terça-feira, 30 de junho de 2020

Incoerente (como uma carta de reclamação)


Fotografia de Raul Pinto


“ERC recebe queixas sobre série animada da RTP2 que falou sobre aborto, homossexualidade e feminismo” in Observador a 25 de Junho de 2020


Alguns momentos obrigam-nos a questionar. Intensamente. Profundamente. Onde estamos, para onde vamos, qual é o núcleo humano em que acabamos inseridos, nessa malha heterogénea que constitui uma sociedade.

Sou obrigada, com frequência, a questionar. Porque o limite lógico do que compõe a racionalidade não chega e não existe senso comum em algumas das narrativas que me mergulham nos olhos quando entro nas redes sociais. Algumas coisas, por mais que delas queira tirar sentido, simplesmente não fazem sentido.

Não sou louca nem cega e conheço bem algumas das mentalidades mais retrógradas que existem no país. Noto que, apesar de tal não ser um requisito fundamental, estas nascem nos meios mais pequenos e são comuns em pessoas com menor acesso à cultura e à educação, acentuando discursos misóginos, homofóbicos, transfóbicos, racistas e xenófobos.

Ainda assim, quando surge uma notícia que refere queixas diretas realizadas à ERC (entidade que, estou quase certa, não será tão imediata no pensamento dos grupos acima descritos) e sobre um programa da RTP2 (que, como bem sabemos, pelo seu teor cultural, não representará o apogeu das escolhas populares), isto leva-me a questionar sobre quem está, em efetivo, a lançar olhares de preconceito sobre as diversas formas de se ser gente e os motivos que levam alguém a querer vedar o acesso das crianças a outras realidades.

Tento fazer sentido de tudo isto… mas não consigo. Sinto-me irritada e, de alguma maneira, atacada com esta atitude, já que considero que, para o bem e para o mal, as crianças de hoje são artesãs do futuro. Perante isto, tudo o que posso imaginar é que tais queixas partam de um discurso lógico permeado de argumentos ilógicos. Tudo o que posso imaginar é que elas venham das camadas informadas da população, que deveriam estar a promover discursos e atitudes de equidade.

Incapaz de compreender, imaginei uma carta de reclamação que pudesse ter chegado à ERC, com queixas sobre a abordagem a temas como o aborto, a homossexualidade e o feminismo. Imaginei uma carta. Incoerente porque me tentei despir de mim. Irónica porque me levo onde vou. E imaginei-a assim:


"Exmos,

O meu filho teve acesso à perigosíssima série televisiva que enaltece algumas das mulheres que, ao longo da história, marcaram o mundo. Poderia, desde o primeiro instante, ter-me manifestado contra a mesma, na medida em que, ao dar um papel tão predominante às mulheres, considero que a série pode promover na minha prole o instinto de luta por uma equidade que lhe nega o direito de nascença, sangue e género a uma intrínseca superioridade masculina. Não o fiz, desejando que outros extremos não fossem atingidos, minando de forma mais explícita e concreta a inocência e direito patriarcal do meu filho.

Ontem, no entanto, os conteúdos deste programa atingiram um chocante patamar, que não acho tolerável. Apresentando a figura de Thérèse Clerc, controversa ativista lésbica francesa pelos direitos das mulheres, foram apresentados conteúdos que julgo pouco adequados para a faixa etária à qual se dirige o programa, sob o risco de criarem nas mesmas ideologias de equidade, imparcialidade e, oremos para que tal não suceda, liberdade de pensamento e espírito crítico. A pouca vergonha da ideologia defendida pela senhora, que Deus lhe perdoe agora que já não se encontra entre nós, é problema dela e dos franceses. Agora que utilizem a sua imagem para colocar questões na mente das nossas crianças, cujos valores mais tradicionais e retos queremos manter, isso já soa a um severo problema que nos toca.

Embora me incomode, desde o primeiro instante, a narrativa feminista e de enaltecimento do papel do sexo fraco, esta não foi a problemática mais pavorosa do programa. Duas outras temáticas, às quais me dedicarei de forma individual para expressar o meu desagrado mais adiante, surgiram de forma inequivocamente agreste, criando um patamar inaceitável no vosso programa, que se diz cultural.

O primeiro, foi o lesbianismo e, com ele, a homossexualidade. Não é culpa minha que a senhora tenha abandonado a sacralidade e santidade dos seus votos, divorciando-se ou que tenha assumido uma relação sapatona com outra ou outras mulheres. Certamente não é culpa do meu filho, que assistindo à narrativa poderá começar a julgar que existe algo de natural no ato contranatura de se entusiasmar, mais tarde, por alguém do mesmo sexo. Se vocês querem promover a redução da natalidade em Portugal, isso é certamente, problema vosso. Eu não quero que o meu filho vire uma dessas bichas ambulantes a dar o cuzinho nas festas de drogados paneleiros que bem sabemos que resultam em doenças mentais e físicas do mais asqueroso que pode haver.

Não contentes com o enaltecimento da homossexualidade, sentiram ainda a necessidade de abordar também a questão do aborto. Crime condenado por Deus e que, como todos sabemos, constitui o mais vil dos atos. Mais digo: se a mãe deste acéfalo que vos fala não fez um aborto, não existe certamente razão alguma para que alguém o faça!

Agora que demonstrei o meu desagrado, despeço-me pedindo que removam este tipo de conteúdo da vossa programação, no horário em que as nossas crianças estão a assistir. Proponho, em seu invés, a passagem de pornografia heteronormativa ou não. Porque todos sabemos que, na pornografia, o lesbianismo é permitido por Deus.

Grato pela atenção,
Mais um idiota que procriou"


É incoerente? É! Eu também acho! Acho tudo isto incoerente. Acho que é um enorme passo atrás na luta pela equidade.

Tudo o que me sobra é pedir ao nosso serviço público que, em vez de recuar - transformando, como também li algures as “Destemidas” em “Censuradas” – tente perceber que é justamente com narrativas válidas, diversas e que promovem a equidade que podemos construir o futuro. E que o futuro é mais importante do que as audiências.

Já chega de misoginia. Já chega de homofobia. Já chega de transfobia. Já chega de racismo. Já chega de xenofobia. Já chega! Não tenham medo de apostar na educação moral das nossas crianças (e dos seus pais, que talvez precisem mais do que a sua prole!). Educar não é um processo fácil. Principalmente quando se trata de educar quem não quer ser educado. Mas não desistam. Certamente desistir não é exemplo que se dê às crianças… e eu quero acreditar que, no fim, vale a pena!




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terça-feira, 23 de junho de 2020

Eu não nasci assim


Dizia a novela. “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim”. Talvez. Para ela. Mas não para mim. Eu não nasci assim!

Eu não nasci mulher. Já Beauvoir o dizia. Ninguém nasce. Tornei-me mulher. Mas só me tornei mulher por causa da minha mãe. A minha mãe é a mulher que as mulheres querem ser. Irreverente e forte, mesclando doçura e combatividade nos gestos e nas palavras, capaz de levar o mundo às costas e de o remendar com mimos e bolo de chocolate. Seria capaz de levantar do chão um edifício, se um filho estivesse soterrado mas é com a mesma força que se deixa, por vezes, ser frágil. Eu não nasci assim. Mas cresci com este exemplo. Tornei-me mulher.

Eu não nasci sensível e compassiva. Sempre tive agressividade inerte nos ossos, à espera de se libertar, em pó, na corrente sanguínea para me fazer cruel. Mas também tive uma avó. E a minha avó é a melhor pessoa pela qual o mundo teve a honra de ser pisado. De semblante quase sempre triste e sem muito para si, ela é o tipo de mulher que quer arrancar o sorriso do outro e dar-lhe o seu próprio xaile para o aquecer. Fiel às suas crenças inabaláveis e dona do seu mundo complicado e cheio de problemas, ela não deixa, nunca, de ser um espaço de conselho e afago. Frágil como a época a fez e mais forte do que as histórias contam, ela disse-me muitas vezes que era importante eu ser boa. Ensinou-me, pedacinho de pão a pedacinho de pão, a alimentar ovelhas e bons sentimentos. Eu não nasci assim. Mas cresci com este exemplo. Tornei-me sensível e esforçada por fazer o bem.

Eu não nasci ambiciosa e trabalhadora. Tenho a certeza de que, em alguns momentos, imaginei que me bastasse muito pouco da vida, como se passar por ela, encostada algures, bastasse. Mas, existindo, esta fase não poderia durar. Eu tive um pai. O meu pai ensinou-me, de pequenina, que a força do trabalho se materializa em oportunidades e que a oportunidade vale mais do que o ouro, quando é aproveitada. Trabalhando – que para mim é – e não deixando fugir essas dádivas dos dias, eu aprendi, aos poucos, não só por palavras mas pelo modelo diário de um trabalho árduo e sem queixume. Não nasci assim. Mas cresci com este exemplo. Aprendi a ser dedicada e trabalhadora.

Eu não nasci divertida. E houve muitas pessoas que mo disseram. Mas havia o meu irmão. O meu irmão é uma pessoa incrível, capaz de sorrir nas adversidades e sempre com um comentário que arranca riso aos outros. É a companhia que todos querem quando estão mal e que todos querem quando estão bem. E alguém que, de forma quase inconsciente, me deu o modelo exato do que eu gostaria de ser. Não nasci assim, é verdade. Mas cresci com este exemplo. Aprendi a fazer rir os outros.

Eu não nasci menina do campo. Pelo contrário. Nasci citadina e muito longe dos prazeres telúricos da vida. Mas tive um avô. O meu avô era o homem forte do campo, com a quarta classe e uma sabedoria maior do que o tempo. O meu avô levou-me, nos braços, ao mundo idílico da aldeia. Tornou-me amante de vindimas, de fruta arrancada da árvore e comida sem sequer lavar, de mãos e pés e cabelos sujos de terra. O amor à terra viria a fazer-me pagã. Mas eu não nasci assim. Cresci assim neste exemplo. Aprendi a amar a Natureza.

Eu não nasci altruísta. Tenho um umbigo e olhei muito para ele ao longo da vida. Mas houve a minha irmã. A minha irmã é uma daquelas pessoas que, quando passa, é furacão. Mas é um furacão muito específico porque não se importa de pôr de lado seja o que for, se for para ajudar alguém. Por mais do que uma vez, ao longo da vida, ela foi senhora de atitudes que duvido que alguém mais tivesse. Nos gestos, carrega amor e cuidado e carinho. Nos gestos, carrega humildade e despretensão. Dá e nunca espera retorno. Eu não nasci assim. Tive a sorte de crescer neste exemplo. Aprendi a dar-me aos outros sem expetativa.

Eu não nasci com fé no futuro. Em alguns dias, ainda sinto que não existe muito futuro para que se tenha fé nele. Mas tenho quatro sobrinhos. Neles, encontro traços de plenitude, de beleza, de irreverência, de luta, de intervenção, de veracidade, de defesa pelos direitos humanos e pela Natureza. Neles, encontro a fé que me falta no mundo e a esperança em gerações vindouras. Eu não nasci com fé no futuro. Mas eles nasceram e eu aprendi com eles. Aprendi que vale a pena tentar outra vez amanhã.

Eu não nasci assim. Como sou. Aprendi a sê-lo, com os dias passados entre quem soube ensinar-me. A ser gente. A ser. Eu não nasci assim. Mas nasci aqui. Nesta que é a minha nação, a minha identidade e o mais estreito dos meus dogmas. Se me perguntam quem eu sou, a resposta é: o que me tornaram. Se me perguntam de onde eu sou, a resposta é: da minha família.

Eu nasci aqui. E cresci aqui. E aprendi a ser gente aqui. O meu lugar é o amor. E eu sei onde ele mora.




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terça-feira, 16 de junho de 2020

Quando eu matei o amor



Eu nunca quis ser gente sem sal. Mas, isto eu juro: quando eu matei o amor, a minha intenção não era matá-lo…

Encontrei o amor nos desencontros da vida. Perguntei-lhe se queria vir, a meu lado, até ao lugar das coisas loucas. O amor era inocente. Achou que a loucura era palavra de uso. E veio.

Eu achei que tinha sido clara. Ele achou o mesmo. Toda eu era hipérbole. Todo ele era eufemismo. Quando eu encontrei o amor, já não vínhamos na mesma página da gramática. Mas isto foi só o começo.

Eu não sabia, quando alimentei o amor, que ele era alérgico ao açúcar excessivo que eu colocava nos alimentos que lhe servia. E não sabia que a vela no centro da mesa onde eu servia esses excessos, pegaria sucessivamente fogo às veias incandescentes onde ardia paixão e aos estômagos aziados de embriaguez, fazendo arder também cortinas, colchas, fotografias e sentimentos.

Eu não sabia, quando enchia a banheira de água demasiado quente e com espuma até ao teto, que o amor teria dificuldade em sentar-se comigo e um copo de vinho, sem se afogar nas bolhas de amónia e se inebriar com o perfume melífluo do ópio que aquecia as carnes e as tornava mais rijas antes de as tornar mais moles.

Eu não sabia, quando cortava frases ao meio para as empilhar em versos que viravam estrofes, que o amor se deixava degolar pelo gume cego da minha caneta, trocando athames por facas cerimoniais; tinta vermelha por sangue; e harmonia por vitimismo. Não larguei a caneta nem me apercebi de que houvesse ângulos mortos na condução da mesma pelas linhas do papel.

Muito menos imaginei, naquele tempo, que ele fosse receber com estranheza o ato perfeitamente natural de o guardar dentro. Como é que um amor experiente, que dizem andar aí desde tempos medievais (ou até imemoriais), julga que alguém se contenta com ter nos braços algo que pode ter dentro? Ele não era meu filho para que o trouxesse nos braços e às cavalitas. O amor – disse-lhe – quer-se dentro do peito, dentro da alma, no âmago de nós.

Desculpa, está bem? Eu convidei-te a ser louco.

Mas ele não sabia que o lugar da loucura era louco.

E eu não sabia que o amor não era imortal.

Sem força para ripostar, o amor acedeu. Veio. E era feio. Era o tipo de amor que eu sabia amar. Vinha enjoado, aziado, envenenado. Vinha queimado e afogado, repleto de cortes. Não era um amor muito bonito e em bom estado. Mas era o meu. Ali. No lugar da loucura. Essa que eu sou.

Eu nunca quis ser gente sem sal. E ele veio. Débil, ali se acocorou e perdeu a força da palavra. Ali se encolheu e perdeu a vida.

Quando eu matei o amor, a minha intenção não era matá-lo. Mas eu nunca quis ser gente sem sal. Na perspetiva do amor, eu sei: todos os meus excessos foram sufoco e veneno, todos eles queimaram, rasgaram e sangraram a vida azul e luminosa dos olhos matutinos, fazendo crepúsculo na aurora.

Agora, morto dentro de mim, ainda por enterrar, o amor junta-se ao sal com o qual me temperei para ser gente. Nesse rito antigo que se fazia aos maus e aos pecadores. Salgando-lhes a campa para que ali nada mais nascesse.

Quando eu matei o amor, matei-o de o querer vivo. Nunca quis ser gente sem sal. O sal mata e tempera e preserva a temperada esperança imortal dos corpos sem vida. Trago um cadáver sólido de paixão encostado do lado esquerdo do peito. Às vezes, pulsa por engano. Nenhum dos dois sabia. Agora, ambos sabemos. Ali, não nasce mais nada.




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terça-feira, 9 de junho de 2020

Eu não entendo

Fotografia de Luís Serra Santos


Não. Eu não entendo a tua realidade. Nem vou fingir que entendo. Não vale a pena. Terei de viver eternamente sem compreender. Mas não te preocupes. Não preciso de compreender o que tu sentes ou o que tu passas para adotar uma postura que me coloca a teu lado, aliada na tua luta. Porque eu não preciso de estar na tua pele para saber a diferença entre o certo e o errado. Essa que entendo porque me ensinaram a pensar e a tomar posicionamentos críticos face ao mundo.

Eu não te entendo. Não posso entender como é viver com um estigma negro se a minha pele é clara e nasci com o privilégio caucasiano, que sempre me abriu mais portas do que aquelas que fechou. Não posso entender o que sentes quando alguém faz, levianamente, uma piada que te é ofensiva ou como a violência gratuita e a casualidade das acusações te faz sentir o sistema digestivo revolto. Não posso saber o que sentes quando pequenas ações bastam para te condenar ou para te ceifar a vida, antes do tempo. Não posso entender o que sentes quando alguém que nunca viveu o que tu vives e nunca sentiu o que tu sentes te diz que entende. Eu não. Eu não entendo. Mas vou unir-me aos movimentos que dizem que as vidas negras importam. Porque acredito que todas as vidas importam. E não me limito às brancas, às negras, às amarelas. E não me limito, sequer, às humanas.

Eu não te entendo. Não posso entender como é crescer sabendo que a tua sexualidade não se enquadra na norma social. Não consigo imaginar como é sentires, todos os dias, que o teu corpo e a tua cabeça não fazem parte do mesmo sistema solar de um “eu” coerente. Não consigo conceber quais as partes de ti que doem quando alguém te chama, sem o mínimo pudor, um qualquer nome que te diminui. Não sei como é ser condenado por amar e não entendo como vives essa realidade feita de tantos desprezos, de tanto bullying, de tanta violência gratuita. Eu não entendo. Todos os meus relacionamentos foram com o sexo oposto e, se não nasci, tornei-me mulher, como referia Beauvoir. Nunca me senti outra coisa que não mulher. E não entendo. Não faço ideia de como é viver com um corpo que não corresponde a nós. Ou de como é amar fora dos padrões normalizados dos outros. Não entendo. Mas estou aqui e ergo a tua bandeira colorida em prol da igualdade. Porque não preciso de entender-te para entender que não existem formas erradas de ser ou formas erradas de amar.

