quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Ganchos, palhetas e más notícias



Encontramo-los. Um pouco por todo o lado. Ganchos de cabelo. Palhetas. Más notícias. Parecem migalhas pelo chão da casa. Obrigando-nos a fazer vénias desassossegadas a cada dois passos. Como se fossemos servos da vida e não seus convidados.

Brilham no encontro do sol. Ou camuflam-se nas frestas da madeira. Maquilham-se de novidade. E lá ficam. Dentro dos tubos das máquinas de lavar. Dentro das ranhuras dos móveis. Encostados aos cantos do azulejo. Perdidos no meio dos lençóis. Ganchos e palhetas. E más notícias. Perdidos por todos os espaços plausíveis e implausíveis.

Os passos que nos separam do encontro com o inesperado tornam-se eternidade. E podemos passar a vida de joelhos. A apanhar o metal dos ganchos. O plástico das palhetas. A inquietude das más notícias. Se nos deixarmos levar pela tendenciosa esperança de que não exista caos onde a ordem nunca governou.

E avançamos. A casa é um mundo maior nos olhos que buscam o equilíbrio. E torna-se difícil gerir o encontro caótico com objetos inusitados pelo soalho. Agimos como se eles tivessem alma ou resposta pronta. Intempestivamente gritando com eles. Ao mesmo tempo que nos curvamos, num gesto mecânico e que pouco diz sobre as nossas crenças ou lealdades.

Ganchos, palhetas e más notícias. Podemos esperar encontrá-los por aí. Espalhados no chão das nossas vidas. Perdidas e à espera do encontro. Encontradas e à espera de se perderem. Objetos e sentidos com vida própria. Que nunca sabemos onde estão e que estão em todo o lado. Fazendo-nos revirar olhos. Olhos que se pousam no chão. E que os encontram, no vento que nos sai dos lábios frustrados. Outra vez. Raios.

Desconfio que os ganchos de cabelo, as palhetas e as más notícias não tenham culpa. A culpa reside nos olhos que, cansados do confronto, se prendem no chão. O problema reside mais no curvar do pescoço do que no curvar de costas. Talvez os olhos no chão sejam a vénia mais usual da atualidade e a que mais dano causa a uma alma que nasceu para as vistas panorâmicas do ser.

Confesso. Estou farta de os encontrar. Ganchos, palhetas e más notícias. Talvez seja hora de largar o chão. Se não com os pés, ao menos com os olhos. O horizonte fica em frente. E o pôr-do-sol também está lá todos os dias. Não tem más notícias. Nem ganchos de cabelo. Nem palhetas. Tem raios e tonalidades quentes. Tem a novidade repetitiva da noite que cai e anuncia o dia que se segue. Ainda que o vejamos de rosto erguido, esse sim, merece que nos curvemos na mais sentida das vénias.





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terça-feira, 20 de novembro de 2018

As meias




Sempre gostei demasiado de meias para alguém que não gosta de metades. Meias, entendam, não é metade de nada. Por exemplo, enquanto um amor pela metade não é coisa nenhuma, as meias podem ser um amor inteiro.

Na minha vida, as meias têm sido um amor inteiro. Devo ter um par de meias oferecido por cada pessoa que amei. Não porque as coleciono ou porque as pessoas o saibam. Mas porque, de alguma maneira, friorenta e impossível, as pessoas habituaram-se a tentar buscar o meu conforto e me estenderam sempre, sem sequer saberem disto, esses pedaços quentinhos de carinho.

Isto vem desde há muito tempo. Quando, em menina, num Inverno friorento de pés-gelo, a minha avó me calçava um segundo par de meias e me deixava deitar no sofá, de pezinho infantil enfiado no bolso do seu xaile favorito. E o meu avô retorquia, quando ela não o fazia depressa “vai calçar mais um parzinho de meias ao pinguim, vai”.

Pela história de mim, houve momentos de ternura imprevista. Um amigo nortenho que me estende as meias de lã castanha. “Estas são mesmo quentinhas”. Uma forma de dizer “gosto de te ter aqui, sei que está frio mas quero que estejas bem”.

O namorado que, em eras mais amenas, vendo-me a paixão pelas riscas cinzentas e pretas, me oferece um dos seus pares de meias. “Estas fazem conjunto com as tuas cuecas favoritas e a camisola de malha”.

A minha mãe, que todos os anos lá encontra um par mais quente do que o anterior, ora com motivos natalícios, em turquesa; ora com pelinho por dentro; ora com antiderrapante “porque o chão cá de casa está uma desgraça”. E ninguém quer que eu caia das escadas abaixo… outra vez. Ou que me queixe de frio. Outra vez.

O facto é: aprendi a amar as meias. Logo eu, que detesto as metades. Amo as meias. E vejo nelas expressão de amores maiores do que a casualidade.

Gosto de meias. De meias caminhadas de sorriso no rosto. De comer o crepe com gelado a meias. De meias conversas, permeando instantes de pausa entre o trabalho. Gosto de meias de lã. De meias de algodão. De meias-calças. E do sorriso cativo que deixam no rosto, a par com o calor nos pés. Na alma. Em mim.

As meias. Tão cheias de história e com histórias tão cheias de amor. Gosto de meias. E, volta e meia, pensar nisto aquece-me por dentro e faz-me sorrir.






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terça-feira, 13 de novembro de 2018

Aprender a ser feliz



Aprender a ser feliz é horrível. E é por isso mesmo que a maioria das pessoas não quer fazê-lo. Aprender a ser feliz é horrível.


Desencantam-se as vozes para contar tragédias. Há marés de comiseração e pena. Coitadinho: tão boa pessoa e não merecia. Foi a vida. Foi o mundo. Foram os outros. Foi o desígnio dos Deuses. Coitadinho. Uma mão que bate nas costas. Um olhar de ternura, quase materna. E, de repente, um calor na alma amarga que até parece acalmar as mágoas e trazer um pouco de aventurança ao dia que, não tendo terminado ainda, poderá trazer o bom e o mau, conforme a sina assim o ditar. 

Esta é a tua história. Mas não leves a mal. Porque esta também foi a minha história. Esta é a história de muita gente que gosta de insistir na ideia criada, globalmente sustentada e filmicamente reproduzida de que a nossa felicidade está nas mãos de entidades, critérios e condições que nos escapam e nos transcendem.

Estendemos a mão à cigana e focamos os olhos nas cartas de tarot. Queremos ver nas borras do café e descobrir nas rachas da bola de cristal. Será que vamos ser felizes? Será que esta dor passa? Será que o sofrimento não tem fim? E, por detrás de panos e instrumentos, de toques e de análises estruturadas, a resposta dada depende sempre da mesma condicionante e tem sempre o mesmo obstáculo. Sim, dizemos, vais ser feliz mas (existe este mas) vais fazer por isso?

Dizemos que sim. Que vamos fazer por isso. Mas a ideia de termos de fazer algo nas nossas vidas para sermos felizes é algo que frequentemente se interpreta muito mal. Vou, é claro. Pensamos. E depois enchemos os dias de pessoas. Ou de gatos. Ou de filmes. Ou de álcool. Ou de drogas. Ou de roupa. Ou de promoções. Ou de viagens. A busca pela felicidade passa, de forma mais ou menos explicita, pela procura daquilo que nos dá um momento de prazer.

Ser feliz não é ter um momento de prazer. Ser feliz nem sequer é ter, em soma, mais momentos prazenteiros do que desagradáveis. Isso é estar feliz. Ser feliz é outra coisa. Uma que não acontece de forma natural nem por se tentar enfiar dentro do vazio, que é nada, um sem fim de coisas que são sugadas e se mesclam com o vazio até serem, também elas, fragmento de coisa nenhuma.

Ser feliz é uma aprendizagem. Quem aprende a ser feliz não vai ter sempre sorte na vida nem vai, de súbito, conhecer apenas a parte mais doce da existência. Não existe um recanto do mundo programado e modelado para aqueles que aprendem a ser felizes. Não! A dinâmica do mundo é a mesma para todos. Não há ninguém que não acorde mal disposto sem razão. Não há ninguém que não tenha um acidente, uma discussão, um problema, uma dificuldade. A vida de uma pessoa feliz é igual à de uma pessoa triste. E a diferença fundamental está na escolha que se faz. Na postura que se adota. No olhar que se lança sobre a mesma situação.

Mas aprender a ser feliz não é fácil. Implica, para começar, que se olhe para fora, para compreender quão pequeninos somos, no meio de um mundo com tanto potencial e com um potencial tão mal aproveitado. E que, nesse olhar que se dá ao outro, sejamos capazes de nos despir de nós, das nossas ideias e preconceitos, para ver e aceitar que a dor alheia, ainda que não nos doa na pele, pode tomar proporções que nem ousamos pensar e conhecer.

Depois de olhar para fora, é importante olhar para dentro, para percebermos que, na nossa insignificância, somos ainda dotados do privilégio de existir e da inteligência para superar as perdas, conquistar batalhas e resolver problemas.

Uma vez feito isto, é ainda necessário que se encontre espaço para pensar nela. Na palavra proibida. Na inimiga comum, que permeia os tempos, qual presença demoníaca sob o véu do pensamento. A morte. É importante pensar a morte para ser feliz. Porque ela, pela sua iminência e infalibilidade, tem o duplo poder de intensificar os momentos e abrir uma porta de saída de emergência. Saber que vamos morrer faz-nos amar a vida. Saber que podemos morrer faz-nos largar o temor do erro, da falha, da privação.

E, nesse olhar para dentro, para fora e para a morte, há uma coisa que salta aos olhos. Podemos aprender a ser felizes. Porque a felicidade não é um momento e não é uma situação. Não é uma circunstância nem uma casualidade. A felicidade é uma escolha.

Mas aí é quanto tudo se complica! Quando sabemos que a felicidade é uma escolha. Quando sentimos esta certeza, feito toque do sol na pele, torna-se muito mais difícil viver. É horrível. Porque, a partir daí, se não formos felizes não há espaço para desculpas. Não há espaço para atribuição de culpas alheias ao mundo, à vida, aos outros ou aos Deuses. Sim! Torna-se muito mais difícil viver. Porque ninguém quer olhar ao espelho para saudar o único culpado da sua própria miséria. Aprender a ser feliz é horrível. E é por isso mesmo que a maioria das pessoas prefere agarrar-se às convenientes cordas de fatalidade. E sofrer alegremente na inábil e asnada libertação de ser servo das sádicas linhas do destino.

Aprender a ser feliz é horrível. E é por isso mesmo que a maioria das pessoas não quer fazê-lo.


Isto deixa-me triste. Mas a culpa não é minha.






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terça-feira, 6 de novembro de 2018

Até logo




Eu podia sentir sobre as minhas costas nuas o toque da palma da tua mão. Quente. Era sempre quente a palma da tua mão. Especialmente depois de fazermos do corpo um do outro templo. E de orarmos essas rezas unânimes e tão despidas de pudores. Com lábios arrancando beijos do suor da pele. E com dedos riscando traços um no outro. Escrevendo a história da paixão. Naquele dia, podia sentir sobre as minhas costas nuas o toque da palma da tua mão. E imaginava-te os olhos fechados e serenidade no rosto. Imaginava. Embora não pudesse olhar para ti. De rosto mergulhado na almofada, a única coisa que me sobrava era a tentativa. Essa de chorar baixinho e sem estremecer, para que não notasses.

Disseste que me amavas. E eu disse que te amava. E os lençóis debaixo de nós riam-se da ironia das palavras que trocávamos.

A hora do jantar estava perto e tínhamos mesa marcada no nosso restaurante favorito. Quiseste apressar-te no vestir da roupa e que eu fizesse o mesmo, para não nos atrasarmos. E, eu pedia aos ponteiros para terem calma. Para podermos continuar ali. Na cama. Com a palma quente da tua mão nas minhas costas nuas. Lembrando a tensão de corpos que vibravam ao toque e arrepios de prazer que se entoavam em murmúrios ou gritos, conforme mandava o desejo. A hora do jantar estava perto e tínhamos mesa marcada. A tua mão quente largou as minhas costas nuas e a almofada bebeu-me a última lágrima, antes de eu atuar um sorriso e plantar um beijo em ti.

Disseste “vamos”. E eu disse o mesmo. E fomos.

Na mesa, com a simpatia usual, foram colocadas as iguarias de sempre. Não arriscámos no menu semanal nem nos pratos que nunca tínhamos provado. Escolhemos os nossos favoritos. Da entrada à sobremesa. Vivendo, sem ousadia, os sabores que escondiam o suor e a saliva desenvergonhados que ainda trazíamos nos lábios. Demos as mãos sobre a mesa. Separando-as só quando as travessas se pousavam no meio. E o funcionário ria amigavelmente de nós e dos nossos pedidos expectáveis. Sorriamos. Um ao outro e àquele homem, alheio à realidade.

Pagaste a conta. Ao sair, puseste a mão na minha cintura. E entrámos na carrinha.

A trivialidade da conversa não rimava com o ardor crescente que eu tinha no nariz nem com o olhar embaciado que pedia socorro. Pedi à estrada para ser longa. Aos ponteiros para se estenderem nos segundos. Mas nada, nada me respondia. Cravei as unhas nos joelhos e disse a mim mesma que não ia chorar. Uma norma que quebrei ainda antes de acabar a frase. Paraste o carro no estacionamento à frente da nossa casa. Lá fora chovia. Trocámos um beijo apaixonado, com lágrimas à mistura. Provei o sal dos teus olhos e tu o sal dos meus. Repetimos que nos amávamos. Porque nos amávamos. E, depois, demos um abraço que nos partiu os ossos da alma.

Tinhas estacionado o carro à frente da minha casa. Essa que, agora, não seria a nossa.

E não tornaríamos a fazer amor. Nem a trocar um beijo. Nem a dizer que nos amávamos.

Dissemos “até logo” para não dizer “adeus”. A chave que rodei na porta do prédio foi a que rodaste no carro. Virei costas e dobraste a esquina.

Matámos o “nós” para que o “eu” vivesse. E a esperança do calor a troco de um amanhã ameno. Limpei as lágrimas antes de entrar em casa. Disse a mim mesma que não ia chorar. Não chorei. Arrastei o móvel pesado dos livros para outra divisão. Sentei-me no chão a olhar para ele.

A minha gata cheirou-o de ponta a ponta e deu-me uma cabeçada felina em cumprimento.

“Fica bem, não fica?”, perguntei-lhe. Ela não parecia discordar. “Ainda bem que gostas… agora somos só tu e eu.”

E a solidão. Mas não lhe disse. Não queria que ela ficasse triste.





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