Falemos de filhos da puta. Ou melhor. Falemos de canalhas, de patifes, dos seres que não merecem o complemento de “humanos”. Sim. Desses. Porque as mães deles – independentemente da via profissional - eu tenho quase a certeza de que não tiveram culpa nenhuma dos grandes idiotas que acabaram por se tornar.
A senhora pousou-me à frente o
sumo de laranja. Olhou para mim, com um olhar vago, e perguntou-me se queria
mais alguma coisa. Sorri. Relembrei-lhe. A empada. A mesma que tinha pedido que
me aquecesse. E que ela prontamente levara para a cozinha. Espantou-se.
Sobressaltou-se. Correu a buscá-la. Pousou-a e preparou-se para me dar outra. Aqueceu demais. Explicou. Garanti-lhe
que estaria ótima para mim e que não precisava de me dar outra. Até gosto mais bem quente. Justifiquei.
E arranquei-lhe um sorriso subtil por detrás do rosto cansado, manchado de
preocupação e empatia. Obrigada. Sabe?
Estou transtornada e não foi comigo. As injustiças doem-me.
Também a mim doem. Quis dizer-lhe. Mas não disse. Não disse que me doíam na pele, como as feridas abertas. Disse apenas. Só não sabe quem nunca atendeu ao público. Mas o público, neste caso, não era o problema. O problema era o sistema. As pessoas por detrás do sistema, que continuam a agir como se o mundo fosse todo feito da massa que modelam nas mãos. Fazendo dos outros um quase-nada para terem quase-tudo.
Olhou a colega e eu reparei, pela primeira vez – somos todos um bocadinho cegos hoje em dia, não é verdade?! – que ela tinha os olhos meio vermelhos e uma expressão de angústia profunda. Reparar doeu. Também a senhora a olhou, mas não falou dela. Respeitando-lhe a privacidade dos acontecimentos – fossem eles quais fossem – ela falou-me antes de si.
Contou-me como o contrato assinado, na casa onde trabalhava há mais de vinte anos, a obrigava a estar disponível para mudar de loja em loja, dentro de um x número de quilómetros. Contou-me que o patrão tinha várias marcas e que já tinha, por isso, servido várias casas, sob uma mesma chefia. Contou-me que no mês antes o marido tinha morrido. E contou-me que, tratando das formalidades na Segurança Social, descobrira que, de todas as vezes que a relocam num novo estabelecimento, acabam por apagar todo o seu histórico de serviço, o que a impede de ter acesso aos benefícios básicos relacionados com os anos de casa e até aos subsídios essenciais.
Os olhos marejados, ao contar a
história, diziam-me também que o filho – engenheiro – passava igualmente, apesar do
título mais sonante e dos muitos estudos, por situações de injustiça e
exploração. Contavam que ele lhe tinha dito, até, que não podia exigir outras
condições se queria manter o trabalho.
A empada sobreaquecida arrefeceu na história e eu fui perdendo a fome. Não porque não saiba. Só esta semana, já ouvi as reclamações de uma senhora da limpeza num centro comercial e de um estafeta de uma marca conceituada de entregas... eu sei! Mas ouvir é diferente...
Portanto... falemos de filhos da puta. Ou melhor. Falemos de canalhas, de patifes, dos seres que não merecem o complemento de “humanos”. Sim. Desses. Porque as mães deles – independentemente da via profissional - eu tenho quase a certeza de que não tiveram culpa nenhuma dos grandes idiotas que acabaram por se tornar. Falemos deles, para os denunciar. Para denunciar a sua desumanidade. Para que as pessoas saibam que, nos locais que frequentamos, existem escravos.
A senhora disse-me. Só lhes falta o chicote. Não tenho a
certeza que falte. Penso que, de material, têm certamente tudo. O que lhes falta, respondo, é empatia.
Mas não é empatia que falta. Falta-lhes serem responsabilizados pelas ações. Falta-lhes perderem o pedestal. Falta-lhes que se conte esta história e que se crie uma consciencialização. Falta-lhes que os escravos se apercebam de que são mais e lutem pelos seus direitos.
Estamos a chegar ao ponto de não-retorno. Por favor: falem dos canalhas, de patifes, dos seres que não merecem o complemento de “humanos”. Falem deles. Porque o silêncio dos oprimidos é a música que toca quando eles - os opressores - verificam o extrato bancário e a canção de embalar que lhes permite dormir à noite em lençóis de seda egípcia.
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