terça-feira, 25 de outubro de 2022

O fado da vida

 


O fado da vida diz. O tempo não pára. Mas eu ainda estou no ponteiro parado. O som entre acordes de guitarra Por mais que se diga e se cante e se insista. Eu ainda estou nesse segundo. Nesse. Em que o tempo parou.

 

 

Olho para os meus próprios dedos. Eles parecem mais sábios. Talvez mais velhos. Noto neles, ainda, os calos criados pelas canetas e sinto-lhes as pontas rugosas, da insistência abrupta contra as teclas insistentes do teclado. Conheço de cor as cicatrizes feitas com as facas da cozinha. Conheço de cor os traços meio tortos do mindinho, que deforma precocemente – coisas que a genética explica. Mas eles parecem mais sábios agora. Como se o facto de quererem dar-se a outros lhes ensinasse uma coisa ou duas sobre a vida, sobre o mundo, sobre o tempo...

 

Penso nisto, olhando-os. Segurando o copo de rosé entre eles. Ou talvez olhe para o copo e imagine só que olhe os olhos, pensando-o. Não sei bem o que penso. A mente salta, de pensamento em pensamento, a cada frase que é dita. Sinto o líquido inebriado na língua, já não sei se vinho, saliva ou sonho líquido. Os olhos dançam com as estrelas do dia morno e inventam outras histórias que, ali, são só ficção. O coração é o pior de todos! Maestro desta orquestra, esquece a compostura e a dá toques de batuta tão fortes contra a pele, que desconfio que dê para vê-lo através do linho fino da camisa.

 

Tento explicar-lhe que música clássica não é punk-rock alternativo. Mas, digam-me vocês: já alguém conseguiu disciplinar o coração?

 

Desconfio que a vida se faz quando o tempo pára. E o fado da vida é esse. Três horas – horas – depois. Três – segundos – passaram. Aparentemente. Não há explicações lógicas ou racionais. Caem por terra as melhores leis da física. A alquimia e a religião acasalam, emparelhando a Pedra Filosofal e o Graal: ambos naquele copo de rosé.

 

Ninguém envelhece. Ninguém morre. Ninguém nota que os ponteiros andam. Naquele segundo, tenho a certeza: não envelhecerei um dia se continuar naquela cadeira, com os dedos em redor do copo de rosé. Nunca mais ficarei doente. Nunca mais me sentirei triste. Nunca mais terei de olhar os dedos para os achar velhos. Nunca mais terei outro trabalho além de domadora de corações rebeldes. (E serei eternamente uma nódoa nessa tarefa...)

 

 

E o fado toca. A vida. Dizendo. Isso. O tempo não pára. Mas eu ainda estou no ponteiro parado. Por mais que se diga e se cante e se insista. Eu ainda estou nesse segundo. Nesse. Em que o tempo parou.

 

Porque a cidade era feita de carros que aceleravam. E as redes eram feitas de pessoas que corriam. E os relógios tinham pressa, algures. O fado da vida, entoado em muitas corridas enlouquecidas, daqui para ali, dali para aqui, de todo o lado para lugar nenhum e de lugar nenhum para todo o lado.

 

Na mesa havia dois copos de rosé, refletindo sorrisos.

 

Só o coração insistia em correr.

 

Os dedos queriam dar-se a outros, sabendo coisas que nem eu sabia.

 

Naquele momento, nem nascimentos nem mortes, nem agruras, nem cansaços, nem revolta, nem guerra, nem mundo fora daquela mesa. Nem espaço fora daquele copo, agora quase vazio, de rosé. Nem pensamento lógico que se enuncie.

 

Apenas sorrisos.

 

O coração a querer correr.

 

O fado da vida que ninguém canta...

 

E os dedos sábios que, agora, entendiam que os ponteiros param quando o coração corre.

 

Quando o copo terminou, prometeram que escreveriam, um dia, um poema sobre isto. Escreveram - um livro - inteiro. Havia tempo...

  

  Marina Ferraz




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terça-feira, 18 de outubro de 2022

Pensa de novo

 


Avó, queria dizer-te, hoje, que ouvi um pássaro. Julguei ouvi-lo. Lembrei-me de ti.

 

 

Pensas que sabes reconhecer a voz de um pássaro. Até sorris. Só de a ouvir. A voz desse pássaro, que chega da janela e entoa a liberdade. Segues o seu canto. Olhas pelo vidro. E é uma retroescavadora.

 

O chiar mecânico da destruição das árvores arranca-te um bocado da alma com um eucalipto. E os pássaros são silenciados com asas de fuga. Mas não cantam. Quando a poeira assentar, só lhes sobra o céu. E, a mim, sobra o cimento e a memória da destruição, quando a retroescavadora for.

 

Pensas que sabes. Pensa de novo. As máquinas imitam os pássaros. Esses que matam.

 

 

Desculpa avó. Nunca te menti. Afinal não era um pássaro. Vê bem. A casa que comprei, rodeada de verde, vira uma floresta de betão como as outras... devagarinho. E logo aqui, onde tinha tanto gosto em mostrar-te as árvores que nunca viste. Agora não as poderias ver, mesmo que aqui estivesses.

