terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Quero-te



Quero-te. Quero-te numa dimensão do verbo querer que ainda não foi escrita. Numa dimensão de necessidade por explorar, por saber, por pensar. A forma como te quero é uma equação sem resultado. Uma teoria nunca dita. Uma estrela ainda por nascer nos confins do Universo, ainda por descobrir.
Quero-te. Quero-te bem. Quero que o teu "bem" seja melhor. Que supere a mortalidade. Que supere todas as divindades do mundo. Quero-te feliz como nunca ninguém foi. Quero-te a sorrir como dizem ser proibido. Quero-te. Quero-te na dimensão indefinida do que não é explicável nem certo nem coerente.
Quero-te. Quero-te de uma forma tão louca que supera a loucura. De uma forma tão sã que supera a sanidade. De uma forma tão completa que supera o insuperável.
Quero-te à distância de um beijo. Quero-te nos confins da Terra. Quero-te no centro do Mundo. Quero-te onde quiseres estar ou onde não quiseres, caso o destino manobre as tuas rotas para te fazer chegar aonde sei que podes ir.
Quero-te. Quero-te na miséria da felicidade que só têm os loucos. Quero-te na fortuna do sucesso que só têm os bons. Quero-te com tudo aquilo de que precisas para que nunca, jamais, tenhas de abdicar de nada que ames.
Quero-te, mas entende: não para mim. Quero-te para o Mundo, quero-te para a felicidade, quero-te para o que há de maior e melhor no universo.
Quero-te como se quer a magia. Como se quer o horizonte ou a utopia alada de uma vida eterna. Quero-te.
Não espero que entendas. Não espero que ninguém entenda. Não espero sequer entender um dia. Tudo o que sei é que te quero. Que te quero com um sorriso que não esmoreça, com um olhar que brilhe, com uma felicidade que ninguém possa roubar e que nenhum contratempo esbata.

Marina Ferraz
* Imagem retirada da Internet

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Raízes


Tenho as minhas raízes nas pontas dos dedos. Profundamente cravadas na terra dos meus pensamentos. Oportunamente desgastadas pelo passar do tempo. Bebo da água da chuva que me verte do olhar, qual cascata doce de uma tristeza infinita. Mas como a tristeza não basta, alimento-me do amor que ficou por entre as rochas do subsolo do meu passado e ergo-me aos céus, de braços estendidos. Sou mais alta do que os prédios mais altos da avenida. Mais forte do que os homens que palmilham as ruas. Sou maior e mais forte porque tenho as minhas raízes nas pontas dos dedos.

Ouvi dizer que choveu. Torrencialmente. Ouvi dizer que o vento fez estragos em mim e me derrubou com a dureza das mentiras, da distância e do adeus. E a tempestade que se fez em mim, dizem que me quebrou. Que caí por entre o bosque encantado dos meus sonhos e que ninguém notou. Sou apenas uma árvore caída, não é? Uma árvore caída na floresta das ilusões, na profundeza da mata das histórias de encantar. Quebrada, pela vontade intempestiva do mundo. Ouvi dizer que me derrubaram. Que me destruíram com relâmpagos de maldade e com a acidez das chuvas de cobiça. Foram as andorinhas de verdade que me contaram, enquanto corriam para Sul, tentando fugir da maldade humana.

Tenho as minhas raízes nas pontas dos dedos. Profundamente alinhadas com a vontade dos Deuses. Oportunamente delineadas para cumprir os desígnios do Mundo. E, embora tudo o resto esteja caído, a apodrecer nos caminhos vãos da Terra, as raízes estão intactas, sem saber se a tempestade levou tudo ou trouxe mais do que levou.

E, quem passa, vê uma árvore caída. Que diferença faz? Dos meus desgostos, caídos pelo chão; dos meus desejos, mortos pelo tempo já toda a gente fez fogueiras para aquecer um sorriso podre de vingança. Mas as minhas raízes não, porque estão cravadas nos sonhos, conscientes e acordadas. Estão fixas na certeza do que foi e encontram aí, não apenas mágoa, mas também amor e arte, palavras e conforto.

Enquanto acendem lareiras de maldade com as minhas quedas, as minhas raízes constroem vida com a maldade dos outros. E eu não sou uma árvore caída nos confins da floresta. Sou as raízes sólidas que permanecem ligadas à terra. Sou as palavras que fluem. Sou o que a tempestade não consegue levar e o que as pessoas não conseguem destruir. Tenho as raízes nas pontas dos dedos e o coração nas minhas raízes. O resto de mim que quebre. A minha força é inquebrável e mora onde ninguém a vê.


Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Dançar na rua


Deixa-me dançar na rua, ao som do infinito e na solidão das pessoas cujos rostos não me marcaram a vida e cujos nomes não sei.
Quero dançar.
Quero dançar mesmo que o faça com passos desleixados e que não gostes de me ver fazê-los, vez após vez, numa coreografia despida de sentido.
Hoje é por mim.
Deixa-me dançar na rua, ao som de uma vida de promessas irreais e de uma realidade fria e crua, que promete eternidades de vazio.
Quero dançar com o vento. Essa dança milenar que percorreu o mundo e ancorou na alma de quem sabe que existe uma música constante nos ecos da nossa dor.
Deixa-me dançar. Deixa-me dançar uma valsa de sentidos, enquanto o mar brame e o céu chora e as pessoas passam sem notar.
O que importa? O que importa uma alma cheia de sonhos numa vida vazia de tudo? O que importa uma voz doce entre os silêncios do amor?
Vou dançar na rua. Como se o mundo acabasse amanhã e eu tivesse medo do que vem depois. Porque eu tenho medo! Medo da ausência e do silêncio e da desistência e do adeus...
Mas não tenho medo de dançar na rua. Nem tenho vergonha de o fazer...
Por isso, deixa-me dançar na rua, enquanto não puderem prometer-me que não preciso de ter medo da ausência, do silêncio ou do adeus. Deixa-me dançar na rua até alguém dançar comigo uma dança rumo à eternidade de um amor maior. Uma dança rumo à concretização de cada sonho.
Deixa-me dançar na rua...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Anciã



Era o tempo das fogueiras. A senhora ergueu-se. De braços abertos. Desamparada. E, ao erguer-se, deixou que os braços se erguessem também, num abraço ao céu. A morte era o desapego das coisas. Não temia a morte. Não temia o fechar dos olhos pela eternidade. Mas a vida? Da vida ela ainda tinha medo. Não era fácil viver assim, calando a convicção cega em coisas que os outros não viam.
A idade pesava. Tinha vivido demasiados Solstícios. Sobrevivido às piores tempestades e às piores secas. As rugas tinham marcado o curso dos rios no seu rosto. E as mãos, manchadas do sol, tinham segurado demasiados recém nascidos e fechado os olhos a demasiados defuntos.
Não tinha medo da morte. A morte era só mais um ritual antes do Verão eterno. Mas a vida? A vida já não era dos Deuses. A vida era dos homens. E os homens tinham sido corrompidos pela ideia de tudo o que não existia. Os homens tinham rasgado o manto verde da sua mãe e violado a Natureza com os seus monstros de pedra. E tinham construído altares à cegueira do rebanho. Tinham-se habituado a usar do divino a seu bel-prazer. E, agora, os homens vinham para a levarem para a fogueira.
Servira o seu propósito. "Feiticeira". Era isso que lhe chamavam agora. "Feiticeira". Era esse o nome gritado pela voz de meninas que trouxera ao mundo, de mulheres de quem cuidara ao longo de partos, de homens que curara com ervas que mais ninguém conhecia na aldeia. "Feiticeira". E era com temor que o diziam. Como se uma anciã pudesse ser perigosa para eles. Como se ela tivesse a força ou a vontade de ferir alguém.
Mas tinham-lhe perguntado. "A quem serves?" E ela não podia negar a divindade. Então, erguera a voz. "Sirvo a Mãe". E eles tinham-se rido. Tinham-se rido das suas palavras. Não entendiam o vento nem o mar. Não entendiam as muitas vozes que cruzavam a Natureza e se fundiam na perfeição do mundo. "A quem serves, mulher?", tinham perguntado de novo. E ela perguntara-se se eles eram surdos. "A Mãe", respondeu. E de novo o riso entrecortado pelos gritos. "Feiticeira".
Queriam o seu sangue e nada do que dissesse a salvaria. Mas mesmo que tivesse salvação, não queria viver negando a quem tanto lhe dera no Mundo.
Crescera só. Vivera só. Pouco conhecera além da solidão dos dias. Mas, de manhã, todas as manhãs, ela saia pelos prados e tomava o caminho da floresta, para colher as plantas da sua lavoura. Nesses tempos era por outro nome que a conheciam e com outro respeito que a tratavam. Curandeira. Simples serva da Mãe Natureza. Serva dos Deuses que a protegiam e da vontade divina dos elementos da Terra. E, por entre a solidão, a floresta falava. As árvores davam-lhe a carícia de um beijo pela manhã e as flores dançavam com ela. Crescera só. Vivera só. Jamais estivera só. Nem mesmo agora, atacada, à espera da morte estava só. Havia o vento e o aroma infinito a eucalipto e pinho.
Não devia nada aos seus compatriotas. Dera mais do que alguma vez pedira. Mas devia a sua dignidade, a sua essência à floresta e não a negaria jamais.
"Última hipótese, velha, a quem serves?". O que queriam eles ouvir? Que ela servia um Deus ou um Demónio? Ela só servia quem a servia. Só se dava a quem lhe dava. "Sirvo a Mãe", repetiu. E esperaram que ela permanecesse vergada, só. Mas a senhora ergueu-se. De braços abertos. Desamparada. E, ao erguer-se, deixou que os braços se erguessem também, num abraço ao céu.
Esse abraço, dado de irmã para irmã com a Natureza das coisas, roubou-lhe o último suspiro de uma vida. E os seus executores fungaram, por não terem o deleite de lhe roubarem a vida a fogo e ferro.
Ela caiu a sorrir. "Feiticeira", gritavam as vozes, sedentas de sangue. E a sua alma ergueu-se  e lançou um último olhar àquela plateia degradante. De mãos dadas com a sua Mãe, o espírito encantado de uma Natureza viva, ela entendeu. Eles estavam sós. Todos eles, juntos ali, tão sós. Mas ela não. Ela estava bem. Não temia a morte. Temia pela vida daqueles que morriam por dentro antes de ser tempo de voar até aos confins da eternidade.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet