terça-feira, 29 de novembro de 2022

Falemos (de canalhas)

 

Fotografia de bigweirdboxstreetart


Falemos de filhos da puta. Ou melhor. Falemos de canalhas, de patifes, dos seres que não merecem o complemento de “humanos”. Sim. Desses. Porque as mães deles – independentemente da via profissional - eu tenho quase a certeza de que não tiveram culpa nenhuma dos grandes idiotas que acabaram por se tornar.

 

 

A senhora pousou-me à frente o sumo de laranja. Olhou para mim, com um olhar vago, e perguntou-me se queria mais alguma coisa. Sorri. Relembrei-lhe. A empada. A mesma que tinha pedido que me aquecesse. E que ela prontamente levara para a cozinha. Espantou-se. Sobressaltou-se. Correu a buscá-la. Pousou-a e preparou-se para me dar outra. Aqueceu demais. Explicou. Garanti-lhe que estaria ótima para mim e que não precisava de me dar outra. Até gosto mais bem quente. Justifiquei. E arranquei-lhe um sorriso subtil por detrás do rosto cansado, manchado de preocupação e empatia. Obrigada. Sabe? Estou transtornada e não foi comigo. As injustiças doem-me.

 

Também a mim doem. Quis dizer-lhe. Mas não disse. Não disse que me doíam na pele, como as feridas abertas. Disse apenas. Só não sabe quem nunca atendeu ao público. Mas o público, neste caso, não era o problema. O problema era o sistema. As pessoas por detrás do sistema, que continuam a agir como se o mundo fosse todo feito da massa que modelam nas mãos. Fazendo dos outros um quase-nada para terem quase-tudo.

 

Olhou a colega e eu reparei, pela primeira vez – somos todos um bocadinho cegos hoje em dia, não é verdade?! – que ela tinha os olhos meio vermelhos e uma expressão de angústia profunda. Reparar doeu. Também a senhora a olhou, mas não falou dela. Respeitando-lhe a privacidade dos acontecimentos – fossem eles quais fossem – ela falou-me antes de si.

 

Contou-me como o contrato assinado, na casa onde trabalhava há mais de vinte anos, a obrigava a estar disponível para mudar de loja em loja, dentro de um x número de quilómetros. Contou-me que o patrão tinha várias marcas e que já tinha, por isso, servido várias casas, sob uma mesma chefia. Contou-me que no mês antes o marido tinha morrido. E contou-me que, tratando das formalidades na Segurança Social, descobrira que, de todas as vezes que a relocam num novo estabelecimento, acabam por apagar todo o seu histórico de serviço, o que a impede de ter acesso aos benefícios básicos relacionados com os anos de casa e até aos subsídios essenciais.

 

Os olhos marejados, ao contar a história, diziam-me também que o filho – engenheiro – passava igualmente, apesar do título mais sonante e dos muitos estudos, por situações de injustiça e exploração. Contavam que ele lhe tinha dito, até, que não podia exigir outras condições se queria manter o trabalho.

 

A empada sobreaquecida arrefeceu na história e eu fui perdendo a fome. Não porque não saiba. Só esta semana, já ouvi as reclamações de uma senhora da limpeza num centro comercial e de um estafeta de uma marca conceituada de entregas... eu sei! Mas ouvir é diferente...

 

Portanto... falemos de filhos da puta. Ou melhor. Falemos de canalhas, de patifes, dos seres que não merecem o complemento de “humanos”. Sim. Desses. Porque as mães deles – independentemente da via profissional - eu tenho quase a certeza de que não tiveram culpa nenhuma dos grandes idiotas que acabaram por se tornar. Falemos deles, para os denunciar. Para denunciar a sua desumanidade. Para que as pessoas saibam que, nos locais que frequentamos, existem escravos.

 

A senhora disse-me. Só lhes falta o chicote. Não tenho a certeza que falte. Penso que, de material, têm certamente tudo. O que lhes falta, respondo, é empatia.

