quarta-feira, 30 de julho de 2014

Pelas ruas

Foto de Sara Augusto

Pelas ruas aonde passo, já passaram outros. Com ou sem destino, não importa. Pelas ruas onde passo, passaram outras gentes. Deixaram-lhe impressa a memória esvanecente. Ninguém lhe lembra os passos ou o rosto. A sua memória foi-se com o sol quedado de ontem ou mil sóis quedados de há séculos atrás. E eu passo.
Nas ruas aonde passo, há pedras desgastadas de ver os pés de mil homens que se fizeram em milhões de pedaços de nada. Piso-as e sou mais uma. Não tenho nome nem identidade. Pelas ruas aonde passo passaram outros que, como eu, também não o tinham.
Aprendo, a andar pelas ruas, que não importa quem sou. Andando, caminho rumo ao esquecimento, deixando as fachadas das casas cruas e as pedras cinzentas do chão. A imortalidade não é de quem passa nas ruas. Mas não faz mal. Não quero ser imortal. Imagino que uma vida basta para quem não faz mais do que ir, sem rosto, em passos firmes sem nome.
Nas ruas onde hoje passo, passaram nobres e plebeus, doutores e sem abrigo. Passaram poetas e gentes sem inspiração. Pisaram pedras igualmente gastas. Todas encardidas e sujas. A rua não se fez melhor para ninguém.
Caminhando, imagino os seus rostos. Rostos fictícios, uns pintados de pó de arroz, outros de fuligem. Imagino-lhes as roupas caras e os trapos. Dou por mim a cumprimentá-los com acenos de mão e anuências leves. E a rua deserta. Mas para mim não.
Pelas ruas aonde passo, já passaram outros. Não sei quem eram ou se eram alguém. Mas passaram, nesta rua aonde passo. Partiram. Alguns morreram. Outros estão em casa, à espera de morrer. Outros não querem morrer. Mas a rua já os matou. Matou-os a todos, num auto de fé onde arderam as memórias. Matou-os porque não precisa deles para ser rua.
Passo. A rua onde passo não o sabe. Mas passo, rumo ao esquecimento de mim. E vou olhando aqueles que, como eu, passam.
Quero perguntar-lhes se sabem que não são ninguém. Se sabem que vão morrer, deixando a rua impávida e serena. Mas as perguntas perturbam as pessoas. As pessoas já não sabem responder ao que causa incómodo nas paredes do estômago e nas entranhas da alma.
Calo as perguntas. Levo-as comigo. Não sei aonde vou. Mas a cada passo, deixo o que eu fui. Se fui alguém além do que sou. Se sou alguém além do nada ao qual a rua me condena.

Marina Ferraz

segunda-feira, 21 de julho de 2014

As velhas da praia

"Barco Negro", interpretado por Amália Rodrigues

As velhas da praia têm razão. Não voltas. O teu braço a acenar ao longe não é mais do que uma despedida eterna. O mar roubou-te de mim. Se não te levar a vida, vai levar-te a inocência. Mesmo que essa caravela retorne. Mesmo que atraque no mesmo porto. Mesmo que dela saia um homem com o teu semblante. Não voltas. As velhas da praia têm razão.
Tivemos a noite. Fui tua. Foste meu. Tivemos um amor de mar. Mas é na areia que o enterras, acenando levemente, não um "até breve" mas um "até nunca mais".
Silencio o coração, enquanto a minha mão dança, pelo ar, respondendo à tua. Mas as mãos que se despedem na distância têm já os espaços abertos entre os dedos. Nunca mais se darão uma à outra. Talvez a minha nunca mais se dê a ninguém. E as velhas, de traje negro, carpideiras de filhos e netos, insistem, num murmúrio chorado "não volta mais". Não falam de ti. Falam de todos os que, como tu, acenam no convés desse navio que vai além mar, cantar as glórias de um país em decadência.  Trarão tecidos caros, especiarias, boas novas sobre terras que ficam além do desconhecido. Mas o país estará pobre, por entre o ouro e as pedras finas. Porque, em troca, esta terra vende as mãos que antes se davam. É um preço indevido.
As velhas da praia têm razão. Por mais que grite, dentro do peito, que elas são loucas. Não são. Têm razão. O mar que te leva não poderá devolver mais do que a carcaça vazia do que foste. Abandonando o amor, verás a morte de perto. Vais achar consolo nos braços de outras moças, cuja carne saciará por instantes a fome da paixão. Passarás frio. Passarás fome. Desejarás a água pura, por entre um oceano que não te acalma a sede. E, no regresso, se a vida não te for roubada, trarás contigo tudo isto, entranhado na pele, cravado na alma. Não serás, já, o homem que esta noite me deu o mundo.
Odeio o lamurio triste destas anciãs. Essas, a quem chamo de loucas, em segredo. Mas elas estão certas. Trajam já o luto. Também eu devia fazê-lo. Não consigo. Então insisto. Insisto que, dentro de mim, ficará eternamente quem eras antes de embarcares, num aceno feito de promessas impossíveis de cumprir. Insisto que, no meu peito, serás sempre o homem pelo qual me apaixonei. Mas as velhas têm razão. Não voltas. E a louca sou eu.
As velhas da praia têm razão. Não voltas. Vais à procura da aventura. Cantarão a tua vida por muitos anos, à medida que o teu nome desaparece, no emaranhado das memórias de um país. Mas, mesmo sem nome, serás herói. Espero que valha a pena.
Vivemos um amor de mar. Acenas. E, à medida que desapareces na distância fica apenas o horizonte, que parece acenar também, na sua quietude eterna. Deixo cair o braço ao longo do corpo deserto que ontem tornaste teu. E chamo loucas às vozes intermináveis, enquanto elas se afastam, levando o seu luto e deixando o negro do sol posto. Fico, de lágrimas nos olhos. As velhas da praia têm razão. Não voltas. 