 

 

Pensas que sabes quão triste o mundo fica quando se perde quem se ama. Até dizes, para os botões do casaco, pior não fica. Pensas que sabes. Pensa de novo.

 

Os olhares ocos e vazios da desumanidade e da destruição também passam à porta de tua casa. A pouco e pouco, compreendes que não é a retroescavadora e o eucalipto caído, mas o sentido de ausência que há dentro de quem a conduz e derruba a árvore sem questionar. Não sou eu que mando, dizem. Infelizmente, também não sou eu.

 

Arranco do peito as angústias e tento não sentir o ódio inato pela devastação. Mas a retroescavadora baixa o balde dentado e arrasta as árvores moribundas para um canto, como se não importassem. E a alma dói-me, assistindo na primeira fila ao que o mundo se tornou, enquanto eu tentava tornar-me melhor.

 

 

Avó. Quero tanto ser como tu, que às vezes sou. Mas nunca tinha percebido que estar triste é arte de quem quer ser digno desse rótulo que nos dão a todos, sem questionar: humano. Pensei que sabia a fórmula da felicidade e que ela era mais fácil de aplicar aos dias com um coração puro. Não é! É tão difícil...

 

 

A noite cai e a máquina dorme. A terra respira fundo. O homem foi. Os pássaros pensam que podem voltar, mas não podem. A poeira assenta. A chuva cai. O eucalipto permanece no chão.

 

 

Aproxima-se, com a noite, o dia fatídico onde foste o eucalipto arrancado dos meus dias. E eu, pássaro errante, perdi o colo que me era ninho. Pensamos que a ferida sara, que cicatriza e não dói tanto. Pensamos que há outras árvores e outros colos. Pensamos que podemos recomeçar, um passo de cada vez. Gostava de poder dizer-te que tinhas razão. Sei que pensavas que ficaria bem sem ti. Mas, avó, pensa de novo!


  Marina Ferraz




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terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sorrir não mata

 


 Fotografia de Analua Zoé



Sorrir não mata. Foi isso que ela disse. Mas eu não concordo.

 

 

Sorrir. O dicionário diz que é “rir sem gargalhada, fazendo apenas um pequeno movimento com os lábios”[i]. Estudos indicam que é bom para a saúde. Move 12 músculos da face, 84 no caso de também estarmos a conversar. Somos todos muito dados ao multitasking atualmente. Ou pelo menos as mulheres são, segundo os estudos.

 

Mas sorriso não é riso. Embora possa sê-lo. Sorriso não é exercício físico. Embora possa sê-lo. Sorriso é outra coisa. Sorriso é muitas coisas. E, uma delas, é máscara.

 

 

Era o pior dia da minha vida. Sorri. Sorri porque um amigo me cumprimentou na rua e foi preciso que sorrisse. Porque tive uma reunião de trabalho e imperava a simpatia. Porque a criança estava com medo de dar aquele primeiro passo para a sala de aula e, mesmo de coração partido, a adulta era eu. No velório de alguém que eu amava, porque outros precisavam de conforto. Ao espelho, para mentir a mim mesma.

 

Como eu, outros sorriram. Alguns, até ao esgotamento. Até à depressão. Até ser tarde demais. Até ao suicídio. E alguém disse: mas vi-o ontem e estava bem! Parecia tão animado. Estava, não estava? Até sorriu!

 

Sorriu. Mas as ruas de hoje perpetuam a premissa do “um homem não chora”, despindo-a de género. Um homem não chora. Uma mulher não chora. Uma criança não chora. Ninguém chora! E, se chorar, é fraco. É uma falta de consideração chorar. Incomoda os outros...

 

E não é só nas ruas. As redes sociais são o novo museu do sorriso. Até as aplicações de “embelezamento” das fotos oferecem a hipótese de colar um sorriso falso em cima de qualquer rosto mais sisudo. Longe vai o tempo de sorrir para uma mensagem especial que alegrou o dia. Hoje – e sim, vou inventar a estatística que se segue – 9 em cada 10 pessoas que sorri para o telemóvel está a tirar uma selfie.

 

E, então, estou a ter um dia de cão. O trabalho agarrou-se aos dedos como um carrapato, ainda tenho imensa coisa para fazer e a minha casa precisa desesperadamente de ser limpa. Faz este mês anos que morreu o meu avô. Também faz este mês anos que morreu a minha avó. E a tecla “M” do meu computador está a falhar constantemente, obrigando-me a escrever duas vezes quase todas as palavras deste texto (alguma vez deram conta de quantas palavras da língua portuguesa têm um M?)

 

Confesso. Estou um pouco mais sisuda. E, em tom de brincadeira, lá vem: Sorrir não mata.

 

Sorrir não mata.

 

Foi isso que ela disse. Mas eu não concordo. E acho mesmo que se devia parar de fazer do sorriso uma norma social. Devíamos normalizar o “não estou bem”. Devíamos normalizar o choro. Devíamos normalizar a merda dos dias maus. Para não haver o mas vi-o ontem e estava bem! Parecia tão animado.

 

Não me apetece sorrir agora. Estou a ser honesta comigo e com o mundo. Talvez amanhã, se me apetecer, sorria. Agora não.

 

O problema não é que “sorrir não mata”... mas que a honestidade crua incomoda!

 

Mas já diziam os pinguins do Madagáscar: é sorrir e acenar!


 Marina Ferraz




[i] "sorrir", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa , 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/sorrir





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terça-feira, 4 de outubro de 2022

Alfafar

 (ou O Sumo das Uvas Colhidas)




De repente, o sumo. Antes de ser vinho. Antes de ser trova.

 

Alfafar.

Trabalho e recompensa. O copo cheio desse sumo doce. O teu sorriso aberto, acentuando as rugas vividas dos teus olhos. As palavras breves, entre esforço e esforço. O cigarro. Qual seria?! O milésimo cigarro do dia... A loja. Por debaixo da casa. Oficina e adega e garagem. Um tudo para tudo, onde preguei tantos pregos desavisados na madeira seca. Só porque sim.

 

Alfafar.

O cheiro da terra, do mosto e do suor. A rua que subia até ao desconhecido e descia para a igreja. A alegria. O colchão de palha, que picava a pele e cheirava sempre a humidade. As vinhas. Ordem e Braçal. O portão rubro, quase sempre arrombado. Mais do tempo que das gentes. A nogueira. Velha anciã do sítio. Nos olhos inocentes de menina, nascida contigo. Mas com tantos mais sóis.

 

Alfafar.

Os degraus de pedra para a casa. As teias de aranha. O cheiro a lavado quando o Padre vinha, na Páscoa, trazendo Cristo e gula. As suculentas nos vasos. Neve?! Ou será esta uma memória falsa, criada de ouvido? Mas... sim... houve neve. Uma vez. Não me lembro do frio, mas dos farrapos brancos, pequeninos, caindo. E de nós... pequeninos... no alpendre de pedra velha onde as andorinhas tinham abandonado os ninhos. Neve. Mas calor em nós.

 

Provavelmente, sorveste os cigarros como eu sorvi as memórias e as palavras. Não sabia, naquele tempo, que a resposta certa para aquele sumo das uvas colhidas era “amo-te”. Dizia só “obrigada”. Tinham-me ensinado. Assim. Só a agradecer. Como se bastasse...

 

Mas aprendi a amar avô. Não te preocupes! E também aprendi a não amar. Não ando por aí a deitar palavras ao vento. Não... espera! Não aprendi! Mais importante: soube! Soube que o amor me é inato e não se aprende. Soube que o “amo-te” às vezes é o copo de sumo. Soube que o “amo-te” às vezes é o “obrigada” menino, levando-o aos lábios.

 

Não sei se – homem das vinhas e dos cigarros – aprendeste o jeito galante com as árvores, os pássaros, as personagens dos teus livros ou o tempo.

 

Sei que dizias amor de muitas formas. Com copos de água noturnos, gelados no murinho, jogos de dominó, cafés amargos de açúcar no fundo, maçãs descascadas à navalhada e sumos de uva. E com o café da manhã, de torradas feitas no fogão. Pés no colo, enrolados em mantas, nos filmes de Domingo à tarde. No lanche de Chocapic com torradas a verter manteiga. No aquecedor da casa-de-banho ligado antes do meu duche. E o “faz lá a vontade à menina” nos jeitos ocasionalmente descontes da minha mãe.

 

Alfafar.

Trarias a tua terra na voz. Com ela me marcarias os sentidos, traço a traço.

 

Tenho-te de volta no cheiro de todos os cigarros. Em todos os gelados. Em todas as torradas. Em cada chocolate quente. Em cada copo de água antes de dormir. E, por te ter de volta tantas vezes, nunca te perdi.

 

Lembrar que não estás é trajeto. Voltar àquela loja – também oficina e adega e garagem – pregar mais um prego desavisado na madeira seca como se fosse o caixão onde deitarei a mágoa e a saudade (e o corpo) algum dia.

 

Mas, de repente. O sumo. Antes de ser vinho. Antes de ser trova. Nos lábios. Na língua. Na garganta. Errando caminho e descendo ao coração, que o bombeia para o corpo inteiro.

 

Voltas. Outra vez.

 

O corpo regado fica. Para trás. Mas eu vou. Passo a placa de indicação onde se lê Alfafar. Subo os degraus de pedra. Entro na cozinha escura e ampla. A avó está ao pé do fogão e tu vens da marquise de vidros embaçados e trabalhados, com passos lentos. Mesmo ao lado do despertador velho – agora mudo - mas com má fama, plantas o copo.

 

Trabalho e recompensa:

- Também ajudaste nas vindimas, este é para ti! – dizes.

E a resposta-menina vem:

- Obrigada.

 

Uma conversa simples. Aparentemente. Mas inteligível apenas para nós. Nunca para quem não sabe que se traduz.

 

Volto lá. Pousas o copo de sumo de uva sobre a bancada.

- Este é para ti, porque te amo! – dizes.

E a resposta-breve vem:

- Também te amo, avô.

 

1 de outubro de 2022

Marina Ferraz





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