terça-feira, 27 de setembro de 2022

A Adega

 


Este texto não é patrocinado. Podia ser, mas não é. Porque não precisa de o ser para que eu insista que quero fazê-lo. Porque tenho mil motivos para o fazer e mais um, que surge sempre inesperado, quando julgo que já terminei a lista.

 

Enquanto o escrevo, bebo um copo de vinho tinto. Não é um copo de vinho qualquer. É deles! Um vinho feito com amor e uvas também. Um vinho chamado Lili, que é a cadelinha da Adega e ao qual, definitivamente, sendo preciso ou não, ninguém põe trela. Deixamos o vinho verter, livre, pela garganta. É intensamente suave. Uma espécie de amigo-de-todas-as-horas, que gostamos que convidar para jantar e para depois do jantar e enquanto fazemos o jantar... aquele que gostamos de apresentar aos outros amigos, porque se dá bem com toda a gente.

 

Beber os vinhos da Adega é provar um sabor de família. Os vinhos contam a história da Sofia e da Ana, ilustradoras exímias de rótulos e portadoras do sonho que é também dos pais. Os vinhos contam a história da Catarina e do David e sabem à sua coragem incomum, trazendo a força das decisões que vão além dos limites da caixa. Os vinhos contam a história da simpática Lili, que cumprimenta toda a gente com uma simpatia canina e um abanar de cauda. Mas os vinhos deles também contam a história do meu avô e da minha avó. Dos meus irmãos. Dos meus pais. Das vindimas e das festas na aldeia. Dos pedidos meninos às estrelas que, em Alfafar, se viam melhor. E conta a história das vindimas que viveu a Fernanda e das que viveu o Raul. E conta a história do Júlio e do Carlos e do Zé e da Vanessa. E conta a história de todos os nomes que mergulharam  nos copos e sorriram.

 

A Adega, como eu, é menina da cidade. Na verdade é a única Adega lusa que o é. Da cidade. E, além da história das gentes, os vinhos contam também essa história. De Alenquer à Tapada da Ajuda, com sabor de Tejo e Colina, eles trazem Lisboa lá dentro. Engarrafada, como o ar de Fátima, mas de uma forma mais plena e honesta. E a experiência é, não me entendam mal, quase religiosa, porque há muito mais do que madeiras e travos de fruto vermelho nos sabores. Há plenitude, entendimento, vontade, trabalho e doses infindáveis de sentidos e sentimentos. É assim que, numa velha oficina, se iniciou a artesã arte do engarrafamento de poesia líquida.

 

Dou mais um gole no meu Lili. E mais uma vez descubro-lhe a tenacidade envolvente da viagem em que me leva. Sou menina. Sou mulher. Sou cidade. Um tanino – talvez lento – que abriu melhor aqui e que quer brindar a vida, porque a ama.

 

A sala das barricas é a minha favorita. Adoro a forma como os sapinhos do logótipo tentam trepar pela madeira, como se consagrassem a poção que têm dentro. Adoro o cheiro agridoce da madeira e do vinho. A sensação fresca de algo que aguarda, no casulo, pelo momento certo para sair. Lembra-me a vida. Lembra-me Saramago e o seu conselho: Não tenhas pressa, mas não percas tempo. Nenhum tempo se perde. Tempo não é coisa que se perca quando – humanos – já temos tão pouco!

 

Eu, por exemplo, hoje usei o meu para isto. Para escrever este texto sobre a Adega, que não é uma adega mas A Adega, porque encontro nela referência, não só para os vinhos, mas para a vida e o mundo.

 

A Adega é o local onde sabemos que vamos encontrar um abraço de simpatia e um copo cheio nos dias mais árduos. A Adega é o espaço que nos ensina o valor da família, do sonho, do trabalho, do cuidado com os outros. E é por isso que este texto não precisa de ser patrocinado... e não o é! Porque há pessoas e locais que merecem a referência. Porque há sentimentos que têm sabores e cheiros e experiências sensoriais agarradas. Porque esta adega, a Adega, é assim...

 

E... vá... embora este texto não seja patrocinado, eu cedo aos pedidos mudos de quem conhece o espaço e já me viu nele... Aqui fica um movimento circular de mão sobre a nuca. Momento Publicitário.

 

Mas deixo também um segredo...

 

A parte importante não é a publicidade... é o momento!

 

Pensem nisto. Ou melhor, não pensem! Visitem a Adega Belém... e vão entender!


Marina Ferraz





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terça-feira, 20 de setembro de 2022

Três vezes Góia

 


Fotografia de Rui Barroso


Góia, góia, góia...

 

Um sopro. Um sopro que é um murmúrio. Um murmúrio que é uma exultação. Uma exultação que vem de dentro. Dentro-dentro. Do espaço onde a alma principia, quando o corpo não basta. Um hábito... talvez.             Também...       mas não só. Um dialeto que não existe. Pessoal. Intrínseco. Intransmissível. Raro. Tão raro!... Cada vez mais raro. Mas nem sempre o foi...

 

O berço. Três chupetas na mão. O embalo calmo dos meus avós. O aconchegar das mantas sobre o corpo. O entalar das mantas, para que não me destape. Não se quer a menina ao frio. Chupeta número um, na luta contra o sono. Número dois, e fecha os olhos. Número três. O conforto. Mas o conforto supremo. Góia, góia, góia...

 

Para a minha família Góia era o meu dialeto para chupeta. Como Didia era Marisa e Didio era Ramiro. Sim... eu tinha um vocabulário muito vasto num idioma só meu! Mas, como em qualquer dialeto, quando não o sabemos, as interpretações podem frequentemente equivocar-se. Então, durante muito tempo sorri quando, de bebé ao colo, ouvia a minha irmã perguntar se alguém sabia da Góia. Porque góia não é... nunca foi... uma chucha.

 

Deito-me nos teus braços. Agarras-me suavemente. Luz muito ténue a vir do corredor. Canto da noite, entrando com o ar sorvido. O calor que te emana. O toque da pele, com travo a rosa e erva-lima. O arrastado do sabor da poesia, ainda a picar na língua, depois de um beijo de boa-noite. A almofada, que é macia e dócil. O colchão, que é aconchegante e convidativo. As memórias do hoje que termina, e foi tão bom. Os planos para amanhã, sem pressa do amanhã. E os muitos ontens que se vão somando. O cansaço do dia, a derreter. A mão, que tenta decorar a textura de outra pele, gravando-a nas impressões digitais. E a Morte, que sempre visita, para me aconchegar as mantas e dizer “hoje ainda não”. E o sopro. Um sopro que é um murmúrio. Um murmúrio que é uma exultação. Uma exultação que vem de dentro. Dentro-dentro. Do espaço onde a alma principia, quando o corpo não basta.

 

Góia, góia, góia...

 

Góia é um lugar. E não o é. É um sentimento, uma sensação, um espaço sem existência física. É aquele – muito raro – momento no qual a sensação de plenitude, de conforto, de bem-estar e de contentamento é tão intenso, que podíamos morrer ali e não queremos morrer de todo. É um espaço que vem sempre na hora do ocaso das gentes, quando se começa a mudar do plano da vida para o do sono. Mas que vem antes de dormir, quando a consciência, amortecida, ainda persevera.

 

Góia, góia, góia...

 

Era comum encontrar essa calma, essa candura, essa perfeição... No tempo em que dormia com três chupetas e estava cheia de mãe e de avós e de Didios e Didias a velar-me o sono contente. Mas góia não é... nunca foi... uma chucha.

 

 

Deito-me num abraço. A noite canta. O meu corpo liberta-se da tensão. E só cabe alegria no peito. Tanta, que expande e me preenche cada um dos órgãos vitais. Uma felicidade inexplicável... e nenhuma vontade de explicar esse lugar – o meu país das maravilhas – onde aceito sem entender essa coisa da plenitude.

 

Há um silêncio inerente no canto que a noite entoa.

 

E vem. À medida que o sono me ganha. Com tudo antes. Sem nada depois. Um sopro. Um sopro que é um murmúrio. Um murmúrio que é uma exultação.

 

Góia, góia, góia...


Marina Ferraz





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terça-feira, 13 de setembro de 2022

A direção do vento

 


Escrevi o prefácio da minha história em grãos de poeira. Com letra muito miudinha, como dizia o meu avô. Agarrei-o. Amei-o. Abri a mão. E disse. Voa. Voou.

 

Nunca ninguém o leu. Nem mesmo eu, que o escrevi. Ainda bem!

 

 

 

O vento passou por mim, numa segunda-feira de manhã. Assobiou-me ao ouvido. Pobre tonto. Aposto que não sabia que o piropo era, agora, proibido. Ou talvez soubesse. Mas assobiou à mesma. E, nesse assobio, falou como gente e disse. Escreve-me uma história de amor.

 

Tentei explicar ao vento que o amor já tinha sido gasto em muitas histórias. E mais... que quase nenhuma delas tinha amor por dentro, já que a palavra amor se esvaziara, com os anos, até ficar só a casca. Tão vazia. Tão oca. Tão desalentada... que não valia as árvores mortas para criar o papel desses livros...

 

Ele insistiu. Escreve-me uma história de amor.

 

Convidei-o a vir até à minha casa, num dia de luto. E ele lá nos encontrou. Dando o olhar leve uns aos outros. Abraçando-nos. Dizendo: enquanto um de nós viver, somos todos imortais. Dizendo: estou aqui. Mas sem dizer. Porque era desnecessário falar de amor. É sempre desnecessário falar de amor, quando ele existe.

 

Esta é a minha família. Contei-lhe. E ele entendia que eu sabia o que o amor era. Mas ainda insistiu. Escreve-me uma história de amor.