 

Mas não é empatia que falta. Falta-lhes serem responsabilizados pelas ações. Falta-lhes perderem o pedestal. Falta-lhes que se conte esta história e que se crie uma consciencialização. Falta-lhes que os escravos se apercebam de que são mais e lutem pelos seus direitos.

 

Estamos a chegar ao ponto de não-retorno. Por favor: falem dos canalhas, de patifes, dos seres que não merecem o complemento de “humanos”. Falem deles. Porque o silêncio dos oprimidos é a música que toca quando eles - os opressores - verificam o extrato bancário e a canção de embalar que lhes permite dormir à noite em lençóis de seda egípcia.

 

 Marina Ferraz




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terça-feira, 22 de novembro de 2022

Epitáfio de um quase poeta

 


Comecei a escrever poesia quando não sabia o que ela era. Se soubesse, naquela altura, talvez nunca tivesse começado.

 

 

Foi um choque. O dia em que percebi que a poesia era livre, mas não era liberdade. Comecei a escrevê-la, julgo, talvez porque achei que fosse. Liberdade. Ela riu-se, mas eu achei que era comigo e não de mim... Depois, tomou-me de assalto e sorriu de soberania. Sussurrou-me ao ouvido. Agora és minha. E eu era.

 

Com a necessidade insensata de me dar a ela todos os dias, eu fui-me esquecendo, aos poucos, de ser gente. À medida que me fazia poeta. Tentei avisar algumas pessoas de que estava doente. Com essa doença. De ser poeta. Mas os adultos pareciam impressionados e felizes com a ideia e nunca me arranjaram uma solução para o problema. Escreve, escreve... o incentivo à loucura. E eu, igualmente louca, frágil, continuava a escrever. Não porque me diziam que o fizesse, mas porque não tinha realmente outra escolha.

 

Fui desenvolvendo, a pouco e pouco, um amor pelas palavras que me mantinham em cativeiro. Como se, em vez de me torturarem e prenderem, elas me tornassem mais plena. Uma espécie de síndrome de Estocolmo. De repente, escrever era droga. E eu recorria a ela com a mesma sofreguidão louca de quem se arrasta nas ruas, pedindo temas e títulos como quem pede trocos, para os gastar mal-gastos nesse ácido do poema sem o qual – insisto – não sei viver.

 

Temos poeta. Diz uma voz no fundo da sala, quando imploro por ajuda. Dizendo. Isso. Que as palavras me escravizam. Mas não. Digo. Não sou poeta. Sou quase-poeta. Se fosse poeta aceitaria, de forma mais leve, a subjugação. Sem me apaixonar também pela Morte e a sua presença suave nos meus dias.

 

Comecei a escrever poesia quando não sabia o que ela era. Se soubesse, naquela altura, talvez nunca tivesse começado. Mas é a beleza da vida. Antes de sabermos, não sabemos. E, como não sabemos, avançamos. Temos curiosidade de descobrir. Como a criança tem curiosidade de saber o que acontece caso ponha os dedos nos buraquinhos da tomada. E é um choque. Descobrir.

 

Enquanto escrevo este texto, Poesia e Morte ocupam os espaços tensos dos meus ombros e sussurram ao meu ouvido. Discutem o meu epitáfio.

 

Aqui jaz uma artesã de textos

Aqui jaz uma amante do ocaso

Aqui jaz uma escrava de ideias

 

E eu aproveito a sua discussão, despida de mim, para morrer um bocadinho no espaço da respiração e ser. Sem complemento.

 

Lembro que comecei a escrever poesia quando não sabia o que ela era. Se soubesse, naquela altura, talvez nunca tivesse começado. Quase-poeta, hoje, proponho, então, um epitáfio melhor.

 

Aqui jaz.

 

Há uma simplicidade poética neste vazio. De ser um ponto final. Depois de um verbo. No fim de uma vida. De uma vida que, na verdade, não foi minha. Porque comecei. A escrever poesia. Sem saber que ela era livre. Mas não era Liberdade.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 15 de novembro de 2022

Nas pontas dos pés

  


 

Nasci vinte anos depois de o homem pôr os pés na Lua a pensar na Terra. E vivi mais vinte, sempre de cabeça na Lua e com os pés na Terra. Mas disseram-me para parar. Para largar os sonhos. Para descer – toda eu – ao planeta que me foi mãe. Para acordar.

 

 

Dei por mim longe da Lua. Por causa do que me disseram. Um dia. Para acordar. Dei por mim longe da Lua. Por (a)caso. E achei, muitas vezes, que isso era sinónimo de desistir.

Eu tinha vinte anos e os pés na Terra. E a cabeça na Terra. E a racionalidade nos comandos pela primeira vez. Ainda tinha – e tenho – o hábito de andar nas pontas dos pés. Mas enraizei com os dedinhos da frente e coloquei neles o peso de decisões demasiado mastigadas, que me foram servindo para muito pouco além de elogios ocos e notas numa pauta sem som, afixada na parede e que não tocava outro instrumento que não o da autoridade tosca.

Dei por mim longe da Lua e a olhar para as pautas, procurando uma melodia. Na beira do abismo. No limite do penhasco. E sem saber apoiar o calcanhar. No ponto do desequilíbrio.

As notas do piano salvaram-me da queda. Disseram-me para parar. Para agarrar os sonhos. Para não descer ao que fica abaixo do solo dentro do caixão do conformismo. Para acordar. Para acordar da racionalidade imbecil que me tinham imposto. Ou que eu tinha aceite, por (a)caso.

Com o som do piano era fácil ver os tons de laranja no horizonte. Lembrar que eu sempre quis o horizonte. Pedir. Toca-me uma melodia de Chopin e leva-me. Ao horizonte. Gota de chuva a gota de chuva. Ou lembra Bethoven e dá-me uma Sonata ao Luar.

Nessa canção – e eu que estava tão longe da Lua! – voltei lá. Ao que já tinha sido. Ao que já tinha esquecido. Ao que sempre fui e larguei. Cabeça na Lua e pés na Terra.

Pelo caminho silenciaram muitos pianos e afastaram muitos horizontes. O cheiro do mar foi-se substituindo pelo da solidão e o da saudade. As memórias olfativas do café matinal trouxeram-me de volta a mim. E recuso-me a não amar a melodia que me salvou da realidade. Recuso-me a não amar a melodia que me tocou as teclas da alma e do coração, até que a própria Lua as dançasse. Mas, pés no chão e cabeça na Lua, amo a melodia hoje porque quero que toque, feliz, aos ouvidos de quem a entenda, a abrace e a acarinhe. E amo até esses ouvidos que a escutam e apreciam, sem que os veja ou conheça.

A melodia soa. Ressoa. A memória olfativa transforma café em erva-lima. E danço. Construindo amor nos passos aterrizados, à medida que desço das pontas dos pés para sentir o chão inteiro.

O abraço tem a forma do cantar da vida. Do candar da vida. Vou candando. De calcanhar no chão, sinto finalmente o equilíbrio e assumo a altura que é a minha e que nunca tive.

Agora sei quem sou. Nasci vinte anos depois de o homem pôr os pés na Lua a pensar na Terra. E vivi mais vinte, sempre de cabeça na Lua e com os pés na Terra. E agora tenho os pés bem assentes na Terra e a Lua nos braços.

Sinto-me Nova. Mas estou Crescente. E Cheia de tantos, tantos sonhos para amanhã...


  Marina Ferraz




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terça-feira, 8 de novembro de 2022

Gomas e solidão

 


Fotografia de Alexas_Fotos


Ideologicamente eu gosto. Muito. De gomas e solidão. Mas é só mesmo ideologicamente...

 

 

Na realidade, sempre gostei muito de chocolate. De rebuçados. De bolos. De bolachas. De caramelos. Mas nunca achei verdadeira piada às gomas. Mesmo em criança, se pedia gomas, o entusiasmo da cor e da forma, engraçadas e atrativas, esbatia assim que, colocando uma na boca, me era desfeito o apelo.

 

É um pouco o que acontece quando as pessoas vão e eu fico. Quando a festa acaba. Quando sobra o silêncio a ecoar nas paredes. Quando as memórias entram, sem serem convidadas, e me contam histórias que já ouvi mil vezes. Obrigada, mas ainda me lembro. Digo-lhes. Elas não querem saber.

 

Ouve-se o temporizador do forno no silêncio. Mas, dele, não vão sair os biscoitos que a minha avó fazia. Ouve-se o tiquetaque de um relógio. Mas já não é o meu avô a dar corda ao velho relógio da sala, que herdei, mas ficou assim: parado. Como os corações deles.

 

Sou apaixonada pelas cores e sabores da minha própria companhia. E pela respiração pesada da gata, que principalmente nos meses mais frios dedica o seu tempo às árduas atividades de comer e dormir. Mas, quando as pessoas saem e a gata fica comigo e a minha solidão. Quando levo aos lábios esse entusiasmo de me ter em pleno, com essas cores e formas engraçadas e atrativas, descubro que a solidão – e até a solitude – quebram muito do seu apelo.

 

Eu até gosto do sabor... mas a textura...

 

Parece borracha. Parece borrão. Parece borrada. O tempo todo condensado nessas gomas de solidão, feitas com os restos dos restos dos restos, com tendões e ossos e cartilagens. Com aparas, restos de pele e de couro. E a transbordar conservantes. E com corantes que tentam pintar um quadro, maquilhando a imagem do vazio de forma exagerada.

 

Ideologicamente eu gosto. Muito. De gomas e solidão. E, entendam... até gosto do sabor... mas há a textura e o saber como elas se fazem e constroem... há o que fica além das tonalidades falsas e dos sabores artificiais.

 

Penso que me cansa justamente o artificial. E que é por isso que, às vezes, me compro um saco de solidão, mesmo sabendo que me desiludo com ela. Talvez eu prefira chocolate. Rebuçados. Bolos. Bolachas. Caramelos. Gente. Talvez eu prefira fruta. Legumes. Sementes de linhaça e de riso.

 

Eu até gosto do sabor das gomas e da solidão. Mas a textura é rija demais para os meus dentes e a minha alma dócil. Penso que me cansa o artificial.

 

Por isso, se puderes, passa no mercado. Traz-me fruta a sério e um pouco de real companhia.


  Marina Ferraz




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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Conto | O Xaile




 em memória de Maria Graciosa Cunha de Almeida


Novembro de 1995

Ela entrou na sala. Lançou-se ao sofá. À menina no sofá. À menina de cabelos desgrenhados no sofá. À menina doente no sofá. Lançou-se a ela. Com as mãos, meio enrugadas e manchadas do sol, agarrando-lhe os pés. Gelados.

- Estás com os pés frios, pinguinzito – disse à menina. E, absorta nos bonecos animados, febril, sentindo o vómito pendente na garganta, ela limitou-se a anuir, numa indicação muda de que a tinha ouvido.

A senhora contornou o sofá e sentou-se na outra ponta. Tinha o avental posto, criando um aspeto doméstico sobre a saia simples e a camisola, ambas de cores neutras e desinteressantes. Os óculos que emolduravam o rosto eram igualmente simples, de linha clássica. Sobressaía o xaile, quase um cachecol largo e comprido, de xadrez aberto castanho e bege, com bolsos estrategicamente colocados, um de cada lado, para que ficassem ambos para a frente quando o usassem. Pegou no bolso do xaile e pousou-o sobre o colo. De lá, tirou dois lenços usados, que enfiou no bolso da frente do avental. Pegou nos pés da menina, meteu-os dentro do bolso quentinho do xaile e pousou as mãos sobre eles.