Eu não te entendo. Não posso entender como é viveres num país que não é teu, teres sobrevivido à guerra, à fome, à escassez e teres de sobreviver, agora, ao preconceito. Eu não entendo. Não entendo como te sentes quando alguém abraça a carteira ao passar por ti ou te diz que és o culpado do estado de um país que já estava na merda há muitos anos, antes de vires, e que te parece, provavelmente, um paraíso quando comparado ao que deixaste para trás. Não sei como te sentes quando aceitas, com humildade, o trabalho no matadouro ou na construção civil, com um diploma ou dois na bagagem, e ouves dizer que estás a roubar trabalhos a quem foi nascido e criado naquela nação. Eu não entendo. Sou essa pessoa, nascida e criada numa nação, que nunca mudou para lugar nenhum. Nunca me julgaram pelo idioma ou hábito, pelo lenço na cabeça, pela tonalidade da pele ou pela religião que abraço. Tão pouco fugi da guerra, já que poucas guerras existem no meu mundo, além daquelas que a comunicação social insiste em inventar no seio do nosso privilégio. Não entendo. Mas estarei ao teu lado, defendendo-te. Não porque te entendo. Não porque entendo o que sentes. Mas porque entendo que a maldade, tome a forma que tomar, está errada… e que todos merecem asilo, oportunidades e uma vida melhor.

Eu não entendo. Branca, com uma sexualidade (até ver) heteronormativa, descendente de portugueses e portuguesa, com uma licenciatura, um mestrado e uma pós-graduação, eu pouco conheci do mundo além do privilégio. Como poderia, alguma vez, entender? Mas eu não preciso de entender o que se sente quando se nasce do outro lado da linha para entender que a linha existe e que todas as armas estão apontadas para ela. Não preciso de entender para compreender que é sobre essa linha e à frente dessas armas que se pode criar a trincheira que pede a paz, a equidade, o respeito e o cumprimento dos direitos para todos.

Eu não entendo. Mas, nesta luta, vou sempre colocar-me do lado das minorias. Porque não existe um campo de imparcialidade, de desprendimento e de neutralidade quando se trata de injustiça. E não lutar é compactuar com as ações que estão erradas e que, todos os dias, tornam o universo humano indigno desse nome.




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terça-feira, 2 de junho de 2020

Caem




Caem. Caem ao chão e desaparecem. É como se nunca tivessem existido. Não adianta fazer vénias à vida, dobrando costas para aproximar os olhos míopes do chão, nem andar de joelhos, procurando debaixo dos móveis com laivos de esperança. Caem. E, quando caem, desaparecem. Para sempre.

Claro que ninguém aceita. Quando caem, lá ficamos, de rabo para o ar e cabeça encostada junto ao solo, orelha com raiz da vida, tentando descobrir o misterioso fenómeno do desaparecimento. Um Poirot entre os meus neurónios engendra teorias sobre o estranho caso e faz uma lista de notas sobre todos os potenciais buraquinhos e reentrâncias que possam albergá-los, camuflá-los ou encobri-los. Mas até esse neurónio, que viu demasiados policiais, acaba por desistir e voltar às sinapses normais, com um suspiro.

Fico a imaginar se, algures, existe uma mão estendida noutro plano para os apanhar. Quando caem. Para os levar para essa outra dimensão, onde servem para segurar alfinetes de peito e vivências.

Mas caem. Com frequência e demasiadas vezes. Quando caem, desaparecem de todo o lado, menos da memória concreta de dois olhos que viram cair e não sabem explicar como nem para onde.

Caem. Caem no chão e desaparecem. Por vezes, ainda se ouve o som agudo e metálico quando atingem o solo. Mas é como se o furassem. Não encontramos mais. E, aos poucos, toda a utilidade que tinham começa a transformar-se num caos feito de escassez. Como se nunca desse para fechar o que, tão evidentemente, não foi feito para ficar aberto.

Resta a desistência ou a busca pelo novo. Porque, quando caem, paz à sua alma. Dali, mais nada virá!

Sentada no chão, ainda deixo os olhos procurarem um pouco mais, sem sucesso. Suspiro outra vez. Resmungo. Quando caem não aparecem mais!

Eu sei… era só a parte detrás de um brinco.

Mas também vale para as oportunidades.




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