 

Pedi que me seguisse até lá. Ao homem – hoje pai – que sorria, onde eu não vejo. Ao músico – mergulhado em enredos e notas que vibravam nas cordas – onde eu não ouço. Convidei-o a sentir a alegria no meu peito ao contemplar o futuro do qual eu nunca fiz parte. Este é o caminho que eu não bloqueei. Expliquei-lhe. E ele entendia que eu sabia o que amor era. Por isso insistiu. Escreve-me uma história de amor.

 

Sentei-me, muito quietinha, nas ruas da solidão. E o vento passava. E o vento dizia. Escreve-me uma história de amor. Mas eu estava contente com só-estar. E feliz por ser essa pessoa que ama, apesar de, além de, para sempre...

 

E então, o vento soprou do mar. Trouxe-me as gotas da maré de uma lua que crescia no céu. Assobiou-me ao ouvido. E, com um riso de menino perdido, mudou a narrativa. Escreve-te uma história de amor.

 

 

Escrevi o prefácio da minha história em grãos de poeira. Com letra muito miudinha, como dizia o meu avô. Porque tinha medo que alguém o lesse e o achasse mundano. Esse prefácio? Agarrei-o. Amei-o. E, como sempre se faz onde há amor, abri a mão. E disse. Voa.

 

Talvez nunca ninguém o leia. Ou talvez toda a gente o leia. Ou talvez não interesse realmente saber se alguém lê.

 

Mas isto confesso. Uma história de amor cabe inteira no prefácio.

 

E o resto... para quem perguntar... depende apenas da direção do vento.


Marina Ferraz





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terça-feira, 6 de setembro de 2022

Caos de blocos em nós


Não explode. Não rebenta. Solidifica. Com o tempo vem ao topo. Com o tempo erode. E tudo é caos. Mais valia, penso, que tivesse explodido, rebentado, incendiado. Mas não! Solidificou. Dentro. Veio à flor da pele dessa terra que somos. E, ali, erode. Criando formas rígidas e arredondadas. Quem olha, não faz ideia...

 

Ninguém sabe o que vem de dentro e como chega à pele. O modo como os gestos, as palavras, as ações do mundo se imprimem, criando tensões e medos e agruras. A violência não é inata. A rigidez também não. Criam-se na profundidade do planeta que somos. Debaixo das muitas camadas que nos compõe e que nos cobrem o centro líquido e quente, que é alma e mente e emoções que ninguém explica.

 

O magma é o sangue nas veias. E, por vezes, quando a vida magoa por ação alheia, a erupção acontece. Vem, explosiva. Escorre e queima. Devia ser sempre assim! Devia ser sempre esse cuspir de piroclastos na forma de palavras. Devia ser sempre esse jorrar de ideias que diz: isso magoou-me e não é justo. Mas não é. Calamos. E, quando calamos, lançando o gelo para dentro, tentando agir friamente, racionalmente, o magma do não-dito solidifica ali mesmo. No coração. Na garganta. Vira tumor.

 

Orgulhamo-nos do domínio do eu. Do que não fizemos. Tão racionais! Tão controlados! Palminhas para nós! E vivemos eternamente com a consequência...

 

Não foi dito. Nenhuma discussão encheu a sala de gritos. Muitos parabéns! Nenhuma violência tomou forma. Palminhas para nós! Pacatez e silêncio. O engolir do ressentimento. O engolir da mágoa. E agora?!? Solidificámos com frieza o magma da palavra. Dentro. Evitámos a erupção. Engolindo. E ficámos com o sólido do tumor na garganta. Que não explode. Que não rebenta. Mas que ascende e cria marcas em nós, pintando-nos a pele, seja a do corpo ou a da alma. Vícios. Hábitos. Tensões. Blocos arredondados de matéria que devia ter sido palavra. E não foi.

 

Um dia, quando vier ao topo, vão chamar-lhe caos. À medida que a vida lhe lima as arestas e que a mágoa rola, levando tudo à frente. Vão chamar-lhe caos. Quando formarem uma paisagem de rocha impossível de escalar. Vão chamar-lhe caos.

 

Mais valia, penso, que tivesse explodido, rebentado, incendiado. Mas não. Calamos. E para quê?! É um caos de blocos em nós.

 

Sei que sou difícil. Essa é a parte fácil. Saber que sou difícil. Ver o cenário granítico de montanha em mim. Entender essa rocha – o meu próprio Monte do Silêncio – e saber que sou caos. Mas porquê? Enfim... calei. Calei tanto que, hoje, não calo. Vão chamar-me muitas coisas. E há caos... eu sei!

 

Há muitas rochas dispersas para escalar em mim. A maioria vai desistir antes de chegar ao topo, de onde se vê até ao infinito das florestas da fantasia que me povoam a mente. Sei que não sou fácil. Certamente não sou para todos. Também não faço questão de ser. É preciso alguém muito especial para ver que, além da pedra, existe uma história... uma história bem antiga... que começou num sítio muito, muito profundo...


  Marina Ferraz





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