As mãos. Olho para as minhas mãos. Segurando copos e jarras.
De onde se vertem agruras e amenidades. Traços de frio. Traços de calor.
Sensações. Sentimentos. Sentidos. As mãos. Olho para as minhas mãos. Nuas.
Segurando entre os dedos o que é invisível aos olhos.
Cuida de mim – pedem essas mãos – e acreditam que sim. O
futuro parece todo a seu favor. Excepto pelos dedos. Onde só há o vazio de
copos e jarras. Temperando, aos poucos a solidão de dedos nus e solitários.
Gosto das minhas mãos, embora as ache feias. Com os dedos
curtos, roliços, anafados, que lembram a preguiça e o desajuste. Gosto delas
porque, da mesma forma que seguram canetas e mexem tachos de comida, elas fazem
amor com a vida. Ou, melhor dizendo, enquanto seguram canetas e mexem tachos de
comida, elas fazem amor com a vida.
São amantes exímias, as minhas mãos. Colocam um pouco de
amor em todas as suas ações. Temperam, frequentemente, todos os momentos com um
pouco de carinho e de tolerância. E procuram trazer ao mundo apenas o melhor.
Gosto delas, não só porque conhecem os caminhos da beleza
dos sentidos, mas também porque conhecem o limite onde a aceitação termina e
não temem o voo altivo pelo ar, na direção de rostos cujos lábios não conheçam
os traços do respeito. As minhas mãos são assim. Trazem um copo de violência e
uma jarra de amor. E vão temperando, aos poucos - seja com essa violência ou
esse amor - o carinho, a rudeza e o desacato. Até haver equilíbrio outra vez.
Olho para as minhas mãos. Numa mão trago o meu desassossego
e na outra a certeza de que tudo passa com o tempo. Imagino que uma terceira
mão segure essa ampulheta. A do tempo que passa. E que sara. Mas nas mãos. Nas
duas que trago em frente aos olhos e que limpam lágrimas. Nessas, trago
essencialmente o desassossego e a esperança. Vou temperando a vida assim. E
nenhuma delas se importa com o resultado efetivo do momento que ainda não
chegou. Porque se ocupam do presente e tentam transformá-lo, modelá-lo,
torná-lo melhor.
As mãos. Olho para as minhas mãos. Essas que, de percorrerem
rostos e corpos alheios guardaram, em si, traços mágicos de paixão; essas que,
de embaterem em rostos e corpos alheios guardaram, em si, traços de força;
essas que, de trabalharem em prol de rostos e corpos alheios guardaram, em si,
traços de aptidão. Numa, seguro a jarra da ousadia. Na outra, o copo de
insegurança. E existe um traço de audácia no verter destemperado do orgulho
líquido de um recipiente para o outro. Vai ficar tudo certo – diz esse
movimento.
É o leite, o sangue e a seiva de mim que verte de um lado
para o outro, temperando-me a vida com a ideia da concretização. E há o jarro.
E há o copo. E há a temperança. Mas olho. Olho para as minhas mãos. Segurando
copos e jarras. De onde se vertem agruras e amenidades. Traços de frio. Traços de
calor. Sensações. Sentimentos. Sentidos. Olhando para elas – para as mãos – sei
que elas são donas de uma tolerância feliz, de uma praticidade profícua, de uma
paciência sã.
Tempero. Com elas. Com as mãos. A minha vida. Os dedos -
curtos, roliços, anafados - têm espaços vazios entre si. Mas tocam com ternura
o universo onírico do mundo. E sabem que precisam de segurá-la: a esperança. E
sabem que precisam de usá-la para minorar o desassossego. Os espaços vazios
preenchem-se. Um dia, quem sabe, talvez o façam com outras mãos que entendam. E
que temperem o meu amor com mais amor. No sentido mais amplo da temperança.