Ela não era o tipo de mulher que ficava para a História.
Sobre ela, creio, não se escreveram contos, nem romances. Não existe, tão
pouco, uma epígrafe de pedra, qual lápide sepultando os ossos idos, que
relembram, hoje em silêncio, o tempo de um corpo farto de amor e vida. Ela não
era o tipo de mulher que ficava para a História e nunca fez por sê-lo. Caiu em
desuso o seu nome e a sua identidade perdeu-se. Chegou-me só. Numa espécie de
fumo aromatizado a saudade. Sem corpo. Apenas voz. Contada, com apontamentos
dúbios de veracidade, que se estendiam, ressoando, na memória… “Oh Lina, Lina…
a Guarda é feia”.
Ela não era o tipo de mulher que se importava com a ideia de
não ficar para a História. Mas não gostava de ouvir dizer que a terra onde
cresceu era feia. E, senhora do lar, cândida e devotada à família, ela que
nunca se enervava, logo via a mostarda subir-lhe ao nariz. Feia é a Covilhã! E
iniciava-se uma espécie de debate, de proporções mornas, que terminava com a
única noção que Idalina conhecia. A do amor.
Ela não era o tipo de mulher que ficava para a História. A
sua pele pálida, quase translúcida, de uma tez modelada pelo remoinho do cabelo
revolto, no lado direito da nuca e o sorriso que demarcava as rugas junto aos
olhos amendoados, estavam destinadas a permanecer nas fotografias a preto e
branco, onde morreria pela segunda vez, desconhecida nos olhos amargos das
pessoas que não sabem quem ela é.
Ancorada num tempo em que a sola do chinelo era um
instrumento educacional tão útil quanto a tinta de escrever ou o livro de
leitura, ela aprendera a imprimir as normas com exímia sapiência e criara cinco
filhos. Dois filhos e três filhas. Que viriam todos a honrar-lhe a memória do
nome que esmorecia. Nos dizeres mais simples. Nas memórias mais firmes. Como os
beijos do chinelo. De onde “só se perderam as que caíram no chão”.
A História não fala de mulheres como Idalina. Nem da forma
como cuidava garantir o bem-estar dos seus e dos outros. Nem da forma como
tinha braços que acolhiam António, depois de ausências e em períodos de faltas.
Nem da forma como, temente a Deus, imprimia nas crias os valores da bondade e
da benevolência. Dela, só falavam os filhos. Primeiro os cinco. Depois quatro.
Depois três. Agora dois…
Falou-me, um deles, da Idalina. Mulher forte, que em tempo
de guerra fazia milagres na cozinha, servindo pratos de quase nada, sem
reclamar e com uma oração nos lábios. Mulher que, aquecendo a família ao redor
de uma salamandra, tecia com meias sorrisos inteiros em rostos de meninos.
Mulher que dava, sem pedir. Mulher que pedia para poder dar mais. “E se ela não
está no céu, mais ninguém está”.
Idalina. É este o nome. De uma mulher que não ficou para a
História mas que conquistou – ou assim se espera – um lugar no céu, pela forma
como levou a vida.
Ela não era o tipo de mulher que ficava para a História. Mas
é o tipo de mulher que deixa um legado. Em mim, deixou dois olhos amendoados e
um remoinho no cabelo revolto, do lado direito da nuca. E esta história. Que
não vai ficar para a História. Mas vai ficar aqui. Enquanto eu aqui estiver.
Marina Ferraz