terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sorrir não mata

 


 Fotografia de Analua Zoé



Sorrir não mata. Foi isso que ela disse. Mas eu não concordo.

 

 

Sorrir. O dicionário diz que é “rir sem gargalhada, fazendo apenas um pequeno movimento com os lábios”[i]. Estudos indicam que é bom para a saúde. Move 12 músculos da face, 84 no caso de também estarmos a conversar. Somos todos muito dados ao multitasking atualmente. Ou pelo menos as mulheres são, segundo os estudos.

 

Mas sorriso não é riso. Embora possa sê-lo. Sorriso não é exercício físico. Embora possa sê-lo. Sorriso é outra coisa. Sorriso é muitas coisas. E, uma delas, é máscara.

 

 

Era o pior dia da minha vida. Sorri. Sorri porque um amigo me cumprimentou na rua e foi preciso que sorrisse. Porque tive uma reunião de trabalho e imperava a simpatia. Porque a criança estava com medo de dar aquele primeiro passo para a sala de aula e, mesmo de coração partido, a adulta era eu. No velório de alguém que eu amava, porque outros precisavam de conforto. Ao espelho, para mentir a mim mesma.

 

Como eu, outros sorriram. Alguns, até ao esgotamento. Até à depressão. Até ser tarde demais. Até ao suicídio. E alguém disse: mas vi-o ontem e estava bem! Parecia tão animado. Estava, não estava? Até sorriu!

 

Sorriu. Mas as ruas de hoje perpetuam a premissa do “um homem não chora”, despindo-a de género. Um homem não chora. Uma mulher não chora. Uma criança não chora. Ninguém chora! E, se chorar, é fraco. É uma falta de consideração chorar. Incomoda os outros...

 

E não é só nas ruas. As redes sociais são o novo museu do sorriso. Até as aplicações de “embelezamento” das fotos oferecem a hipótese de colar um sorriso falso em cima de qualquer rosto mais sisudo. Longe vai o tempo de sorrir para uma mensagem especial que alegrou o dia. Hoje – e sim, vou inventar a estatística que se segue – 9 em cada 10 pessoas que sorri para o telemóvel está a tirar uma selfie.

 

E, então, estou a ter um dia de cão. O trabalho agarrou-se aos dedos como um carrapato, ainda tenho imensa coisa para fazer e a minha casa precisa desesperadamente de ser limpa. Faz este mês anos que morreu o meu avô. Também faz este mês anos que morreu a minha avó. E a tecla “M” do meu computador está a falhar constantemente, obrigando-me a escrever duas vezes quase todas as palavras deste texto (alguma vez deram conta de quantas palavras da língua portuguesa têm um M?)

 

Confesso. Estou um pouco mais sisuda. E, em tom de brincadeira, lá vem: Sorrir não mata.

 

Sorrir não mata.

 

Foi isso que ela disse. Mas eu não concordo. E acho mesmo que se devia parar de fazer do sorriso uma norma social. Devíamos normalizar o “não estou bem”. Devíamos normalizar o choro. Devíamos normalizar a merda dos dias maus. Para não haver o mas vi-o ontem e estava bem! Parecia tão animado.

 

Não me apetece sorrir agora. Estou a ser honesta comigo e com o mundo. Talvez amanhã, se me apetecer, sorria. Agora não.

 

O problema não é que “sorrir não mata”... mas que a honestidade crua incomoda!

 

Mas já diziam os pinguins do Madagáscar: é sorrir e acenar!


 Marina Ferraz




[i] "sorrir", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa , 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/sorrir





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1 comentário:

  1. Excelente texto, tão verdadeiro, e sempre que somos emocionalmente honestos os outros olham-nos de lado, como leprosos...parabéns adorei.

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