Nota prévia: Nesta última ida à minha "Terra Mãe", fui à terra do meu avô. Este texto já é antigo, mas ainda não o tinha publicado. Deixo-o, com memória e saudade, para recordarmos os heróis da terra que fizeram o nosso país (e não os heróis da guerra que se sagram na História).
Para o meu avô (e todos os homens do campo)
O meu avô era um homem do campo.
Nasceu como um homem do campo.
Morreu como um homem do campo.
E foi como tal que se construiu, sem nunca negar as origens ou querer ser outra coisa.
Tinha terras. Em algumas delas, havia vinhas. As vinhas tinham raízes presas à terra. Profundas. Tal como ele. Quase tão profundas como as dele.
Ao longo da sua vida, sem mais do que a quarta classe, o meu avô cultivou cultura junto das gentes e dos livros. Fez-se homem na cidade. E foi muitas coisas. Teve trabalhos de secretária e rotinas sem sol. Mas a terra? Trazia a terra agarrada às pontas dos seus dedos calejados. Plantando e colhendo a vida, estação a estação.
Mesmo quem não sabia de onde ele vinha, sabia: o meu avô era um homem do campo. Era algo que emanava do seu jeito, sempre educado e cortês. Como se a dureza da força que o fazia carregar poceiros que pesavam mais do que eu pudesse, de alguma forma, ver-se sob as camisas às riscas e os bonés.
Das uvas que cultivava, podava, sulfatava e colhia, o meu avô fazia sumo e vinho. Água ardente e, ocasionalmente, vinagre. Às vezes não o fazia de propósito. Enchia, com ele, copos à refeição. E havia quem bebesse. Porque o meu avô, que era um homem do campo, era também um homem bom, a quem se queria agradar.
Menina, nos meus jeitos citadinos, fui levada muitas vezes às colheitas. Vivi as vindimas com cortes superficiais nas mãos e dez quilos de lama seca nas sapatilhas. Vivi-as com queixume. Cortando as uvas e surripiando bagos dourados e doces. Vivi-as com curiosidade, brincando no trator, sob avisos e olhares preocupados da minha mãe – outra menina da cidade – e a permissividade do meu avô que me recomendava apenas cautela, enquanto pisava as uvas na loja sob a casa de campo.
Servia-me um copo de sumo de uva. “O primeiro vinho”. Não tinha fermentado. Mas fazia-me saber que, de alguma forma, aos seus olhos, eu merecia provar, apesar da tenra idade, o sabor dos meus esforços transfigurado em matéria.
Numa pequena aldeia, próxima de Coimbra, na alçada de Penela, eu senti, assim, pelas mãos de um homem do campo, o sabor de uma tradição. O sabor que ela tem antes de fermentar. O sabor que ela tem antes de chegar aos outros e deixar que eles provem também. Foi assim, atrevo-me a dizer, que conheci um sabor que não pode ser entendido por quem não conhece, do campo, o trabalho de sol a sol.
O meu avô era um homem do campo. Como há muitos, de Norte a Sul. Na sua vida conquistou, durante os dias, o dourar de esforços que não se esgotavam no vinho – posto que havia maçãs, nozes, azeitonas e dióspiros - mas que, no vinho, ganhavam expressão e força. E levantava-se com os raios de sol que lhe abençoavam o esforço. E deitava-se com o cansaço que lhe abençoava as noites.
Habituei-me a ver refeições servidas com o seu vinho. Acompanhando o seu vinho. Habituei-me a que as garrafas fossem rainhas na mesa e senhoras de brindes, embora eu brindasse com sumo. E havia alegria na mesa cheia, onde se serviam cozidos e chanfanas e sopas de casamento.
O meu avô era um homem do campo. Filho de uma cultura da terra e de uma tradição lusitana. Do sol e das videiras, fazia irmãos e irmãs. Apaixonava-se todos os dias pela forma como o sol nascia, aos poucos, vestindo os campos de luz. Apaixonava-se todas as noites pela forma como a luz da lua entoava canções de embalar no telúrico caminho das verdes histórias.
O meu avô era um homem do campo. Na pequenez da sua individualidade, o meu avô, mais do que homem, era campo. E, sendo campo, o meu avô era Portugal.
Recordo-o no sabor do vinho que já não é ele a fazer. E lembro-me sempre que, quem o faz, e, provavelmente, avô de alguém que diz, também, com orgulho: “o meu avô é um homem do campo”.
E, nos tons rubros do vinho tinto; no dourado do vinho branco; na vibração verdejante dos vinhos verdes, eu pinto a bandeira do meu país.
O meu país, tal como o meu avô, é homem do campo. Às vezes sinto-o como uma colheita tardia. Com as uvas mais doces a dourar ao sol, amadurecendo aos poucos a envolvência dos seus sabores. Tornando-os mais puros e honestos.
Ainda esperamos a mão que nos beije com o toque da apreciação. Que nos prove o travo de uma cultura ancestral e que se deixe embriagar pela doçura da nossa tradicionalidade.
Sirvo um copo de vinho.
Convido – como o meu avô, antes de mim e como os seus pais, antes dele – para que o bebam. Devagarinho. Provando o beijo do sol sobre as uvas. A gentileza calejada das mãos que as colhem. O toque firme dos pés que as pisam.
Para descobrirem, no sabor aveludado e silvestre, todas as nuances de uma história que não vem nos livros e que faz com que cada homem do campo seja, na verdade, um pilar do nosso Portugal.
Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"
enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com