Para o meu avô
O telefone tocou. E, deitada na minha cama, eu fingi que não
sabia. Mas há momentos assim. Em que sabemos. Se o telefone toca,
principalmente na noite caída, traz apenas consigo o aviso das lágrimas por
devir.
O telefone tocou. Como uma respiração mecânica. E deixou de
tocar. E eu chorei. Foi a única altura em que chorei. O meu choro não foi visto
por ninguém. Das lágrimas que caíram na almofada, ninguém teve aviso ou
vislumbre. Ninguém soube delas. Por isso, foi exactamente como se eu não
tivesse chorado. Para todos os outros, foi assim: o telefone tocou e eu não
chorei.
De mãos dadas com a ilusão, decidi, mais do que senti, que
não ia chorar. Decidi que era uma escolha minha. Criei ao meu lado uma
realidade diferente. Melhor. Mais concreta. Dela, fiz navio. Mas mais ninguém
embarcou. E ninguém soube. Tomaram-me, certamente, o rosto que não chorava por
outra coisa qualquer. Disse baixinho para mim que não importava. A ti, disse
outra coisa. Disse que te faria imortal. E, se de todos os outros retirei a
incapacidade da compreensão, de ti retirei a resposta, na forma do vento e uma
presença que ainda hoje se senta ao meu lado e me apoia no melhor e no pior da
vida.
Tornar-te imortal tornou-se a meta dos meus olhos que não
choravam. Eu sabia. Só morre de verdade quem é esquecido. Não acreditei que
tinhas partido e, talvez por isso, não foste a nenhum lugar senão aquele que
permanece sempre em mim. A morte não é o que leva a alma e deixa o corpo. A
verdadeira morte é o esquecimento que o tempo traz. O tempo não ameniza dores.
Esbate memórias. Alguns, ficam felizes de as ver esbater, justamente porque
lembrar magoa. Mas eu tinha as promessas. Não ia chorar. Havia de te tornar
imortal. E, em alguns dias, doeu a memória que ficava e me fazia lembrar da
ausência. Mas não estavas ausente. Não chorei. Procurei sempre lembrar-me.
Lembrar-me significou escrever-te. Escrever sobre ti. Contar
ao mundo sobre o nosso chocolate quente, o nosso dominó, a nossa partilha no
tempo das vindimas. Significou dizer que fui uma menina a pedir copos de água,
noite após noite, e que foste uma figura paciente a cruzar o corredor para me
fazeres as vontades. Foi aos pouquinhos. Deste conta? As pessoas souberam de
ti. Subitamente, já não vivias apenas na memória de quem te amou. Vivias também
no espaço das gentes que não te conheceram. E permanecias, nas linhas,
intocado, pontuado por reticências e exclamações que não podem ser apagados.
Aos poucos e poucos, a memória tornou-se história. A história tornou-se livro.
Tu tornaste-te imortal.
Do telefone que toca, já só guardo nuances de memória. Mas
de ti, de ti guardo as memórias concretas e que não deixo esbater. Cada memória
é um fragmento das asas com as quais construo a vida que vivo na demanda pela
tua imortalidade. E ficas vivo, em mim e no mundo que deixaste, justamente
porque as lágrimas que não verti fazem sentido. É o dom e a maldição das
palavras - têm o poder de roubar à morte o padrão irreverente do esquecimento
que ameniza; têm o poder de roubar aos Deuses a decisão de um fim concreto e
sem retorno.
Não chorei. Tu não morreste. Ainda não. Não até eu morrer e
te levar comigo nessa viagem sem retorno. Porque escolhi tornar-te parte de
mim. E viver-te nestas linhas que ficarão muito depois de eu própria ter
cedido. Não chorei porque chorar seria dizer adeus. E eu não disse. Em vez
disso, prometi a mim mesma. Prometi-te a ti, num silêncio só nosso. Não irias
morrer nunca. Não te deixaria morrer.
Odiavas ver pessoas chorar. E há quem chore. Não leves a
mal. As pessoas pensam que morreste. Eu sei que és imortal. Hoje, sorrio-te,
embora não te veja. E sei que me sorris de volta. Eternamente.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Um texto que me deixou muito emocionada,lembrei de quando meu avô partiu,numa manhã até ensolarada em que o telefone também tocou e eu também chorei,mas hoje,quando lembro dele,é um sorriso que esboço no rosto,com a certeza que ele viverá em mim,mesmo quando o tiverem esquecido,ele ainda está aqui,dentro da parte que reservei somente a ele :D
ResponderEliminarAmei <3
Beijinhos Jenny ^.^