quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Idalina



Ela não era o tipo de mulher que ficava para a História. Sobre ela, creio, não se escreveram contos, nem romances. Não existe, tão pouco, uma epígrafe de pedra, qual lápide sepultando os ossos idos, que relembram, hoje em silêncio, o tempo de um corpo farto de amor e vida. Ela não era o tipo de mulher que ficava para a História e nunca fez por sê-lo. Caiu em desuso o seu nome e a sua identidade perdeu-se. Chegou-me só. Numa espécie de fumo aromatizado a saudade. Sem corpo. Apenas voz. Contada, com apontamentos dúbios de veracidade, que se estendiam, ressoando, na memória… “Oh Lina, Lina… a Guarda é feia”.
Ela não era o tipo de mulher que se importava com a ideia de não ficar para a História. Mas não gostava de ouvir dizer que a terra onde cresceu era feia. E, senhora do lar, cândida e devotada à família, ela que nunca se enervava, logo via a mostarda subir-lhe ao nariz. Feia é a Covilhã! E iniciava-se uma espécie de debate, de proporções mornas, que terminava com a única noção que Idalina conhecia. A do amor.
Ela não era o tipo de mulher que ficava para a História. A sua pele pálida, quase translúcida, de uma tez modelada pelo remoinho do cabelo revolto, no lado direito da nuca e o sorriso que demarcava as rugas junto aos olhos amendoados, estavam destinadas a permanecer nas fotografias a preto e branco, onde morreria pela segunda vez, desconhecida nos olhos amargos das pessoas que não sabem quem ela é.
Ancorada num tempo em que a sola do chinelo era um instrumento educacional tão útil quanto a tinta de escrever ou o livro de leitura, ela aprendera a imprimir as normas com exímia sapiência e criara cinco filhos. Dois filhos e três filhas. Que viriam todos a honrar-lhe a memória do nome que esmorecia. Nos dizeres mais simples. Nas memórias mais firmes. Como os beijos do chinelo. De onde “só se perderam as que caíram no chão”.
A História não fala de mulheres como Idalina. Nem da forma como cuidava garantir o bem-estar dos seus e dos outros. Nem da forma como tinha braços que acolhiam António, depois de ausências e em períodos de faltas. Nem da forma como, temente a Deus, imprimia nas crias os valores da bondade e da benevolência. Dela, só falavam os filhos. Primeiro os cinco. Depois quatro. Depois três. Agora dois…
Falou-me, um deles, da Idalina. Mulher forte, que em tempo de guerra fazia milagres na cozinha, servindo pratos de quase nada, sem reclamar e com uma oração nos lábios. Mulher que, aquecendo a família ao redor de uma salamandra, tecia com meias sorrisos inteiros em rostos de meninos. Mulher que dava, sem pedir. Mulher que pedia para poder dar mais. “E se ela não está no céu, mais ninguém está”.
Idalina. É este o nome. De uma mulher que não ficou para a História mas que conquistou – ou assim se espera – um lugar no céu, pela forma como levou a vida.
Ela não era o tipo de mulher que ficava para a História. Mas é o tipo de mulher que deixa um legado. Em mim, deixou dois olhos amendoados e um remoinho no cabelo revolto, do lado direito da nuca. E esta história. Que não vai ficar para a História. Mas vai ficar aqui. Enquanto eu aqui estiver.



Marina Ferraz



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terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Armas




Algumas pessoas nascem com armas. Outras aprendem a construí-las. Há ainda aquelas que, de tão fascinadas pelos mundos da guerra, se dedicam a procurá-las, cavando com os dedos na pele alheia, em busca dos artifícios que lhes preencham os arsenais. Têm as mãos levemente ensanguentadas. E sorrisos nos rostos. Matar dá-lhes um prazer que preenche mais do que qualquer refeição e sacia mais do que qualquer bebida divina. Matar é ser-se imortal. Por alguns segundos. Antes de voltar a sede. E a fome. Pela carne e o sangue e os ossos espalhados sobre a arena da vida.

Há uma guerra aberta em cada conversa. E em cada gesto. E em cada sussurro de ponteiro de relógio. Disparam-se as armas. As que se trazem, as que se fazem, as que se procuram. E todos são culpados desse desejo, mais ou menos patente, mais ou menos abstruso, pela carnificina que se faz ao outro. Contando que todos saiam a andar. Inteiros. Com duas pernas e dois braços. Olhos rodando nas órbitas. Passos coxos apenas de insistir nos saltos. E orelhas moucas como a moda dita. Basta que saiam todos a andar. Ninguém repara. Nos bocados espalhados pelo chão, não tão diferentes dos restos de carnes na tábua do talho. Porque são bocados de alma. E a alma sangra uma seiva invisível. Algo amarga mas sem cheiro. E não deixa no ar a noção da morte que caminha. Com passos coxos e orelhas moucas.

Foram os meus passos e as minhas orelhas. Muitas vezes. E a minha alma. Mas isso ninguém sabe, porque não se vê. Das armas que usaram contra mim, sempre esperei inovadoras tramas e princípios. E não me desiludiram nunca as mãos e as bocas e os olhos que as disparavam. Lançando balas de sopro, onde desprezo, ódio, arrogância, insensatez, mentira, despeito, rancor e maldade se uniam num metal muito fino. Dilacerante. Que acertava em cheio. Dentro. Deixando-me caídos os bocados meio mastigados da carne da alma. Pelo chão. Enquanto eu ia.

Durante toda a vida, a única arma que eu alguma vez tive foi a minha escrita. E as palavras, que eram as balas. E as folhas que eram campos. E as linhas, que eram guias. E as margens, que eram regras. Mas arma? Arma, só tive uma. Essa. A escrita.

