Para a minha mãe
Deixámos, dobrado no armário, o teu casaco. Se o viste, não
lhe pegaste para te desfazeres dele. Se lhe tivesses pegado, com tal intenção,
eu não teria deixado. Está velho, gasto, cheio de borboto. Fica-te largo... tão
largo que caberíamos as duas dentro dele. Tem a manga queimada na ponta e, na
verdade, ambas o sabemos: já pusemos de lado peças de roupa em melhor estado.
O teu casaco não é bonito. No padrão desbotado, em tons de
azul escuro, vermelho, bege e o que mais for, o teu casaco faz lembrar um filme
antigo e realizado por pessoas sem olho para a moda. Refiro-me a ele como o teu
casaco «"tricotiado" por um cego»... erro incluído, para sublinhar o
facto de que, se tivesse sido simplesmente tricotado, não poderia ser tão
malparecido.
O teu casaco parece ter sobrevivido, inválido e
irreversivelmente condenado, a uma guerra qualquer. Olhando para ele, qualquer
pessoa concordaria. Mas, se o dissessem, diriam com ironia. Não o diriam como
eu. Porque eu sei (e tu também): aquele casaco sobreviveu a coisas piores do
que a guerra. Sobreviveu a discussões, mágoas, tristezas, decisões amarguradas,
conversas doloridas, notícias irreversíveis e penosas. Mas sobreviveu. Sobreviveu
sempre.
O teu casaco viu-me crescer. De menina, a adolescente. De
adolescente, a jovem. De jovem a adulta. Viu quando me aconselhaste. Viu quando
me repreendeste. Viu quando me elogiaste. Ele sabe que acreditas mais em mim do
que ninguém, embora também saiba que, por vezes, te inquietam as minhas decisões
e as minhas atitudes. Ele estava lá. Envolveu-me muitas vezes, através do
movimento ténue dos teus abraços. Absorveu muitas das minhas lágrimas. Deixou
que nele pousasse a cabeça para me fazeres festinhas ao de leve sobre o cabelo
rebelde.
O teu casaco acordou-me muitas manhãs. Sabe que não ligas a
luz. Sabe porquê. O teu casaco ajudou-me a fazer trabalhos para a escola e para
a universidade. Conhece a minha obra poética quase de cor, de tanto ouvir, ler,
reouvir e reler textos e poemas. Por vezes, nessas penosas sessões literárias,
julgou-te dona da maior paciência do mundo. Mas ele também já viu a tua
paciência voar, quebrar, ser outra coisa. E, nas casas largas dos seus botões,
aposto que já teve vontade de se esconder dos teus momentos de mau humor.
Não. Nunca te teria deixado dar o teu casaco-de-guerra.
Tê-lo-ia resgatado. De todas as peças de roupa que acumulas no armário, não
existe nenhuma que defendesse desta forma. Mas o teu casaco velho, gasto, cheio
de borboto, largo e com a manga queimada na ponta... esse eu defendo!
Já te vi aperaltada: com as roupas mais bonitas, de saltos
altos e até com maquilhagem. Já te vi no teu dia-a-dia: com o teu estilo
clássico e casual, convidativo e elegante. Já te vi com roupa que cobicei (e
até herdei). Mas a imagem que guardo de ti, quando na ausência te imagino, é a
usares esse teu casaco velho. Porque essa imagem de ti, dentro do casaco feio,
é a mais bonita de todas. É a imagem do conforto, da casa, do conselho amigo. É
a imagem de um beijo, do sossego, do carinho. Essa imagem dá-me o aconchego de
um abraço forte. Tem o teu cheiro. O teu calor.
Imagino-te na cozinha, meio contrariada, a enumerar as
tarefas que ainda faltam para o dia ou a reclamares da falta que faz a ajuda
que não queres nem aceitas. Imagino-te na sala, com os óculos na ponta do nariz
a coser roupa, enquanto lanças à televisão olhares furtivos. Imagino-te sentada
na minha cama, a ouvires os meus textos e poemas, enquanto ajeitas
incessantemente as almofadas que, por mais direitas que estejam, nunca te fazem
a vontade. Imagino-te a entrares no meu quarto, com um sorriso aberto, para me
dares um beijo no nariz e dizeres "boa noite, até amanhã". É uma
imagem verdadeiramente bonita de ti. Uma imagem que nunca fica velha, nem
queimada, nem fora de moda. Uma imagem de amor incondicional, na qual, sei lá
porquê, estás dentro desse casaco.
Eu sei. No seu âmago, o amor que tenho por ti não tem nada a
ver com o casaco velho, largo, queimado nas mangas. Mas eu também sei que, se
aquele casaco falasse, ele poderia dizer muito sobre este amor. E poderia
fazê-lo justamente por isso: porque, à medida que desbotava, alargava e se
estragava, ele estava lá. Esteve lá o tempo todo. Nos abraços, nos beijos, nas
lágrimas, no consolo, nos serões de poesia, nas discussões intermináveis, nas
decisões fundamentais. Estava lá no nosso melhor e no nosso pior. Viu, quando
mais ninguém o poderia ter visto, que viesse o que viesse, independentemente de
tudo, estávamos lá uma para a outra. Não éramos, nunca fomos, apenas mãe e
filha. Para mim sempre foste o ombro, a amiga, o "para sempre" em que
eu acreditava mesmo quando não sabia acreditar. E o casaco? O casaco não fez
com nada disto fosse assim. Ele apenas viu. E, por ter visto, na sua
passividade quieta, ele sabe mais sobre nós do que qualquer pessoa.
Assim, embora o casaco não esteja no centro do amor que
tenho por ti; o amor que tenho por ti está cravado no padrão estranho desse
casaco. E está lá por isso mesmo: Porque está velho, gasto, cheio de borboto.
Porque te fica tão largo que caberíamos as duas dentro dele. Porque, na verdade
cabemos as duas dentro dele e estamos as duas dentro dele, nas memórias que ele
traz de nós.
Deixámos, dobrado no armário, o teu casaco. Está velho,
gasto, cheio de borboto. Mas o que importa não é como ele está. Importa o que
ele é. E ele é um bocadinho como o amor que nós sentimos: estará sempre lá,
confortável e perfeito, para nos aquecer nos muitos Invernos da vida.
*Imagem retirada da Internet
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