- Pronto, és um borralhinho. Daqui a pouco estarão quentes.

A menina via televisão, mas olhar a televisão não era apenas traço de quem se alheava do mundo. A menina não sabia alhear-se do mundo. Viria a descobrir mais tarde que o espetro que integrava – o do autismo – não lhe dava acesso ao segredo da felicidade, esse de não pensar. Então, pousava os olhos na televisão para não deixar escapar o queixume: estou maldisposta, dói-me a cabeça, tenho frio. Se olhasse para a avó, tinha a certeza, ia chorar. E a avó comovia-se com as suas lágrimas. E depois chorava também. E, de seguida, choraria de a ver chorar. E o avô não gostava de choraminguices.

A menina que via televisão era eu.

 

Dezembro de 2006

A senhora chorava. Agora não havia quem reclamasse do choro. Transportava no rosto a mesma mágoa que, meses antes, lho marcara, quando, pela manhã, aparecemos à porta de sua casa para lhe darmos a notícia que não demos, porque ela soube, na alma, antes que a disséssemos.

Agora, a senhora chorava. Baixinho. No dia do Sol. No dia do seu aniversário de casamento. No dia de Natal. Celebrado de hábito e, naquele ano, despido de celebrações.

Havia amargura no ar, um silêncio cortado por ocasionais piadas sem sentido, que tentavam emendar o que não tinha emenda. A mais velha das raparigas jovens, transportando no ventre o futuro do nosso sangue. A senhora da casa, ocupando-se para não se perder em angústias. Os homens, mantendo a distância segura do cenário matriarcal e triste. E eu, brincando com as meninas. A lourinha e a morena. Para que não notassem o choro sozinho e mudo da senhora, que ajeitava o xaile sobre os ombros e pegava no lenço, ocasionalmente, para limpar os olhos e o nariz.

As crianças são astutas. E a criança loura lá notaria, apesar das maluquices e brincadeiras.

- Estás a chorar? – perguntou. E a senhora sorriu por entre as lágrimas, num novo envolver do xaile, para abrir espaço para lhe dar colo.

- Os olhos às vezes choram-me, nem sei porquê.

Sabia. Sabíamos todos. Mas, para a pequena de seis anos feitos há pouco, a resposta bastou. Saltando do colo breve, voltou para o meu lado e quis brincar a outra coisa, gerando com a prima uma nova discussão sobre o que fazer a seguir.

Avancei pela carpete até aos joelhos da minha avó. Pousei neles a cabeça. Tirou as mãos de sob o xaile. Afagou-me os cabelos, desgrenhados como sempre.

As suas mãos estavam quentes.

 

Junho de 2019

- É muito peso para ti – disse a senhora.

Tinha-a deixado na orla da praia. Espera por mim um bocadinho. Disse-lhe, enquanto voltava para trás, pela estrada de areia prensada, à procura de um lugar de estacionamento para o carro.

Voltei, carregando o chapéu-de-sol, a cadeira de praia, duas toalhas, o saco com a merenda, os protetores solares e tudo o que de mais me tivesse lembrado. Alcancei-a e ela sorria. Era como se não me visse há muito tempo, tal era o sorriso que esboçava com os olhos pequeninos e escuros, atrás das lentes grossas dos óculos amarelados. Sorri-lhe de volta, sentindo-me o centro do mundo e, depois, mudei o peso todo para um braço e estendi-lhe o outro, que ela agarrou, repetindo:

- É muito peso para ti.

