O fado da vida diz. O tempo não pára. Mas eu ainda estou no ponteiro parado. O som entre acordes de guitarra Por mais que se diga e se cante e se insista. Eu ainda estou nesse segundo. Nesse. Em que o tempo parou.
Olho para os meus próprios dedos. Eles parecem mais sábios. Talvez mais velhos. Noto neles, ainda, os calos criados pelas canetas e sinto-lhes as pontas rugosas, da insistência abrupta contra as teclas insistentes do teclado. Conheço de cor as cicatrizes feitas com as facas da cozinha. Conheço de cor os traços meio tortos do mindinho, que deforma precocemente – coisas que a genética explica. Mas eles parecem mais sábios agora. Como se o facto de quererem dar-se a outros lhes ensinasse uma coisa ou duas sobre a vida, sobre o mundo, sobre o tempo...
Penso nisto, olhando-os. Segurando o copo de rosé entre eles. Ou talvez olhe para o copo e imagine só que olhe os olhos, pensando-o. Não sei bem o que penso. A mente salta, de pensamento em pensamento, a cada frase que é dita. Sinto o líquido inebriado na língua, já não sei se vinho, saliva ou sonho líquido. Os olhos dançam com as estrelas do dia morno e inventam outras histórias que, ali, são só ficção. O coração é o pior de todos! Maestro desta orquestra, esquece a compostura e a dá toques de batuta tão fortes contra a pele, que desconfio que dê para vê-lo através do linho fino da camisa.
Tento explicar-lhe que música clássica não é punk-rock alternativo. Mas, digam-me vocês: já alguém conseguiu disciplinar o coração?
Desconfio que a vida se faz quando o tempo pára. E o fado da vida é esse. Três horas – horas – depois. Três – segundos – passaram. Aparentemente. Não há explicações lógicas ou racionais. Caem por terra as melhores leis da física. A alquimia e a religião acasalam, emparelhando a Pedra Filosofal e o Graal: ambos naquele copo de rosé.
Ninguém envelhece. Ninguém morre. Ninguém nota que os ponteiros andam. Naquele segundo, tenho a certeza: não envelhecerei um dia se continuar naquela cadeira, com os dedos em redor do copo de rosé. Nunca mais ficarei doente. Nunca mais me sentirei triste. Nunca mais terei de olhar os dedos para os achar velhos. Nunca mais terei outro trabalho além de domadora de corações rebeldes. (E serei eternamente uma nódoa nessa tarefa...)
E o fado toca. A vida. Dizendo. Isso. O tempo não pára. Mas eu ainda estou no ponteiro parado. Por mais que se diga e se cante e se insista. Eu ainda estou nesse segundo. Nesse. Em que o tempo parou.
Porque a cidade era feita de carros que aceleravam. E as redes eram feitas de pessoas que corriam. E os relógios tinham pressa, algures. O fado da vida, entoado em muitas corridas enlouquecidas, daqui para ali, dali para aqui, de todo o lado para lugar nenhum e de lugar nenhum para todo o lado.
Na mesa havia dois copos de rosé, refletindo sorrisos.
Só o coração insistia em correr.
Os dedos queriam dar-se a outros, sabendo coisas que nem eu sabia.
Naquele momento, nem nascimentos nem mortes, nem agruras, nem cansaços, nem revolta, nem guerra, nem mundo fora daquela mesa. Nem espaço fora daquele copo, agora quase vazio, de rosé. Nem pensamento lógico que se enuncie.
Apenas sorrisos.
O coração a querer correr.
O fado da vida que ninguém canta...
E os dedos sábios que, agora, entendiam que os ponteiros param quando o coração corre.
Quando o copo terminou, prometeram que escreveriam, um dia, um poema sobre isto. Escreveram - um livro - inteiro. Havia tempo...