terça-feira, 6 de junho de 2023

Correiofobia

 


Eu costumava ter medo de aranhas. De largar a mão da minha mãe em espaços abertos. De ser queimada pelo fogo preso durante os espetáculos pirotécnicos. De me esquecer do nome ou da cara das pessoas.

 

Crescer deve ser isto.

 

Ter medo de abrir a caixa do correio.

 

 

 

Desço as escadas aos pulos. Literalmente. Hábito de criança que me ficou. Levo a chave em riste. Uma espécie de espada medieval, pequena e prateada. Cruzo-me com o vizinho do lado e os simpáticos cães. Digo um “boa tarde” corrido. E chego.

 

Frente a frente, encaramo-nos por alguns momentos. O silêncio impera. Há aquela musiquinha de suspense estilo Western Movie. Sei que nos vimos no final da semana passada. Há precisamente quatro dias atrás. Mas é a história do mundo. Tanto, tanto acontece em quatro dias. Aproximo-me. Há o avanço para o toque. Há o toque. O som. O ranger do metal (ou serão os meus dentes?). O vazio. O suspiro.

 

Sorrio. O vazio é o meu estado favorito no que diz respeito à correspondência. Na era do digital ninguém envia cartas a ninguém e, quando envia, é muito raro que seja algo que se queira ler. As nossas relações tórridas por correspondência são hoje para com as empresas dos serviços municipalizados, a segurança social, as finanças e a polícia. Em suma: contas, dívidas e multas. As empresas e o Estado são como aquele familiar que só nos fala quando é para pedir dinheiro.

 

Abrir o correio e não ter lá nada. Esta é a definição de alívio no século XXI. Porque vivemos numa era onde a vida assenta na tentativa e erro. E ai-de-nós que não consigamos entender o português clássico que ainda se usa nas diretivas para o pagamento de todas as dez mil obrigações mensais.

 

Nesta era de correiofobia, os consultores imobiliários são uma espécie de psicoterapeutas de panfleto. Uma sessão sempre que, a par com as ditas contas, dívidas e multas, aparece um papelinho a perguntar se estamos a pensar vender a nossa casa e o número a contactar. Oscila o olhar entre a brochura e as contas. Senhor, com o devido respeito, eu neste momento já estou a pensar vender o corpo às peças para transplantes no mercado negro.

 

 

Ninguém nos disse em crianças que iriamos ter medo do mundano. Também ninguém nos explicou que seriamos explorados até à exaustão e levados a cumprir um regime do impossível, com normas que beneficiam sempre os mesmos.

 

Comentei – num tom de quase-riso nervoso - que fico ansiosa ao abrir o correio. Disse isso a três pessoas diferentes. As três, unanimemente, me disseram que era “normal”.

 

Eu não acho normal. Não acho normal que a política do medo defina os dias. Que atos tão simples quanto abrir o correio causem ansiedade. Mas quem sou eu? As pessoas acham“normal”. Deve ser. É coisa de adulto, dizem.

 

 

 

Crescer deve ser isto.

 

Será que crescer é isto?

 

Gostava de respostas. Que cheguem por email ou comentário. Porque o correio stressa-me.


   Marina Ferraz




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