Marina Ferraz

terça-feira, 15 de julho de 2014

Possessivos



Não é sobre o amor. É sobre mim. Sobre o que eu sinto. Sobre as coisas que posso abraçar como minhas. Sobre as pequenas contrariedades do meu dia. Sobre os grandes problemas. Sobre uma constante incerteza onde antes havia apenas fragmentos de dúvida.
Não é sobre o amor. É sobre os meus braços do teu corpo. Os braços que eram meus quando me envolviam no sabor amargo da palavra mentida que jurava, a cada momento, que era para sempre. É sobre os meus olhos e as minhas lágrimas vertidas, que percorriam o meu rosto e caíam nas minhas mãos vazias.
Não é sobre amor.  É sobre o meu sorriso. O meu sorriso dado na rua, eterno vagabundo de esquinas polidas por corpos sem vontade. O meu sorriso, comprado e vendido, nas minhas palavras corridas num "está tudo bem".
Não é sobre o amor. É sobre mim. Sobre quem eu sou. Sobre quem eu me tornei quando caí nos braços frios de um amor sem dó. Sobre a forma como o meu corpo foi abraçado apenas para ser apunhalado pelas costas. Sobre a forma como as minhas mãos se fecharam ao redor de outras apenas para descobrirem como é apertar o vazio de uma memória que não esbate, não ameniza, não desvanece...
Não é sobre o amor. É sobre o que é meu por entre esta vida onde, olhando, nada me pertence de facto. É sobre o possessivo constantemente negado pela vontade insaciável do desespero. É sobre o roubo completo e triste de tudo o que há de importante e válido num ser que vive.
Não é sobre o amor. Não é sobre a disposição calada de uma paixão ardente que gelou. É sobre o que ficou na minha memória quando tudo abandonou a minha vida.
Não é sobre amor. Acreditem! Não é! Sobre amor são os poemas frios e os textos insípidos de quem chega a casa e tem algo de seu. Isto não é sobre amor. É sobre o meu amor. Porque quando chego a casa não tenho nada além deste sentimento que é meu e não posso partilhar, a bater-me levemente no peito e a sair-me pelos dedos, impensado. E não são meus os dedos. Não é meu o papel que beija a ponta alada da caneta. Não é meu o coração que bate. Mas o amor? O amor é meu. Apenas meu. Porque foi só ele que ficou, quando eu perdi tudo o resto.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 8 de julho de 2014

Primeiro amor



Disseram-me que o céu não era sempre azul. Assim. Com o jeito de aviso terno. Com a amargura de quem desejava dizer-me outra coisa. "O céu não é sempre azul, menina". Mas eu ripostei: "Talvez não seja, mas o sol brilha sempre...".

Explicaram-me, depois, que o sol amua sob as nuvens cinzentas. Que, por vezes, chora e chove. Que as ruas se inundam. Que faz frio. "O sol não brilha sempre", disseram. Não acreditei mas respondi. "Talvez o sol não brilhe, mas haverá sempre sorrisos quentes".