Escrevi. Cada texto era uma recolha, de joelhos no solo, apanhando os pedaços da minha alma e juntando-lhe as peças, feito quebra-cabeças. Nunca lhe prometi que voltasse a ser una. Tentei sempre que fosse bonita.

Mas quando a alma dói. Quando olha ao espelho e não se reconhece. Ela própria pega nas armas. Na arma. Na escrita. E diz. Diz o que deve. Diz o que não deve. Diz o que quer. Odeia toda a gente. Diz que odeia. Mas depois ora pela humanidade como se a amasse. E torna-se bipolar de ideias e pensamentos dispersos. Tudo é cinza. Tudo é cor. Tudo dói. E fazemos um gesto de carinho, de mão passada com leveza, palma sobre pele, nesse irregular segredo de cicatrizes invisíveis e dores indizíveis.

Aprendemos a ser fortes assim. Amando. Até o que nos derruba. Até o que nos quebra. Por vezes, mais o que nos abala e destrói. Numa loucura que só não é louca porque se diz amor.

A única arma que eu alguma vez tive foi a minha escrita. Não é uma arma que sirva propósitos maiores, salvo se alguém ler. Mas, por uma vez ou duas, venci batalhas inesperadas, onde a chance era de um contra um milhão.

Se vale a pena? Não vale! Mas cada um luta com o que tem. Eu tenho isto. Terei sempre isto. E joelhos que se dobrem para me ajoelhar. E mãos que recolham os pedaços quebrados de mim. Quando as armas dos outros forem mais fortes que as minhas. Ou quando – por amor – eu não quiser revidar.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet


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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Quem é esse monstro




Perguntaram-me. Quem é o monstro? Uma resposta imediata. O monstro sou eu. Mas quem é esse monstro que tu és? Desassossegada, uma mente que nunca dorme, mergulhou no negrume de si. Quem é? Esse monstro que eu sou?
Plural, incompreendido, senhor de um nariz que é seu. Com muito para dizer, com muito para ouvir, com muito pouca vontade de dizê-lo e ainda menos de ouvi-lo. De extremos. De obsessões. De desejos. Vibrantes e lascivos. Ou inconsequentes. De falácias. De medos. De supostas coragens desarticuladas, que anulam o medo como se não existisse. Pisado. Dorido. Cheio de cicatrizes de suposta quebra e com um sabor metálico nos lábios eternamente cerrados porque falar se faz com as pontas dos dedos.
Tudo isto e mais. Mas quem? Quem é? Quem é esse monstro que eu sou?
Atormentado, feito de sonhos e panteísta. Eternamente devotado aos Deuses. Num plural que se faz vento suspirado. Do contra. A favor. Com um lugar de fala que abomina e ao qual se amarra. Desconhecido de si. Desconhecido dos outros. Concreto como a sombra e desiludido como os manifestantes da ordem da paz. Eternamente encontrando defeitos. Nos verbos e nas formas de dizer a, à, há. Completamente contra a ordem das coisas. Com uma necessidade profunda de encontrar uma ordem para as coisas. Obsessivamente controlador da forma como o tic e o tac se sucedem. Guardião de ponteiros de relógio. Senhor e mestre de agendas que se preenchem a lápis. E de um lápis que é tinta mental e só apaga a bomba.
Tudo isto e mais. Mas quem? Quem é? Quem é esse monstro que eu sou?
Vítima. Mas atacante. Defensor. Linha da frente na apologia do eu. Criador de massacres. Rasgando a pele com as unhas. Que pinta. Ou não. Consoante a maré. E o tempo. E o número de dígitos digitais na conta. Impulsionador de memórias que são ácidas. Bebendo do veneno dessas realizações inconcretas sobre palavras que foram ditos e gestos que foram feitos. Eternamente velho entre os jovens e para sempre menina, de saia levantada e lágrimas nos olhos. Correndo. Ora para lá, ora para cá. Sem saber a qual dos passados e futuros deve chamar presente.
Tudo isto e mais. Mas quem? Quem é? Quem é esse monstro que eu sou?
Adorador de mortes. Bebendo de seivas góticas a vida inebriada a absinto e tequila. Com um aroma de madeiras e frutos silvestres na camada inferior do vinho que abre, ao seu contrário. Porta fechada, com três camadas de muralha e duas de véu. Onde a sobreposição dos concretos se faz no horizonte onírico de desconhecimentos dispersos, inversos e invertidos em si. Na tortura ancestral do que se diz moderno e sem aceitar a modernidade tecnológica que transforma betão em estrelas cadentes e pessoas em autómatos que assistem a cloaca televisiva e dela geram algo que, redundantemente, ganha título de opinião.
Tudo isto e mais. Mas quem? Quem é? Quem é esse monstro que eu sou?
Amante e amor de quem não sabe caminhos consistentes para as terras veraneantes. Incapaz de se libertar dos espectros fantasmagóricos da paixão. Queimado e apaixonado pela mesma chama que dá alento aos ossos imundos e cheios de desencanto. E louco. Louco como só é quem, detido pelas amarras brancas de um abraço a si mesmo, passa os dias a olhar para o nada, vendo tudo e um pouco mais do que tudo.
Perguntaram-me. Quem é o monstro? Uma resposta imediata. O monstro sou eu. Mas quem é esse monstro que tu és? Desassossegada, uma mente que nunca dorme, mergulhou no negrume de si. Quem é? Esse monstro que eu sou? Não sei.




Marina Ferraz




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