Mentia. Não pesa assim tanto. Duas toneladas e meia, nos passos morosos e lentos dela. E, naquele momento, tenho quase a certeza. Esqueci-me de qualquer coisa. Mas há o calor. Não o do sol, que pouco aquece com este típico vento do Oeste. O dos braços que carrego nos meus e que me parecem, sobre a areia, ser a forma mais sólida, mais concreta que toma o amor. O peso era leve, porque era dela, por ela, e eu não me esquecia disto. Nem mesmo ali....

Sentámo-nos. Ela olhava a praia, o mar, as arribas. Olhos de criança perdida com a novidade do mundo velho. E diz-me: já não pensei que visse isto. Pouso a cabeça, de caracóis meio molhados e pintalgados de sal sobre o seu colo. Ali, do xaile, naquele dia, havia só calor. O colo morno, o carinho dos dedos, novamente permeando os fios desgrenhados do meu cabelo. Amor incondicional.

 

Outubro de 2020

Com o rosto até desfigurado da dor, pousa-me o xaile nas mãos.

Pousa-me o xaile nas mãos como quem reza.

Pousa-me o xaile nas mãos e, com ele, um pedaço da mãe que adormeceu e já não precisa de xaile.

Trago-o e guardo-o na caixa das memórias. As memórias não cabem na caixa. Escorrem. Alagam. Ficam em mim.

 

Outubro de 2022

Era um recanto bom para chorar. O ombro dela. Havia duas coisas sobre os ombros dela: a força para carregar o peso do mundo e o xaile. A primeira suportava-me a dor. A segunda bebia-me as lágrimas. O mundo era duro, cruel. Ela era doce, terna.

Erguendo olhos embaciados desses ombros cobertos de xaile, era possível ver-lhe os caminhos tortuosos da vida no rosto. Estradinhas de ruga delineada. Mas nunca havia palavra de guerrilha na sua voz-trincheira. Vais ver que tudo fica bem. Parecia possível.

De pezinhos enfiados no bolso do xaile dela, eu era uma criança feliz, até no Inverno. Até no Inferno.

 

1 de Novembro de 2022

Hoje, quis vir com o calor dela. Está frio. Está sempre frio quando ela não está. Mas o xaile sobre os meus ombros abraça-me. E, mesmo sendo muito difícil dizer Amor (sabem os Deuses que me agarro às palavras com os dentes e não as largo, e até que me recusei a dizer “amo-te”, até hoje, a mais do que uma pessoa), o xaile grita-o. Tem tanto amor preso às fibras do tecido, que poderia ter sido feito de sentimentos, se eles fossem lã.

Hoje, vesti o meu vestido preto, como sempre soube que faria. Puxei levemente a caixa onde guardei as memórias, que descobriram a fórmula mágica de ficar ali e em mim. Sempre. Ao mesmo tempo. Peguei no xaile.

Disse-lhe. Ao xaile. Sei que não tenho ombros tão bonitos como os dela. Nem um coração tão bom. Nem um sorriso que cura. Nem uma vida inteira dedicada aos outros. Nem perfil para sofrer. Mas amo-a. E queria tanto que ela estivesse comigo hoje. Dá-me a honra de te usar...

 

Aqui, a ler este conto, eu sou eu e o Amor. Esse com letra capital. É dele que venho vestida, carregando-o sobre os ombros. Talvez, olhando, vejam uma rapariga de preto com um xaile ao xadrez. Olhando-vos, eu entendo que o vejam. Também acredito que as fotografias o mostrem. Uma rapariga de preto com um xaile ao xadrez, no dia em que dá um filho ao mundo, com todas as dores e todas as alegrias que isso comporta. Mas, acreditem. Não sou eu, de preto, e um xaile: sou eu e os braços da minha avó em meu redor, num abraço que me sussurra ao ouvido. Diz palavras quentes. Vai correr tudo bem e, se não correr, tenho orgulho em ti.

 

Tenho o coração no bolso do xaile. Talvez por isso, agora está quente.



* Texto criado e lido no lançamento do meu novo livro "[A(MOR]TE)"

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  Marina Ferraz




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