Fotografia de Raul Pinto
“ERC recebe queixas sobre série
animada da RTP2 que falou sobre aborto, homossexualidade e feminismo” – in Observador a 25 de Junho de 2020
Alguns momentos obrigam-nos a
questionar. Intensamente. Profundamente. Onde estamos, para onde vamos, qual é
o núcleo humano em que acabamos inseridos, nessa malha heterogénea que
constitui uma sociedade.
Sou obrigada, com frequência, a
questionar. Porque o limite lógico do que compõe a racionalidade não chega e
não existe senso comum em algumas das narrativas que me mergulham nos olhos
quando entro nas redes sociais. Algumas coisas, por mais que delas queira tirar
sentido, simplesmente não fazem sentido.
Não sou louca nem cega e conheço
bem algumas das mentalidades mais retrógradas que existem no país. Noto que,
apesar de tal não ser um requisito fundamental, estas nascem nos meios mais
pequenos e são comuns em pessoas com menor acesso à cultura e à educação,
acentuando discursos misóginos, homofóbicos, transfóbicos, racistas e
xenófobos.
Ainda assim, quando surge uma
notícia que refere queixas diretas realizadas à ERC (entidade que, estou quase
certa, não será tão imediata no pensamento dos grupos acima descritos) e sobre
um programa da RTP2 (que, como bem sabemos, pelo seu teor cultural, não
representará o apogeu das escolhas populares), isto leva-me a questionar sobre
quem está, em efetivo, a lançar olhares de preconceito sobre as diversas formas
de se ser gente e os motivos que levam alguém a querer vedar o acesso das
crianças a outras realidades.
Tento fazer sentido de tudo isto…
mas não consigo. Sinto-me irritada e, de alguma maneira, atacada com esta
atitude, já que considero que, para o bem e para o mal, as crianças de hoje são
artesãs do futuro. Perante isto, tudo o que posso imaginar é que tais queixas
partam de um discurso lógico permeado de argumentos ilógicos. Tudo o que posso
imaginar é que elas venham das camadas informadas da população, que deveriam
estar a promover discursos e atitudes de equidade.
Incapaz de compreender, imaginei
uma carta de reclamação que pudesse ter chegado à ERC, com queixas sobre a
abordagem a temas como o aborto, a homossexualidade e o feminismo.
Imaginei uma carta. Incoerente porque me tentei despir de mim. Irónica porque
me levo onde vou. E imaginei-a assim:
"Exmos,
O meu filho teve acesso à perigosíssima série televisiva que enaltece
algumas das mulheres que, ao longo da história, marcaram o mundo. Poderia,
desde o primeiro instante, ter-me manifestado contra a mesma, na medida em que,
ao dar um papel tão predominante às mulheres, considero que a série pode
promover na minha prole o instinto de luta por uma equidade que lhe nega o
direito de nascença, sangue e género a uma intrínseca superioridade masculina.
Não o fiz, desejando que outros extremos não fossem atingidos, minando de forma
mais explícita e concreta a inocência e direito patriarcal do meu filho.
Ontem, no entanto, os conteúdos deste programa atingiram um chocante
patamar, que não acho tolerável. Apresentando a figura de Thérèse Clerc,
controversa ativista lésbica francesa pelos direitos das mulheres, foram
apresentados conteúdos que julgo pouco adequados para a faixa etária à qual se
dirige o programa, sob o risco de criarem nas mesmas ideologias de equidade,
imparcialidade e, oremos para que tal não suceda, liberdade de pensamento e
espírito crítico. A pouca vergonha da ideologia defendida pela senhora, que
Deus lhe perdoe agora que já não se encontra entre nós, é problema dela e dos
franceses. Agora que utilizem a sua imagem para colocar questões na mente das
nossas crianças, cujos valores mais tradicionais e retos queremos manter, isso
já soa a um severo problema que nos toca.
Embora me incomode, desde o primeiro instante, a narrativa feminista e
de enaltecimento do papel do sexo fraco, esta não foi a problemática mais
pavorosa do programa. Duas outras temáticas, às quais me dedicarei de forma
individual para expressar o meu desagrado mais adiante, surgiram de forma
inequivocamente agreste, criando um patamar inaceitável no vosso programa, que
se diz cultural.
O primeiro, foi o lesbianismo e, com ele, a homossexualidade. Não é
culpa minha que a senhora tenha abandonado a sacralidade e santidade dos seus
votos, divorciando-se ou que tenha assumido uma relação sapatona com outra ou
outras mulheres. Certamente não é culpa do meu filho, que assistindo à
narrativa poderá começar a julgar que existe algo de natural no ato
contranatura de se entusiasmar, mais tarde, por alguém do mesmo sexo. Se vocês
querem promover a redução da natalidade em Portugal, isso é certamente,
problema vosso. Eu não quero que o meu filho vire uma dessas bichas ambulantes
a dar o cuzinho nas festas de drogados paneleiros que bem sabemos que resultam
em doenças mentais e físicas do mais asqueroso que pode haver.
Não contentes com o enaltecimento da homossexualidade, sentiram ainda a
necessidade de abordar também a questão do aborto. Crime condenado por Deus e
que, como todos sabemos, constitui o mais vil dos atos. Mais digo: se a mãe
deste acéfalo que vos fala não fez um aborto, não existe certamente razão
alguma para que alguém o faça!
Agora que demonstrei o meu desagrado, despeço-me pedindo que removam
este tipo de conteúdo da vossa programação, no horário em que as nossas
crianças estão a assistir. Proponho, em seu invés, a passagem de pornografia
heteronormativa ou não. Porque todos sabemos que, na pornografia, o lesbianismo
é permitido por Deus.
Grato pela atenção,
Mais um idiota que procriou"
É incoerente? É! Eu também acho!
Acho tudo isto incoerente. Acho que é um enorme passo atrás na luta pela
equidade.
Tudo o que me sobra é pedir ao
nosso serviço público que, em vez de recuar - transformando, como também li
algures as “Destemidas” em “Censuradas” – tente perceber que é justamente com
narrativas válidas, diversas e que promovem a equidade que podemos construir o
futuro. E que o futuro é mais importante do que as audiências.
Já chega de misoginia. Já chega de
homofobia. Já chega de transfobia. Já chega de racismo. Já chega de xenofobia.
Já chega! Não tenham medo de apostar na educação moral das nossas crianças (e
dos seus pais, que talvez precisem mais do que a sua prole!). Educar não é um
processo fácil. Principalmente quando se trata de educar quem não quer ser
educado. Mas não desistam. Certamente desistir não é exemplo que se dê às
crianças… e eu quero acreditar que, no fim, vale a pena!