Tocando em silêncio. No lado esquerdo do peito.

 

Estendo-te a mão.

 

Vem comigo. Digo. Vem comigo. Anda!

 

Vamos...

 

... para casa.


  Marina Ferraz


*Texto inspirado por uma aula de Língua Gestual Portuguesa, 

sobre o gesto relativo à palavra "casa",




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terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Somos o que amamos?

 


Somos o que amamos.

 

Foi esta a frase que ela me disse. E depressa se apressou a acrescentar. Vi esta frase num livro que estou a ler e achei lindo. Acho que daria um texto incrível.

 

Olhei longamente para ela. Para a frase, isto é. Mergulhei nela. Deixei que o frio da sua simplicidade chegasse aos olhos e pensei. Eu não concordo.

 

A palavra amor vive desconexa e limitada. São as pessoas que a tornam desconexa a limitada. Palavra de todo o uso, que nem consegue definir, hoje em dia, o seu próprio significado... quanto mais a mim!

 

Todo o universo de coisas que eu sou não cabe no que eu amo. E não deveria ser quem e não no que? Somos quem amamos? Existe amor que se ligue a coisas? Que se esgote nas coisas? Que tenha a ver com algo material? Que não se trate de uma conexão de almas? Não sei...

 

Claro. Posso facilmente assumir que amo escrever. E não é gente. Mas também não é tarefa. Nem objeto. E talvez eu nem ame escrever. Talvez me ame e escrever faça parte disso. Não creio que se amem coisas...

 

O mergulho sufoca-me brevemente enquanto corrijo a frase. Somos quem amamos. Mas o frio da simplicidade corrigida, ao chegar aos olhos, ainda me fez pensar. Nó de peito. Uma espécie de azia. E pensei. Eu não concordo.

 

Assuma-se que se sente. Amor. Não o sucedâneo que se vende nas telenovelas e nos romances de cordel, nem tão-pouco as cápsulas temporalizadas de sentimento-instantâneo que se vende pelos Tinders e Companhia. Amor. Assuma-se que estamos a falar do amor incondicional – mãe-criança, irmã-irmão, alma gémea-alma gémea – o que define isso de amar alguém? Se o amor for despido de posse. Se o amor for despido de condição. Se o amor for despido de tudo até ser só ele próprio... Ser quem ama não é ser quem se ama. Ser quem ama não é ser de quem se ama. Principalmente não é – nunca será – um possessivo.

 

Risco mentalmente a minha própria correção e percebo que saber o que é a plenitude do amor e o que é a plenitude do eu são, possivelmente, as duas únicas definições impossíveis. Mas não somos o que amamos. Não somos quem amamos. Não somos de quem amamos. Quem somos então.

 

Busco em mim definições que não há sobre a minha própria identidade e corrijo. Somos quando amamos. Parece melhor, mas pressupõe que sejamos em função do outro, ainda que seja apenas em função do que o outro nos faz sentir. E não. Não! Não concordo! Não concordo com a redução tosca do eu-em-função-do-sentimento. Porque também sou o que fica quando o corpo adormece e só as funções básicas de mim me tornam gente.

 

Percebo que sou o corpo que dorme e o que acorda. O sonho inusitado. A realidade viva. O rosto maquilhado ou desmaquilhado em função do dia e da vontade. Sou a vontade. E o desejo. E o que sinto. E as razões pelas quais sinto o que sinto. E o que quero. E as razões pelas quais quero o que quero. E o que ambiciono. E o que digo. E o que faço. E as razões pelas quais o ambiciono e digo e faço. Sou as minhas escolhas e minha reação quando não as há. E sou tudo o que, agora, os meus dedos não sabem para transformar em letras.

 

Penso um pouco e sei. Sei que não sei quem sou porque estou a caminhar para o que quero ser. E sei que a raiz mora dentro do meu próprio peito e é o que me permite amar os outros.

 

Olha, desculpa. Mas eu não concordo com essa frase do livro e, por isso, não escrevi um texto incrível. Escrevi só um texto. Para te dizer. Não somos o que amamos. Somos. Quando nos amamos. E, mesmo assim... somos o quê? Ninguém sabe... mas é maior do que isso!


  Marina Ferraz




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terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Das nove às cinco

 

Foto de Cento4ka


Parei. Eu que nunca paro, porque tenho um emprego de inteiro tempo. Parei. Parei para o ouvir falar. De chá. De azeite. De licor. E são os momentos que nos detêm, nos minutos que o dia já não tem, que valem. Estou tão feliz com as escolhas que fiz...

 

 

A feirinha tinha um aroma outonal, feito de canela e gengibre, de castanhas assadas e de vinho quente. Os cheios quentes e o ar frio contrastavam, criando texturas no ambiente, que se sentiam. Juntava-se a tudo isto o toque inebriante das luzes e a música entoada pelas vozes felizes, que tartamudeavam ideias para prendas de Natal.

 

Os passos apressados levaram-me a uma das banquinhas, gerida por uma amiga. Ali, enquanto ela sai da concha, as conchas transformam-se num pouquinho dela. É um pedacinho dela passível de levar para casa, em caixinhas e embrulhos. Cada peça denota muitas horas de trabalho e um acabamento a resina e amor. Escondida dentro do espaço, as mãos dela lançavam-se à tarefa, com uma atenção e foco que a impediram de me ver, até que a chamasse. Mas depressa me lançou o olhar, sem que os olhos perdessem o brilho que já tinham quando os pousava nas conchas, nos búzios, nos ouriços e na esperança do amanhã. Olhei longamente o mostruário antes de escolher uma prenda para oferecer. Pacientemente, ela aguardou que as minhas indecisões se transfigurassem em escolha, sem deixar de me mostrar as peças que ainda estava a terminar. O sorriso dela brilhava tanto quanto as iluminações de Natal e, para não a impedir de trabalhar por mais tempo, acabei por sair e caminhar um pouco, enquanto tentava tomar a derradeira decisão sobre a prenda ideal para alguém importante.

 

Passando pelas várias banquinhas, fui apreciando, não as peças e os produtos, mas os rostos. Em torno das peças, víamos interesse e satisfação. Atrás dos balcões, no entanto, havia muito mais. Sorrisos simpáticos orgulhavam-se de cada elogio. Palavras de entusiasmo acediam aos pedidos e respondiam às perguntas. E todos os olhos eram parte da decoração natalícia, iluminando a rua em que eu caminhava.

 

Caminhava. Mas parei. Parei. Eu que nunca paro, parei. Parei para o ouvir falar. De chá. De azeite. De licor. Algo na forma como o fazia, dando a conhecer a marca, enaltecendo o design dos frascos, a qualidade dos produtos e os ingredientes – evidentemente naturais e livres de químicos – me travou. Contou-me que não era aquela a sua primeira profissão, mas que gostaria que fosse. E eu entendi, pela milésima vez, que as pessoas vão para os seus empregos das nove às cinco e deixam o coração noutro sítio. Talvez fosse isso, concluí. Dentro das barraquinhas da feira, havia corações com gente. E cada produto era sístole e diástole, num (em)bater sucessivo, em luta pelo sonho.

 

Apaixonei-me, assim, com rapidez, pela paixão daquelas pessoas. Porque quando se ama o que se faz, não é um emprego a tempo inteiro mas um emprego a inteiro tempo. Das nove às nove. Das cinco às cinco. Vinte e quatro horas por dia. Sete dias por semana. Coincide com as horas do riso e do choro. E deixa ficar, nos intervalos do tempo que ninguém sabe que existe – a física quântica talvez explique – a eternidade da plenitude nos dias que se somam.

 

Gostava que esse perpétuo da paixão pela tarefa pudesse ser o emprego a tempo inteiro e não só o emprego a inteiro tempo das pessoas. Gostava que, como eu, outros pudessem viver, não só com o sonho, mas do sonho. Gostava que a escolha do coração fosse a regra. Gostava que o mundo refizesse as regras que levam tantos a procurar um emprego das nove às cinco, quando não é isso que querem.

 

Escolhi a prenda na banquinha das conchas mais bonitas do mundo. Trazia comigo chá e licor de figo. Palavras e sentimentos que valem a pena. E a certeza de que precisava de falar sobre o amor incondicional de quem, apesar do emprego das nove às cinco, oferece o tempo que sobra aos sonhos.

 

Ainda não fiz chá, nem abri o licor. Mas sei que sabem a Natal. Ainda não ofereci a prenda. Mas sei que a pessoa vai adorar. Ainda não tenho tempo. Mas parei. E são os momentos que nos detêm, nos minutos que o dia já não tem, que valem.

 

Estou tão feliz por ver outros a amarem o que fazem.

Estou tão feliz com as escolhas que fiz...

 

Ainda bem que parei.

 

 

  Marina Ferraz




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