(ou O Sumo das Uvas Colhidas)
De repente, o sumo. Antes de ser vinho. Antes de ser trova.
Alfafar.
Trabalho e recompensa. O copo cheio desse sumo doce. O teu sorriso aberto, acentuando as rugas vividas dos teus olhos. As palavras breves, entre esforço e esforço. O cigarro. Qual seria?! O milésimo cigarro do dia... A loja. Por debaixo da casa. Oficina e adega e garagem. Um tudo para tudo, onde preguei tantos pregos desavisados na madeira seca. Só porque sim.
Alfafar.
O cheiro da terra, do mosto e do suor. A rua que subia até ao desconhecido e descia para a igreja. A alegria. O colchão de palha, que picava a pele e cheirava sempre a humidade. As vinhas. Ordem e Braçal. O portão rubro, quase sempre arrombado. Mais do tempo que das gentes. A nogueira. Velha anciã do sítio. Nos olhos inocentes de menina, nascida contigo. Mas com tantos mais sóis.
Alfafar.
Os degraus de pedra para a casa. As teias de aranha. O cheiro a lavado quando o Padre vinha, na Páscoa, trazendo Cristo e gula. As suculentas nos vasos. Neve?! Ou será esta uma memória falsa, criada de ouvido? Mas... sim... houve neve. Uma vez. Não me lembro do frio, mas dos farrapos brancos, pequeninos, caindo. E de nós... pequeninos... no alpendre de pedra velha onde as andorinhas tinham abandonado os ninhos. Neve. Mas calor em nós.
Provavelmente, sorveste os cigarros como eu sorvi as memórias e as palavras. Não sabia, naquele tempo, que a resposta certa para aquele sumo das uvas colhidas era “amo-te”. Dizia só “obrigada”. Tinham-me ensinado. Assim. Só a agradecer. Como se bastasse...
Mas aprendi a amar avô. Não te
preocupes! E também aprendi a não amar. Não ando por aí a deitar palavras ao
vento. Não... espera! Não aprendi! Mais importante: soube! Soube que o amor me
é inato e não se aprende. Soube que o “amo-te”
às vezes é o copo de sumo. Soube que o “amo-te”
às vezes é o “obrigada” menino,
levando-o aos lábios.
Não sei se – homem das vinhas e dos cigarros – aprendeste o jeito galante com as árvores, os pássaros, as personagens dos teus livros ou o tempo.
Sei que dizias amor de muitas formas. Com copos de água noturnos, gelados no murinho, jogos de dominó, cafés amargos de açúcar no fundo, maçãs descascadas à navalhada e sumos de uva. E com o café da manhã, de torradas feitas no fogão. Pés no colo, enrolados em mantas, nos filmes de Domingo à tarde. No lanche de Chocapic com torradas a verter manteiga. No aquecedor da casa-de-banho ligado antes do meu duche. E o “faz lá a vontade à menina” nos jeitos ocasionalmente descontes da minha mãe.
Alfafar.
Trarias a tua terra na voz. Com ela me marcarias os sentidos, traço a traço.
Tenho-te de volta no cheiro de todos os cigarros. Em todos os gelados. Em todas as torradas. Em cada chocolate quente. Em cada copo de água antes de dormir. E, por te ter de volta tantas vezes, nunca te perdi.
Lembrar que não estás é trajeto. Voltar àquela loja – também oficina e adega e garagem – pregar mais um prego desavisado na madeira seca como se fosse o caixão onde deitarei a mágoa e a saudade (e o corpo) algum dia.
Mas, de repente. O sumo. Antes de ser vinho. Antes de ser trova. Nos lábios. Na língua. Na garganta. Errando caminho e descendo ao coração, que o bombeia para o corpo inteiro.
Voltas. Outra vez.
O corpo regado fica. Para trás. Mas eu vou. Passo a placa de indicação onde se lê Alfafar. Subo os degraus de pedra. Entro na cozinha escura e ampla. A avó está ao pé do fogão e tu vens da marquise de vidros embaçados e trabalhados, com passos lentos. Mesmo ao lado do despertador velho – agora mudo - mas com má fama, plantas o copo.
Trabalho e recompensa:
- Também ajudaste nas vindimas, este é para ti! – dizes.
E a resposta-menina vem:
- Obrigada.
Uma conversa simples. Aparentemente. Mas inteligível apenas para nós. Nunca para quem não sabe que se traduz.
Volto lá. Pousas o copo de sumo de uva sobre a bancada.
- Este é para ti, porque te amo! – dizes.
E a resposta-breve vem:
- Também te amo, avô.
1 de outubro de 2022
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