Disseram-me, num tom ainda mais triste, que estava errada. "Não, menina, por vezes o sorriso amua, como o sol e, não podendo chover, chora. A tristeza invade os recantos da alegria. A dor sobrepõe-se à vontade de sorrir...". Suspirei, num encolher de ombros. "Talvez os sorrisos escureçam, mas haverá sempre quem nos limpe as lágrimas". De novo me negaram.

"Como podes pensar assim?!", perguntaram, "As pessoas partem, desiludem, abandonam. Ficam as lágrimas e a solidão, companheiras de infância eternas e inseparáveis".

Assustei-me com a mágoa das vozes que me explicavam o mundo mas não deixei que me quebrassem. "Talvez a solidão venha", admiti, "mas haverá sempre um sonho". Abanaram veemente a cabeça, desiludidos, como se eu não entendesse a vida ou o mundo.

"Não, menina... quando a vida se move contra as vontades do mundo também o sonho se esvai, esbate e, nas entrelinhas da mágoa, desaparece". Bati o pé. Não acreditava na morte do sonho mas dei-lhes a dúvida. "Talvez", disse, enquanto acrescentava: "Mas haverá sempre o amor."

"O amor?!". A descrença das vozes fez quebrar o chão sob os meus pés. Interrompi-os: "Sim! Dirão que o amor faz sofrer, chorar, que leva à solidão. Que depois dele, nem silêncio nem azul, nem sol nem chuva. Mas o amor... o amor vai estar. Terei sempre o meu primeiro amor. Aquele que vem de dentro e me faz crer em céus azuis e sóis atrás das nuvens. Aquele que me faz saber que vou sorrir ou que, se chorar, alguém me limpará as lágrimas. Aquele que me faz lutar pelo meu sonho, mesmo quando a vida se volta contra as vontades do mundo e todos o julgam irreal. Aquele que me dá nuances de fantasia por entre os entraves da realidade. Terei sempre o meu primeiro amor. Aquele que me faz olhar ao espelho sem medo de encontrar o vazio e que me faz lutar pelas coisas em que acredito.

Não importa o que me digam. Terei sempre o meu primeiro amor. Um amor que vem de dentro, está em mim, vive e permanece nos recantos incontestáveis do meu corpo, da minha alma, da minha mente. Este é um amor maior que suplanta as vossas palavras. Um amor que suplanta os medos e as dúvidas. E é por isso que sei que haverá sempre céus azuis, sóis a brilhar, pessoas que valem a pena, sonhos reais e amores eternos. Porque podem vir as nuvens, as tempestades, as lágrimas, o abandono, a solidão, a guerra e a morte. Mas terei sempre, sempre o meu primeiro amor.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Gavetas do pensamento



Os pensamentos perderam-se nos confins de mim. Misturaram-se, quebrados, com a realidade infalível e a ilusão sadia de uma qualquer utopia chamada felicidade.
As memórias baralharam-se com os sonhos, quais rostos distantes e indefinidos. Não há marcadores separando o que foi do que poderia ter sido. Não há indicações que tornem precisa a noção do que é real e do que nunca o foi.
Preciso de arrumar as gavetas da minha mente. Preciso de as esvaziar, de deitar fora o que não presta, de guardar somente aquilo que, olhando, me faz sorrir. Acima de tudo, preciso de encontrar razão para as coisas desnecessárias  e obsoletas que guardei, atiradas sem cuidado para o meio  de poemas tristes e de memórias desusadas de um ontem que ficou nos sonhos para amanhã.
Será que ainda mora na desarrumação dos meus desejos alguma esperança vã? Perdi a que trazia comigo e não a encontro em lado nenhum. Estará entre os livros e as fotografias da minha mente?
Preciso de arrumar as gavetas do meu pensamento. De as limpar até serem menos opacas, menos baças, menos tristes. Preciso de  as esvaziar um pouco, para que nelas possa entrar o que quer que seja.
Hei-de te avisar se encontrar a esperança, embora não tenha esperança de a encontrar. Mas, deixa-me arrumar as gavetas juvenis e caóticas do meu pensamento. No topo delas só se vê a desordem que ficou e a poeira amontoada pelos anos de desespero.
Preciso de arrumar as gavetas do meu pensamento. Quem sabe se, no fim, não fica um espaço livre para guardar um pouco de felicidade.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet