terça-feira, 30 de janeiro de 2024

18 anos

 

 Fotografia de Analua Zoé



Eu fui uma menina com um sonho. Fui. Juro que fui!

 

Podem perguntar à D. Maria dos Anjos, esse anjo da minha primária. Ela viu-me ser. Menina. Com um sonho. Composições feitas com temas diversos, muitas delas com o dedinho mágico de revisão da minha avó, chegavam-lhe às mãos. Algumas falavam da rosa vaidosa que morria e outros da beleza da aldeia e do ruído da cidade. Alguma delas a fez olhar para mim e dizer-me: “um dia, vais ser escritora”. E esse era o sonho. O sonho que ela já tinha ajudado a edificar, pedindo-me para escrever um “i. A letra que definiu toda a minha vida, pondo pontos nos “is” sobre o que eu haveria de ser.

 

Eu fui uma menina com um sonho.

 

Também podem perguntar à minha mãe. A minha mãe contaria a história da tortura. Da criança, de caderno na mão, entrando no meio de toda e qualquer tarefa. “Dá-me um tema” era a minha versão pessoal do “Falta muito para chegar?”. Da criança que continuaria esta trama na adolescência. “Dá-me um tema” Desesperada, a mexer um tacho de arroz com ervilhas e cerca de mil temas depois, ela sugeriria a essa menina de 13 anos que escrevesse sobre ervilhas. Foi o dia em que concluímos que eu escreveria qualquer coisa. Foi o dia em que concluímos que eu não escreveria o expectável sobre qualquer coisa. Foi o dia em que concluímos que eu usaria qualquer coisa para falar da sociedade… e, em particular, ervilhas para falar da pobreza e da falta de oportunidades em regiões rurais.

 

Eu fui uma menina com um sonho.

 

Podem perguntar àquela professora do terceiro ciclo que, lendo-me, me disse que eu não sabia escrever. Mesmo depois de eu ter feito um texto que o meu irmão lera, exclamando a seguir “fogo, isto está mesmo bom!”. Também podem perguntar à minha professora de português do secundário, que leu um romance inteiro escrito à mão, pacientemente, elogiando cada página, se não pela literatura, pelo esforço. Ou a um dos meus explicadores de matemática, que se perdiam nos meus poemas, quando num gesto de ativa fuga aos números, eu os aliciava para as rimas. Entretanto, meu sonho era um cálculo simples… igual a infinito… e o único que aprendi com facilidade.

 

Eu fui uma menina com um sonho. Fui. Juro que fui! Até que, um dia, deixei de ser.

 

 

Em algum momento temos de definir onde começa a linha. Para mim, ela começou quando o meu sonho – esse de escrever – se transformou num objetivo – esse de escrever. Mudar a forma de pensar as coisas muda tudo. E é por isso que considero que o dia em que me sentei para criar este blog, decidindo, finalmente, dar as minhas palavras, não só com adultos significativos mas com o mundo, representa para mim o início de uma carreira como escritora.

 

(Eu sei, muitos vão dizer que não é um blog que representa o começo de uma vida profissional. Mas lembremos a tradição nacional onde muitos políticos traçam o início das suas referências em cursos universitários que nem fizeram.)

 

Eu sou uma mulher com um objetivo.

 

O meu sonho sobreviveu 10 anos sendo apenas isso. O meu objetivo, que o elevou, já tem 18. E, com ele - com o objetivo - defino o começo da carreira que chega, no último dia do mês de janeiro, à maioridade: data que assinala a primeira publicação neste blog.

 

Sobre o blog – que teve 3 nomes e muitos momentos - perguntam-me “porquê kkadreamsland”. Eu fui uma menina com um sonho. Uma menina que ficou conhecida, no seio familiar, como Kekeia, por demorar a dizer “Raquel”, o seu segundo nome. E, quando transformei o meu sonho num objetivo, criei este mundo dos sonhos, condensado em espaço digital, para guardar a menina que foi e a fazer sobreviver às agruras da vida. Não é a Kekeia que vos escreve. Nem é o sonho que alimenta o que me faz autora. Mas a Kekeia e o seu sonho foram a alavanca para o hoje. Deixo que evoluam e se transformem numa Marina e seu objetivo, mas não os esqueço e não os abandono. Alimento-os de memórias e sento-me à mesa nessa refeição. Observamos juntos o futuro e todas as suas possibilidades.

