O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
A manhã nasceu cinzenta. Era o primeiro dia de Verão. O céu
não parecia sabê-lo. Os solstícios, por vezes, são mesmo assim. Parecem
importar mais às pessoas. Naquele dia, não importava ao próprio Sol, que se
escondera sob um manto impenetrável de nuvens e smog. Mas importava-me a mim,
por impulso ou teimosia. A manhã estava cinzenta. As ruas, igualmente
cinzentas, mantinham a sua usual tonalidade suja. Mas insisti. Insisti que era
Verão. E, no Verão, querem-se vestidos leves e floridos, frescos, esvoaçantes.
Foi o que usei na manhã daquele naquele primeiro dia de Verão, cinzento e frio.
São coisas pequenas. Detalhes. Tão despidos de importância
que facilmente se esquecem. Mas recordarei para sempre o que usei naquele
primeiro dia de Verão. Tal como lembrarei a mesa de café onde me sentei. As
ruas que percorri, de seguida. Os passos que ouvi atrás de mim. A respiração
ofegante que me fez acelerar o passo. O toque leve no ombro junto à passadeira.
As palavras...
"Desculpa... não quero assustar-te." - O olhar, azul
num rosto lívido. - "É só que pensei para mim..." - A hesitação. - "Se
morresse amanhã, hoje o Verão terias sido tu." O sorriso. O começo. O
primeiro dia de Verão. Cinzento. O primeiro amor. Tão cheio das cores do
arco-íris.
O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
No primeiro dia, o amor viu o meu vestido. O meu vestido
florido e leve, fresco, que em tanto se afastava do Verão, que nascera
cinzento. Acho que o Verão não sabia as nuances do meu amor. Se as soubesse, o
Sol teria feito mais do que esconder-se sob as nuvens. Ter-lhes-ia dito que
chorassem. Imagino que, por entre murmúrios, teria dito assim: "acaba de
nascer um amor condenado à saudade...".
E as nuvens teriam chorado. E o Verão teria começado sob o som constante
da chuva. Mas eu acho que, tal como eu, no primeiro dia, o Verão não sabia. O
Sol não sabia. O único a saber era o portador daqueles olhos azuis. O dono
daquela mão que me tocara o ombro. O senhor daquela voz que me conquistara com
as mais belas palavras.
De pequenina, o meu pai tinha feito destas palavras lição: "só
dois tipos de homem têm a coragem de dizer o que pensam, sem temor: aqueles que
não têm sanidade mental e aqueles que, por alguma razão, já nada têm a
perder". O meu pai, que era um homem velho e sem estudos - e do qual não
me recordo de outra forma que não sendo velho, com o cabelo ralo e grisalho e
um cigarro entre os dedos - era também o homem mais sábio que conheci. Era um
homem com medos, claro. Medo das guerras nas quais combatera sem se fazer
herói, medo de ter sobrevivido com memórias que não conseguia apagar, medo de
morrer sem deixar memória de si. E era um homem com medo justamente porque a
sua mente era sã e ainda tinha muito a perder.
Esse amor que conheci junto às linhas brancas da passadeira
era detentor de uma coragem como eu nunca tinha visto. É preciso coragem para
dizer a alguém "Se morresse amanhã, hoje o Verão terias sido tu.". Até
àquele dia, eu só tinha amado um homem cobarde - o meu pai - nesse dia, aprendi
a amar a coragem. Mas, talvez porque o meu pai conhecesse da vida mais do que
se aprende por entre as letras e os números, as suas lições rasgavam a pedra
que lhe cobria o túmulo e vinham a meu encontro, lembrando-me: só existiam dois
tipos de homens com coragem. E assim era. A coragem dele era uma coragem feita
na cobardia. E, se era loucura, posto que todo o amor é louco, não era ela que
o fazia falar. Não tinha nada a perder. E eu, no meu vestido de Verão, num dia
cinzento, não o sabia ainda.
O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
Encheu-me o corpo de mimos. A casa de flores. A vida de
amores maiores do que o tempo. Afagou-me a alma e o coração. E levou-me, nos
braços, ao encontro de lugares onde eu nunca tinha estado e de lugares que
aprendi a ver de forma diferente, porque nunca os tinha visitado com ele.
Lembro que me beijou, pela primeira vez, em frente ao mar. E disse-me "Se
morresse amanhã, hoje terias sido a minha vida inteira".
Por muito tempo,
falou do passado. Do presente. Evitou falar do futuro, deixando-me dúvidas e
reticências sobre a validade do amor que cultivávamos. Mas matava-me sempre as
dúvidas confessando, "Se morresse amanhã, poderia dizer que, pelo menos,
amei".
Construímos juntos essa realidade feita de tudos e nadas.
Dia após dia. Semana após semana. Até àquele dia, o dia do encontro. Mesa
posta. Com os melhores pratos. Os melhores copos. Os melhores talheres. Velas.
Perfume. Roupa passada a ferro. E a campainha que não tocava. O telemóvel que
não tocava. A ausência de som que arrancasse dos meus ouvidos o desconforto do
batimento cardíaco, pulsante e arrítmico. Não soube dele. Por dias. E foram
lágrimas. Foram desassossegos. O meu homem de coragem pareceu-me, por fim, o
maior cobarde de todos. E disse, para mim mesma, "o amor é cego".
Mas não. O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
Bateu-me à porta de casa a meio da noite, uma semana mais
tarde. Numa mão segurava dois balões com forma de coração. Na outra, um ramo de
rosas rubras, grandes e aromáticas. Depositou-me nas mãos os presentes e nos
lábios um beijo. No peito, depositou o medo. "Tenho uma coisa para te
contar".
Contou. Desejei, muitas vezes, que não o tivesse feito. Mas
fez. Contou-me a verdade sobre o homem que me tinha tocado no ombro, atraído
pela leveza fresca do meu vestido de Verão. "Estou a morrer.". Não
disse que estava doente. Disse-o assim. De forma directa e crua, como se
tivesse medo que eu não entendesse as implicações das suas palavras. Talvez
estivesse cansado de eufemismos. Talvez estivesse simplesmente cansado.
Foi nesse dia que soube que a coragem dele nascia onde,
geralmente, as pessoas depositavam o maior dos medos. A morte, a mesma que
assustou exércitos e os afugentou, levava aquele homem nos braços, rumo ao
amanhã, se houvesse amanhã.
Agarrei-o junto ao peito. Agarrá-lo significou beber a
coragem. Saber que amaria alguém que estava condenada a perder. E mais uma vez,
pensei: "o amor é cego".
Mas não. O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
Levou-me, certo dia, até um bairro degradado da cidade. "Quero
mostrar-te uma coisa", disse. Segui-o. Por entre as ruas sujas e gentes
que se debruçavam sobre os caixotes do lixo, regozijando-se quando encontravam
um pedaço de pão. Por entre mendigos que mantinham a mão aberta, fechando os
olhos, como se não esperassem que alguém pudesse prestar-lhes realmente
auxílio. Por entre casas degradadas, com as portas abertas e as janelas
partidas. Entrou numa dessas casas, arrastando-me pela mão. Tirou dos bolsos um
maço de notas e depositou-o na mão de uma senhora idosa, beijando-lhe a mão de
seguida. A senhora agarrou a mão dele contra o peito. Agradeceu-lhe, com
lágrimas nos olhos. Fitou-me. Por largos momentos, não fez mais do que procurar
nos recantos dos meus olhos algo que eu não sabia o que era. Depois, sorriu
levemente. O sorriso enfatizou-lhe as rugas. "É um bom homem, não arranjas
melhor... não, não... devias casar com ele."
Saímos. E, na saída, ele deixou uma moeda na mão de um
mendigo. Não me disse nada, até estarmos longe. "Aquela mulher, que nada
tem, alimenta quem pode. Não nega um prato de sopa a ninguém. Aquele mendigo,
abandonou-o ali a família antes de se mudar para o estrangeiro. Não veem, o
raio dos políticos. As campanhas passam ao largo destes bairros por medo que se
pegue...". Parei, puxei-o para mim. Beijei-o. E, depois, dei razão à
senhora velha. "Casa comigo", pedi-lhe. E ele sorriu, olhando para
mim como se eu fosse a pessoa mais bonita do mundo e sem ver que a melhor
pessoa era, na verdade, ele mesmo. "O amor é cego", tornei a pensar.
Mas não. O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
Casámos. Foi uma cerimónia simples, no cartório. Eu, ele e
uma testemunha. Não precisávamos da aprovação de nenhuma pessoa. Não
precisávamos da aprovação de nenhum Deus. Fosse por quanto tempo fosse,
deixámos o voto: "Serei teu até ao último suspiro e além dele, se houver
memória", disse ele. Eu disse o mesmo. Mas sabia. Seria dele muito depois
da morte o tomar nos braços. Talvez para sempre.
Dos dias, fizemos uma batalha contra o que se vê nos cantos
das ruas. Aprendi a ver. A ver o que não se vê mesmo quando está em frente aos
nossos olhos. A pobreza. A fome. O frio. A falta da dignidade que prometem que
é para todos. Aprendi que os direitos iguais são um pregão tradicional que não
se adequa à realidade das ruas. Para quem vive sem nada, os direitos não passam
de um conto de fadas escrito pelos ricos. Ele não tinha muito dinheiro. Mas
dizia com frequência: "O que tenho, para o túmulo não levo.". Dava.
Sem fazer contas ao amanhã, porque sabia que a incerteza do amanhã começava hoje
para muitos. E eu, ao lado dele, aprendi a riqueza que é não ter nada quando se
dá aos outros o melhor de nós.
O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
Foi no Inverno que aconteceu. E nem me lembro bem como. É
uma nuvem dispersa de memórias sob o som odioso da sirene da ambulância e o
cheiro do desinfectante do hospital. Lágrimas nos olhos. Uma mancha de sentidos
e sentimentos e mágoas.
"Tens medo da morte?" perguntei-lhe. Deitado, na
luz azulada do quarto, com o bip constante dos monitores, ele abanou levemente
a cabeça. "Tinha medo, antes de ti."
"Eu tenho medo", confessei. "Medo de nunca
mais ser feliz"
Olhou-me. O olhar mais cheio do mundo.
"É como o dia em que nos conhecemos, disse, estava frio
mas tiveste fé no Verão e aconteceu este amor... eu sei que vai ser triste mas,
se tiveres fé na felicidade, algo de bom virá."
Virá, talvez, mas ainda não veio. Tenho a saudade e a mágoa.
Uma mágoa sem nome nem data de validade. E dói.
A igreja encheu-se de gente que não o conhece. Gente que o
conheceu, em tempos, mas não o conhece agora.
Dizem sobre ele coisas vulgares, clichés, lugares comuns. Coisas que se
dizem sobre homens cobardes. Mas ele, porque nada tinha a perder, era feito de
coragem.
Andando pela rua, vejo traços da sua bondade em cada esquina.
E tento dar de mim, como ele dava. Porque é essa a única forma que tenho de o
amar. Ver. Ver o mundo como ele é. Sem eufemismos. E tentar fazer melhor.
É este homem que recordo. É este homem que amo. Talvez o
digam... mas não é porque estou cega de amor que o vejo assim. Vejo-o assim
porque ele abriu os meus olhos.
O Mundo é cego. O amor não. O amor vê tudo.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Nota: Este texto foi, também, a minha participação no 5º Concurso Literário da
Editora Papel de Arroz, "Quando o amor é cego", tendo alcançado o
terceiro lugar.
Deixo, mais uma vez, uma nota de agradecimento aos responsáveis da editora, por continuarem a desafiar e incentivar os seus autores. Aproveito, ainda, para dar os meus parabéns a todos os participantes do concurso.