- Conta-me uma história... - foi um pedido de brilho nos olhos e sorriso aberto, no limiar do sono e da esperança. A voz de veludo, meio rouca, com nuances de quem não tardará a conhecer reinos de fantasia no universo dos sonhos.
Sentei-me na beira da cama e afaguei-lhe os caracóis louros, enquanto lhe fitava os olhos entreabertos. Os olhos dela. Como poderei algum dia descrever os olhos dela? Eles são azuis e verdes e raiados de amarelo e avelã. Não têm cor e têm todas as cores. Fazem lembrar dois pequenos mundos. Neles há terra e mar. Terras cheias de aventuras e mares cheios de sereias e caravelas.
- Era uma vez... - as palavras fogem-me por entre os lábios antes que me aperceba. Saem de rompante, como se responder aos desejos dela fosse mais importante do que responder à minha própria lógica. E, com os olhos vivos, ela abana a cabeça.
- Quero uma história com final feliz. - dita com a voz mortiça e imperativa, sem mudar uma única linha na expressão calma do rosto.
Esboço um sorriso. Já esgotei os meus finais felizes. Esgotei-os na aprendizagem abrupta de que não existem fins que tragam felicidade. A palavra fim é apenas mais um sinónimo para dor e mágoa e medo. Mas não se diz isso a uma criança, pois não?
- Era uma vez... - não há continuação para esta história. Mas ela fecha os olhos e rende-se ao cansaço, como se eu a tivesse contado. E, de alguma maneira, eu sei que ela ouve o que eu não digo. Um conto com unicórnios e princesas e monstros que se dão por vencidos.
Quem me dera contar-lhe que os bons não ganham sempre. Quem me dera dizer-lhe que os monstros se escondem na pele de pessoas como nós. Quem me dera dizer-lhe que nunca nos apaixonamos por um príncipe encantado. Mas ela adormece e a minha dor acorda um pouco mais. Quem me dera construir-lhe as ilusões sobre o patamar das melhores coisas da realidade.
Minto! Qual é a realidade boa sobre a qual se pode construir uma ilusão sólida? O que queria era destruir a realidade para que ela pudesse viver qualquer ilusão. Qualquer uma! Queria que ela pudesse ser uma princesa ou uma bailarina ou uma sereia, com o seu grande, grande amor, no seu castelo de fantasia. Queria que ela tivesse finais felizes em cada curva do caminho. Era isso que eu queria. Queria mudar o mundo para ela não ter de aprender, como eu aprendi, que viver magoa.
Ainda ontem era eu. Uma menina de olhos mais simples e caracóis mais revoltos. Mas, na diferença, ainda ontem eu era exactamente como ela. Sonhadora e irrealista, a pedir um final feliz nos contos de encantar. Talvez por isso, toda a vida pedi três coisas: para amar, escrever e sonhar. Hoje sei que devia ter pedido para ser amada, ser lida e realizar os sonhos. Mas ninguém nos ensina em crianças quais os perigos da semântica! Ninguém nos explica que a realidade arranja maneiras de transformar os nossos desejos em espinhos que se cravam na pele.
Cubro-a levemente e deixo-a, adormecida. Nos seus sonhos, aposto que ela pede desejos. A vida tratará de lhe roubar os sonhos. O mundo tratará de lhe negar os pedidos. Mas, por agora, deixo-a sonhar. E, para mim mesma, guardo o papel de guardiã. Assumo a espada dos sentidos e luto contra os males do mundo. E, amanhã, quando ela acordar, terei perdido essa batalha porque outro dia terá nascido e outro passo será dado rumo ao termo da infância.
Fica um suspiro. Um suspiro que começa com "era uma vez". Era uma vez a certeza inabalável de que daria a própria vida para lhe dar um "e viveram felizes para sempre". Era uma vez a consciência de que a vida passa e fere. Era uma vez uma realidade que vence os sonhos e os derruba e nos destrói... Era uma vez...
Marina Ferraz
Marina Ferraz