Adeus.
Há na partida segredos que ficam. Colados nas paredes como
manchas de humidade e rachas. Não adianta esfregá-los com lixívia. Criam formas
indefinidas sobre a vida que, acontecendo, ali se fixou. E permanecem.
Despeço-me do som retumbante da gráfica. Despeço-me do vento
nas cadeiras. Despeço-me do bebé que chorava, metodicamente, no andar de cima e
dos passos corridos dos pais que o mimam demais. Despeço-me da vizinha do lado
– estereótipo disfuncional entre as mulheres e os carros – incapaz de
estacionar sem ocupar três lugares. E do senhor do terceiro andar, que, feito
estrela de cinema, sorri sempre e acena, como se alguma vez tivéssemos trocado
palavras de apreço.
Despeço-me daquele piso que não serve para nada, no topo, dando
para o telhado, onde nem o elevador chega. E das suas vistas sobre a serra e a
cidade iluminada durante a noite. Despeço-me do chão desse piso que, manchado
de sangue e lágrimas, me serviu de abrigo e me abraçou, maternamente, nos
momentos de maior mágoa e solidão.
Adeus.
Marcado no chão do quarto, nas paredes do quarto, no tecto
do quadro. Luxúria e magnetismo. Ausência de pudor. Dei-me e vendi-me em troca
de prazer neste quarto. E, de tão deliciosamente lasciva, a forma como o fiz é
de conhecimento público e cordialmente pouco reconhecida. Mas despeço-me com
particular pesar do quarto. O primeiro quarto no qual despi mais do que a
roupa, mas também os muros da alma. Aqui, imaginem só a loucura, deixei que me
tocassem os recantos mais recônditos da alma e do coração. Até que não houvesse
mais nada senão amor e intimidade. E foi por isso que, nos momentos em que a
vida doeu, eu odiei que se imprimisse no espaço essa dor de momento, como se
ela maculasse memórias intemporais de amor. Despeço-me do quarto. Com algum
pesar. Porque nele percebi que o amor, não sendo uma coisa, também se faz.
Literalmente. Fabrica-se, artesanalmente, num sem fim de acções que se
consubstanciam no corpo mas não lhe pertencem.
E a cozinha. Aquela mancha pequenina na banca, do vinho
derramado, que ele tenta limpar até arrancar a pele das mãos. E a mancha fica.
Que maravilhosa a memória do vinho que ali se derramou, juntamente com o riso e
a vontade cega de que o riso não termine. E passos de dança sobre o chão de
azulejo. “Eu não sei dançar”. Sabe. Claro que sabe.
Lá fora, ao vento, dança o alecrim. Plantado no suor paterno
que me uniu, por fim, às pontas soltas do que a juventude me não permitia.
Plantei relações naquela “quintinha”, onde se enterraram oferendas no dia a
seguir às festividades. E, se chegou lá fora o ruído de uma qualquer discussão,
ele apagou-se no cantar das noites de fogo-de-artifício quando, agarrados e
cheios de frio, pusemos os olhos no céu – e um no outro – e no céu outra vez.
Havia cores e calor. Em nós. No céu também.
Adeus.
Esvaziam-se, aos poucos, os armários que ficam. Dão lugar
aos caixotes que vão. Isto vai? É a pergunta lançada, segurando as memórias que
se agarram às paredes e tectos. Vai! E também fica. Espero que fique para que
alguém conte outra história com elas, imaginando desenhos de animação onde só
há realmente espaços de vazio preenchidos de recordação.
Na parede da cozinha, fica a memória permanente de uma
menina que descobriu o amor. Asas abertas. E sentidos de eternidade. Feitos a
giz. E, se é fácil limpá-lo da parede, quero ver limpá-lo da alma… não vai.
Ficará agarrado, lembrete constante de que nada nem ninguém pode partir de onde
foi (in)feliz.
Adeus.
Adeus paredes e tectos. Adeus chão. Deixo-vos o que viram de
amor e ira. De contentamento. De dor. De felicidade. E levo algumas memórias de
como abraçaram momentos que se perpetuam em mim e não desvanecem com o último
bater da porta.
Um último olhar.
Um último texto, nesse olhar.
Coisa estranha, esta memória que me faz julgar que apenas o
bom foi real.
Levo apenas comigo o que foi bom, está bem? Espero que
guardes o mesmo. Nas paredes. No tecto. No chão.
Antes de ir. Um olhar. Obrigada.
Adeus.
Marina Ferraz