Foto de Sara Augusto
Pelas ruas aonde passo, já passaram outros. Com ou sem
destino, não importa. Pelas ruas onde passo, passaram outras gentes.
Deixaram-lhe impressa a memória esvanecente. Ninguém lhe lembra os passos ou o
rosto. A sua memória foi-se com o sol quedado de ontem ou mil sóis quedados de
há séculos atrás. E eu passo.
Nas ruas aonde passo, há pedras desgastadas de ver os pés de
mil homens que se fizeram em milhões de pedaços de nada. Piso-as e sou mais
uma. Não tenho nome nem identidade. Pelas ruas aonde passo passaram outros que,
como eu, também não o tinham.
Aprendo, a andar pelas ruas, que não importa quem sou.
Andando, caminho rumo ao esquecimento, deixando as fachadas das casas cruas e
as pedras cinzentas do chão. A imortalidade não é de quem passa nas ruas. Mas
não faz mal. Não quero ser imortal. Imagino que uma vida basta para quem não
faz mais do que ir, sem rosto, em passos firmes sem nome.
Nas ruas onde hoje passo, passaram nobres e plebeus,
doutores e sem abrigo. Passaram poetas e gentes sem inspiração. Pisaram pedras
igualmente gastas. Todas encardidas e sujas. A rua não se fez melhor para
ninguém.
Caminhando, imagino os seus rostos. Rostos fictícios, uns
pintados de pó de arroz, outros de fuligem. Imagino-lhes as roupas caras e os
trapos. Dou por mim a cumprimentá-los com acenos de mão e anuências leves. E a
rua deserta. Mas para mim não.
Pelas ruas aonde passo, já passaram outros. Não sei quem
eram ou se eram alguém. Mas passaram, nesta rua aonde passo. Partiram. Alguns
morreram. Outros estão em casa, à espera de morrer. Outros não querem morrer.
Mas a rua já os matou. Matou-os a todos, num auto de fé onde arderam as
memórias. Matou-os porque não precisa deles para ser rua.
Passo. A rua onde passo não o sabe. Mas passo, rumo ao
esquecimento de mim. E vou olhando aqueles que, como eu, passam.
Quero perguntar-lhes se sabem que não são ninguém. Se sabem
que vão morrer, deixando a rua impávida e serena. Mas as perguntas perturbam as
pessoas. As pessoas já não sabem responder ao que causa incómodo nas paredes do
estômago e nas entranhas da alma.
Calo as perguntas. Levo-as comigo. Não sei aonde vou. Mas a
cada passo, deixo o que eu fui. Se fui alguém além do que sou. Se sou alguém
além do nada ao qual a rua me condena.
Marina Ferraz