ou Filosofias de uma flor que ninguém arrancou
O que quero para o próximo ano? Bem...
Antes de ela sair de casa, a mãe gritou-lhe. Leva o casaco. Logo quando vieres, estará frio.
Nesse momento, outra menina levantou-se do lugar para o ceder ao idoso quando entrou. O autocarro ia cheio. Empoleirou-se levemente, com a parca extensão de braço, nos pequenos ferros colocados para o efeito. Pousou os olhos na rua.
Na rua, o mendigo saía da loja, contando moedas pretas e com uma lata de comida para o cão que o esperava à entrada, junto ao passeio mal cuidado.
Mais à frente, a senhora levava sacos cheios da loja e tinha enterrado o salto num espaço aberto entre duas pedras. O cavalheiro olhou-a nos olhos, reconhecendo uma espécie de tristeza funda nos olhos dela. Baixou-se e ajudou-a a libertar-se. Sem mais, despediu-se, cortês e atrasado, na direção do emprego.
Irritado com a vida, com o mundo, com o potencial de chuva anunciado na televisão, o patrão ameaçou novamente o cavalheiro de que iria despedi-lo por ser um inútil, deixando um espaço de mágoa que o levaria à varanda para chorar sem vergonha.
Na varanda, a colega de longo prazo acabou de engolir a penúltima bolacha do pacote – as favoritas dele - e estendeu-lho, oferecendo a última. Depois, afastou-se para lhe permitir que tivesse privacidade. Ele sorriu levemente e pousou os olhos delgados na rua.
Na rua, passava uma senhora idosa com uma criança pela mão, ensinando-a a acariciar as flores sem as arrancar. E, ao passar, impaciente, um jovem gritou com ela. Sai da frente velha! Ela pediu desnecessariamente perdão e a menina, percebendo-lhe o ânimo triste, convidou-a a ir até à rua perpendicular, dar uma moeda ao sem-abrigo que tinha o cão.
No final do dia, o idoso contou à esposa que uma menina lhe tinha cedido o lugar no autocarro. E a mulher respondeu que, na sua saída com a neta, tivera encontros menos simpáticos. Quando a filha chegou, para ir buscar a menina, falou do gentil cavalheiro que lhe tinha poupado complicações, ajudando-a a libertar-se no passeio. No mesmo passeio, o sem-abrigo depositou uma festa entre as orelhas caninas e deu uma trinca grande na sandes que comprara com o dinheiro que a senhora gentil e a menina bonita lhe tinham dado.
A flor, que ainda estava viva e que ninguém tinha arrancado, comentou então com as ervas e à árvore mais próxima:
É curioso.
As pessoas que melhor entendem o amor são as que não tentam explicá-lo.
As pessoas que estão lá nos momentos mais complicados, são as que nunca
to prometeram.
As pessoas que conhecem o mais fundo da tua alma são as que nunca
tentam definir-te.
As pessoas que te criticam são as que têm maiores problemas de
autoestima.
As pessoas que respeitam o teu espaço são aquelas que, sem tentar,
conquistam mais espaço em ti.
As pessoas mais bondosas são as que passaram maiores provações.
As pessoas mais rudes são as que ficam desarmadas com carinho.
As pessoas que se calam mais são aquelas que têm mais para dizer.
E as histórias que estas pessoas contam trazem gente dentro, como
contos para crianças adultas que ainda têm fé numa humanidade que as trai.
Apagou-se a luz na casa do cavalheiro. Chegando à janela, observou a lua. Descrente do mundo e lembrando o olhar fundo de tristeza da senhora que ajudara e o toque compassivo da colega que o deixara chorar. Lembrando o cão que batia o rabo contente aos pés do mendigo que o alimentava.
Os comprimidos que tinha sobre a mesa eram parte do plano da noite. Parte de um plano de fim. Desistiu da ideia. Pensando neles. Neles e nesses pequenos gestos de bondade. É que, quando os pensava, ainda encontrava, no mundo, aquele restinho inebriado de fé.
Este é o segredo dos segredos que ninguém conta. Visível para quem olha com a alma. Ainda há pessoas que parecem árvores. São elas que alimentam o mundo de oxigénio. São elas que fazem com que valha a pena acordar novamente amanhã.
Por isso, sei exatamente o que gostaria que acontecesse no próximo ano! E os desejos são estes: Que para o ano, alguém acarinhe a flor sem a arrancar. Que alguém ceda o lugar do autocarro a quem precisa mais. Que alguém tenha um ato de bondade com um estranho na rua ou com um conhecido que precisa de apoio. Que alguém dê uma moeda a um sem-abrigo. Que alguém fale sobre o que de bom encontrou no mundo naquele dia.
Quanto a mim... que a minha mãe continue a lembrar-me de levar o casaco quando sair... para que eu possa manter o corpo e o coração quentes, mesmo no Inverno mais frio!
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