Ele caminhou sobre a água gélida do meu inferno e veio beijar-me. Primeiro, beijou-me os lábios de pedra, depois o rosto cansado e, por fim, com a subtileza de uma gota de água, escorreu pelo meu corpo desnudo.
Procurava de mim o que não sou para poder roubar-me o que não tenho. Mas eu deixei-o procurar nas entranhas adormecidas do meu sangue de fel.
Tudo o que ele podia levar, já me tinha sido tirado e tudo o que ele me queria dar, eu tinha de sobra. Não havia medo nem ansiedade em mim. Apenas o desapego óbvio de quem já não quer saber. De quem já não guarda o suficiente para poder importar-se.
Mas ele olhou-me nos olhos, tentou perscrutar os sons abafados da agonia da alma e procurar sinais de um coração. E eu encarei-o, frontal e duramente, tentando impedi-lo de entrar nos recantos poeirentos do meu pensamento porque, mesmo não tendo coração, não encontro a paz de não amar.
Por fim, cansou-se. Como se cansaram todos os que vieram antes dele e como se cansarão todos os que vierem depois.
O meu corpo é a prisão da morte que não chega e a alma definha todos os dias na ausência do coração que ofertei. E os meus lábios de pedra são beijados mas não beijam, da mesma forma que os meus olhos fixam mas não vêem.
E ele partiu, como tu, mas sem levar o meu coração. Esse coração que bate, quente e vivo, nas mãos mortais do meu eterno amor, que é teu... apesar de tudo.
Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet