Era o tempo das fogueiras. A senhora ergueu-se. De braços
abertos. Desamparada. E, ao erguer-se, deixou que os braços se erguessem
também, num abraço ao céu. A morte era o desapego das coisas. Não temia a
morte. Não temia o fechar dos olhos pela eternidade. Mas a vida? Da vida ela
ainda tinha medo. Não era fácil viver assim, calando a convicção cega em coisas
que os outros não viam.
A idade pesava. Tinha vivido demasiados Solstícios. Sobrevivido às piores tempestades e às piores secas. As rugas tinham marcado o
curso dos rios no seu rosto. E as mãos, manchadas do sol, tinham segurado
demasiados recém nascidos e fechado os olhos a demasiados defuntos.
Não tinha medo da morte. A morte era só mais um ritual antes
do Verão eterno. Mas a vida? A vida já não era dos Deuses. A vida era dos
homens. E os homens tinham sido corrompidos pela ideia de tudo o que não
existia. Os homens tinham rasgado o manto verde da sua mãe e violado a Natureza
com os seus monstros de pedra. E tinham construído altares à cegueira do
rebanho. Tinham-se habituado a usar do divino a seu bel-prazer. E, agora, os
homens vinham para a levarem para a fogueira.
Servira o seu propósito. "Feiticeira". Era isso
que lhe chamavam agora. "Feiticeira". Era esse o nome gritado pela
voz de meninas que trouxera ao mundo, de mulheres de quem cuidara ao longo de
partos, de homens que curara com ervas que mais ninguém conhecia na aldeia. "Feiticeira".
E era com temor que o diziam. Como se uma anciã pudesse ser perigosa para eles.
Como se ela tivesse a força ou a vontade de ferir alguém.
Mas tinham-lhe perguntado. "A quem serves?" E ela
não podia negar a divindade. Então, erguera a voz. "Sirvo a Mãe". E
eles tinham-se rido. Tinham-se rido das suas palavras. Não entendiam o vento
nem o mar. Não entendiam as muitas vozes que cruzavam a Natureza e se fundiam
na perfeição do mundo. "A quem serves, mulher?", tinham perguntado de
novo. E ela perguntara-se se eles eram surdos. "A Mãe", respondeu. E de novo o riso entrecortado pelos gritos. "Feiticeira".
Queriam o seu sangue e nada do que dissesse a salvaria. Mas
mesmo que tivesse salvação, não queria viver negando a quem tanto lhe dera no
Mundo.
Crescera só. Vivera só. Pouco conhecera além da solidão dos
dias. Mas, de manhã, todas as manhãs, ela saia pelos prados e tomava o caminho
da floresta, para colher as plantas da sua lavoura. Nesses tempos era por outro
nome que a conheciam e com outro respeito que a tratavam. Curandeira. Simples
serva da Mãe Natureza. Serva dos Deuses que a protegiam e da vontade divina dos
elementos da Terra. E, por entre a solidão, a floresta falava. As árvores
davam-lhe a carícia de um beijo pela manhã e as flores dançavam com ela.
Crescera só. Vivera só. Jamais estivera só. Nem mesmo agora, atacada, à espera
da morte estava só. Havia o vento e o aroma infinito a eucalipto e pinho.
Não devia nada aos seus compatriotas. Dera mais do que
alguma vez pedira. Mas devia a sua dignidade, a sua essência à floresta e não a
negaria jamais.
"Última hipótese, velha, a quem serves?". O que
queriam eles ouvir? Que ela servia um Deus ou um Demónio? Ela só servia quem a
servia. Só se dava a quem lhe dava. "Sirvo a Mãe", repetiu. E
esperaram que ela permanecesse vergada, só. Mas a senhora ergueu-se. De braços
abertos. Desamparada. E, ao erguer-se, deixou que os braços se erguessem
também, num abraço ao céu.
Esse abraço, dado de irmã para irmã com a Natureza das
coisas, roubou-lhe o último suspiro de uma vida. E os seus executores fungaram,
por não terem o deleite de lhe roubarem a vida a fogo e ferro.
Ela caiu a sorrir. "Feiticeira", gritavam as
vozes, sedentas de sangue. E a sua alma ergueu-se e lançou um último olhar àquela plateia
degradante. De mãos dadas com a sua Mãe, o espírito encantado de uma Natureza
viva, ela entendeu. Eles estavam sós. Todos eles, juntos ali, tão sós. Mas ela
não. Ela estava bem. Não temia a morte. Temia pela vida daqueles que morriam
por dentro antes de ser tempo de voar até aos confins da eternidade.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet