quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Conto | O Xaile




 em memória de Maria Graciosa Cunha de Almeida


Novembro de 1995

Ela entrou na sala. Lançou-se ao sofá. À menina no sofá. À menina de cabelos desgrenhados no sofá. À menina doente no sofá. Lançou-se a ela. Com as mãos, meio enrugadas e manchadas do sol, agarrando-lhe os pés. Gelados.

- Estás com os pés frios, pinguinzito – disse à menina. E, absorta nos bonecos animados, febril, sentindo o vómito pendente na garganta, ela limitou-se a anuir, numa indicação muda de que a tinha ouvido.

A senhora contornou o sofá e sentou-se na outra ponta. Tinha o avental posto, criando um aspeto doméstico sobre a saia simples e a camisola, ambas de cores neutras e desinteressantes. Os óculos que emolduravam o rosto eram igualmente simples, de linha clássica. Sobressaía o xaile, quase um cachecol largo e comprido, de xadrez aberto castanho e bege, com bolsos estrategicamente colocados, um de cada lado, para que ficassem ambos para a frente quando o usassem. Pegou no bolso do xaile e pousou-o sobre o colo. De lá, tirou dois lenços usados, que enfiou no bolso da frente do avental. Pegou nos pés da menina, meteu-os dentro do bolso quentinho do xaile e pousou as mãos sobre eles.

- Pronto, és um borralhinho. Daqui a pouco estarão quentes.

A menina via televisão, mas olhar a televisão não era apenas traço de quem se alheava do mundo. A menina não sabia alhear-se do mundo. Viria a descobrir mais tarde que o espetro que integrava – o do autismo – não lhe dava acesso ao segredo da felicidade, esse de não pensar. Então, pousava os olhos na televisão para não deixar escapar o queixume: estou maldisposta, dói-me a cabeça, tenho frio. Se olhasse para a avó, tinha a certeza, ia chorar. E a avó comovia-se com as suas lágrimas. E depois chorava também. E, de seguida, choraria de a ver chorar. E o avô não gostava de choraminguices.

A menina que via televisão era eu.

 

Dezembro de 2006

A senhora chorava. Agora não havia quem reclamasse do choro. Transportava no rosto a mesma mágoa que, meses antes, lho marcara, quando, pela manhã, aparecemos à porta de sua casa para lhe darmos a notícia que não demos, porque ela soube, na alma, antes que a disséssemos.

Agora, a senhora chorava. Baixinho. No dia do Sol. No dia do seu aniversário de casamento. No dia de Natal. Celebrado de hábito e, naquele ano, despido de celebrações.

Havia amargura no ar, um silêncio cortado por ocasionais piadas sem sentido, que tentavam emendar o que não tinha emenda. A mais velha das raparigas jovens, transportando no ventre o futuro do nosso sangue. A senhora da casa, ocupando-se para não se perder em angústias. Os homens, mantendo a distância segura do cenário matriarcal e triste. E eu, brincando com as meninas. A lourinha e a morena. Para que não notassem o choro sozinho e mudo da senhora, que ajeitava o xaile sobre os ombros e pegava no lenço, ocasionalmente, para limpar os olhos e o nariz.

As crianças são astutas. E a criança loura lá notaria, apesar das maluquices e brincadeiras.

- Estás a chorar? – perguntou. E a senhora sorriu por entre as lágrimas, num novo envolver do xaile, para abrir espaço para lhe dar colo.

- Os olhos às vezes choram-me, nem sei porquê.

Sabia. Sabíamos todos. Mas, para a pequena de seis anos feitos há pouco, a resposta bastou. Saltando do colo breve, voltou para o meu lado e quis brincar a outra coisa, gerando com a prima uma nova discussão sobre o que fazer a seguir.

Avancei pela carpete até aos joelhos da minha avó. Pousei neles a cabeça. Tirou as mãos de sob o xaile. Afagou-me os cabelos, desgrenhados como sempre.

As suas mãos estavam quentes.

 

Junho de 2019

- É muito peso para ti – disse a senhora.

Tinha-a deixado na orla da praia. Espera por mim um bocadinho. Disse-lhe, enquanto voltava para trás, pela estrada de areia prensada, à procura de um lugar de estacionamento para o carro.

Voltei, carregando o chapéu-de-sol, a cadeira de praia, duas toalhas, o saco com a merenda, os protetores solares e tudo o que de mais me tivesse lembrado. Alcancei-a e ela sorria. Era como se não me visse há muito tempo, tal era o sorriso que esboçava com os olhos pequeninos e escuros, atrás das lentes grossas dos óculos amarelados. Sorri-lhe de volta, sentindo-me o centro do mundo e, depois, mudei o peso todo para um braço e estendi-lhe o outro, que ela agarrou, repetindo:

- É muito peso para ti.

Mentia. Não pesa assim tanto. Duas toneladas e meia, nos passos morosos e lentos dela. E, naquele momento, tenho quase a certeza. Esqueci-me de qualquer coisa. Mas há o calor. Não o do sol, que pouco aquece com este típico vento do Oeste. O dos braços que carrego nos meus e que me parecem, sobre a areia, ser a forma mais sólida, mais concreta que toma o amor. O peso era leve, porque era dela, por ela, e eu não me esquecia disto. Nem mesmo ali....

Sentámo-nos. Ela olhava a praia, o mar, as arribas. Olhos de criança perdida com a novidade do mundo velho. E diz-me: já não pensei que visse isto. Pouso a cabeça, de caracóis meio molhados e pintalgados de sal sobre o seu colo. Ali, do xaile, naquele dia, havia só calor. O colo morno, o carinho dos dedos, novamente permeando os fios desgrenhados do meu cabelo. Amor incondicional.

 

Outubro de 2020

Com o rosto até desfigurado da dor, pousa-me o xaile nas mãos.

Pousa-me o xaile nas mãos como quem reza.

Pousa-me o xaile nas mãos e, com ele, um pedaço da mãe que adormeceu e já não precisa de xaile.

Trago-o e guardo-o na caixa das memórias. As memórias não cabem na caixa. Escorrem. Alagam. Ficam em mim.

 

Outubro de 2022

Era um recanto bom para chorar. O ombro dela. Havia duas coisas sobre os ombros dela: a força para carregar o peso do mundo e o xaile. A primeira suportava-me a dor. A segunda bebia-me as lágrimas. O mundo era duro, cruel. Ela era doce, terna.

Erguendo olhos embaciados desses ombros cobertos de xaile, era possível ver-lhe os caminhos tortuosos da vida no rosto. Estradinhas de ruga delineada. Mas nunca havia palavra de guerrilha na sua voz-trincheira. Vais ver que tudo fica bem. Parecia possível.

De pezinhos enfiados no bolso do xaile dela, eu era uma criança feliz, até no Inverno. Até no Inferno.

 

1 de Novembro de 2022

Hoje, quis vir com o calor dela. Está frio. Está sempre frio quando ela não está. Mas o xaile sobre os meus ombros abraça-me. E, mesmo sendo muito difícil dizer Amor (sabem os Deuses que me agarro às palavras com os dentes e não as largo, e até que me recusei a dizer “amo-te”, até hoje, a mais do que uma pessoa), o xaile grita-o. Tem tanto amor preso às fibras do tecido, que poderia ter sido feito de sentimentos, se eles fossem lã.

Hoje, vesti o meu vestido preto, como sempre soube que faria. Puxei levemente a caixa onde guardei as memórias, que descobriram a fórmula mágica de ficar ali e em mim. Sempre. Ao mesmo tempo. Peguei no xaile.

Disse-lhe. Ao xaile. Sei que não tenho ombros tão bonitos como os dela. Nem um coração tão bom. Nem um sorriso que cura. Nem uma vida inteira dedicada aos outros. Nem perfil para sofrer. Mas amo-a. E queria tanto que ela estivesse comigo hoje. Dá-me a honra de te usar...

 

Aqui, a ler este conto, eu sou eu e o Amor. Esse com letra capital. É dele que venho vestida, carregando-o sobre os ombros. Talvez, olhando, vejam uma rapariga de preto com um xaile ao xadrez. Olhando-vos, eu entendo que o vejam. Também acredito que as fotografias o mostrem. Uma rapariga de preto com um xaile ao xadrez, no dia em que dá um filho ao mundo, com todas as dores e todas as alegrias que isso comporta. Mas, acreditem. Não sou eu, de preto, e um xaile: sou eu e os braços da minha avó em meu redor, num abraço que me sussurra ao ouvido. Diz palavras quentes. Vai correr tudo bem e, se não correr, tenho orgulho em ti.

 

Tenho o coração no bolso do xaile. Talvez por isso, agora está quente.



* Texto criado e lido no lançamento do meu novo livro "[A(MOR]TE)"

Para adquirir o livro enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com


  Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!


1 comentário:

  1. Nenhum comentário faz justiça à força emocional deste texto.
    Mas tu sabes a razão pela qual deixo aqui um registo em "comentário".

    Top!

    ResponderEliminar