 

Eu fui essa menina. Com esse sonho.

 

Sou esta mulher. Com este objetivo.

 

O meu objetivo faz com que me levante todos os dias. É o causador da maior parte das minhas lágrimas. É o responsável pela maior parte dos meus sorrisos. É o motivo pelo qual espero nunca me reformar. É o motivo pelo qual gostaria de morrer com uma caneta na mão (ou de cabeça tombada sobre o teclado, o que é menos poético, mas mais realista).

 

Se o destino me for favorável, na minha ausência alguém me lerá.

 

Aí terei sido. Menina. Com um sonho. Mulher. Com um objetivo. E… finalmente… palavra. Com uma missão.

 

 Marina Ferraz




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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Paninhos quentes

 


De…va…ga…rinho. O luxo moderno é ter tempo para a diplomacia. Senhores de fortunas injustificáveis têm sempre tempo para os advérbios de modo. Discursam longamente, prolongadamente, polidamente... Cada palavra estudada com cautela, livres de comoção, que as emoções mastigadas podem fazer cáries e importa que o sorriso condiga com o discurso, branco, reluzente, vazio…

 

Colocam-se paninhos quentes sobre os temas mais crus. Números do desemprego limados com as perspetivas de cursos onde a Nova Oportunidade é a velha história da repetição. Guerras trabalhadas em encontros de engravatados, onde se vota quem vive e morre, entre acepipes de coffee break. Glaciares que derretem como o gelo do whiskey nos jatos privados e iates que levam as mesmas gravatas à Cimeira do Clima.

 

A diplomacia está sobrevalorizada. Medem-se pilinhas e palavras. Depuram-se racionalidades, como se as notícias fossem fotos de Instagram e precisassem de filtro. Moderam-se expressões, embacia-se a transparência e declara-se a morte da autenticidade.

 

Aceita-se a inércia. Mascara-se o insulto de cordialidade. Vê-se o mundo avançar para o abismo, mas os pobres vão na linha da frente e a guerra fica a uns milhares de quilómetros valentes dos edifícios estatais onde se discute o material das placas a colocar na autoestrada para o inferno.

 

Peço cordialmente que me permitam a exclamação de um “foda-se!”, antes de perguntar que merda é esta. Perdoem-me a falta de diplomacia, mas o tempo escasseia no mundo de quem não nasceu de cu virado para a Lua. Não tenho tempo - nem tempo nem a paciência - para os paninhos quentes. Não tenho tempo nem paciência para a falsa harmonia que se propaga por entre a trupe das palavras caras. Não tenho tempo nem paciência para a hipocrisia e a formalidade. Tenho pressa de respostas, porque a cada quatro segundos uma pessoa morre de fome no mundo e a cada dez minutos morre uma criança em Gaza…

 

Faço alergia às diplomacias modernas. Coço-as da pele. Paninhos quentes não mudam a sensação de desdém e não tenho paciência para o eufemismo. Entendo que a derradeira prova de riqueza já não é a ganância do dinheiro (mesmo se quem tem milhões sirva apenas os seus próprios interesses em travessa de ouro), é o tempo… Ter tempo para preparar discursos analisados por vinte assessores, que limam palavras como quem trabalha as unhas de gel com extensão, até que tenham mais de plástico do que de orgânico.

 

É assim que ditadores e assassinos são cordialmente apelidados de Senhor Presidente e Senhor Doutor. E é assim que passam mais quatro segundos. Mais dez minutos. E nada muda.

 

Tenho muitos privilégios. Não passo fome. Não estou em Gaza. Mas não tenho tempo para limar discursos. Para mim, um filho da puta com formação e cargo elevado ainda é um filho da puta… e uma guerra não é uma situação desafiante… é uma situação de merda. Talvez esteja na altura de perdermos menos tempo a limpar os discursos para que sejam distintos e mais tempo a distinguir os problemas que importam para que se limpe o mundo.

 

Não tenho paciência nem tempo para os paninhos quentes. Não quando há panos a tapar os corpos frios de gente para quem o tempo acabou.

 

Marina Ferraz




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terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Olheiras de família

 

Fotografia de Ricardo Torb

Herança genética. Ou não. Não sei. Os meus olhos afundam-se frequentemente no meio das olheiras. Ando cansada. Já nem digo que ando cansada. Ando cansada há tanto tempo que suponho que, agora, já é isto que eu sou. Cansada. Com olheiras. Vendo o reflexo delas nas videochamadas com a minha irmã. E encontrando o reflexo delas também no meu irmão, quando tenho a sorte da compatibilidade horária que permite o encontro. E sentindo-as, ainda que menos visíveis, na minha mãe. Sabê-las lá. Encarando o modo como o meu pai as esconde atrás dos óculos, sempre que não os pendura na ponta do nariz para analisar algo com o pormenor da proximidade.

 

Diria, por encontrar auréolas de cansaço em torno dos olhos de todos nós, que nos contagiámos uns aos outros com essa doença altamente infeciosa da atualidade: a falta de tempo para descansar. Mas gosto mais do nosso cansaço do que gosto do dos outros. Gosto de nós como somos. Essas gentes de resmungo fácil, que ainda assim amam com uma complexidade antiga. Tirando mais duas horas ao sono escasso, caso elas possam ser de encontro. Roubando do tempo que não têm para se darem numa chamada, num momento… ou no pensamento calado, quando a distância é muita e a voz já denuncia a falsidade do “estou bem” que sempre dá introdução ao “e tu?”.

 

Olhando dentro dos meus olhos, encontro por vezes até os traços de objetos da família. Como a cafeteira elétrica da minha mãe, que trabalha na perfeição, mas não acende a luz. Escrevendo textos de trabalho. Heroicamente. De sol a sol. Funcionando o melhor possível, mas sem luz nos olhos. Em alguns dias, regresso à menina que fui, pregando pregos numa tábua de madeira na loja de aldeia do meu avô, só porque sim… mas regresso hoje com menos entusiasmo, já que na altura aquela atividade – que hoje certamente seria considerada muito pouco adequada para uma menina de 5 ou 6 anos – me dava uma imensa sensação de realização. E questiono-me, como faz a minha mãe sempre que ajuda a minha irmã a limpar a sala da costura “para que queres tu isto?” e encolho os ombros à minha própria pergunta, tal como a minha irmã faz, tirando o objeto em questão das mãos desfazedoras da nossa progenitora, para o guardar novamente na gaveta dos monos.

 

Os olhos da minha irmã são azuis. Os meus são castanhos. Os do meu irmão são verdes. Parece que os meus pais nos mandaram vir de um catálogo da Robbialac. Mas partilhamos sobrenomes, traumas e olheiras. Todos perdemos a luz dos olhos, às vezes. Mas encontramo-nos. Retomamos o brilho quando nos encontramos. O nosso tempo é o tempo que temos por nosso. E, quando sorrimos uns aos outros, na pequena chamada da tarde, no encontro mensal, nas festividades, há muito mais amor do que olheiras nessa herança que nos distingue e isola dentro do nosso próprio cansaço.

 

Depois de retomada a luz, naquela chamada sem nenhuma razão de existir, senão porque se quer que exista, chegam as piadas desconexas que mais ninguém entenderia – aquelas piadas privadas que vêm de histórias que só têm graça para quem as viveu – e a minha mãe diz “temos muitas histórias”, e a minha irmã acrescenta “tantas, demais”. E eu olho para elas, para os sorrisos delas, que até parecem minorar as olheiras… e digo “muitas, tantas… e nunca serão as suficientes”.

 

Lembramos todas que a herança nos vem de trás. Sem olheiras já. Lugares vazios na mesa onde o cansaço persistia. É uma coisa muito séria, essa do tempo que falta… quando já há todo o tempo do mundo… e cada segundo dele cansa.

 

É uma espécie de herança. Coisa de família. De sangue. De alma. Temos olheiras. Histórias. E muito amor para dar. E olheiras. Olheiras fundas. Círculos negros ao redor dos olhos. Não adianta usar corretor. São olheiras persistentes, que só reduzem quando encontram par numas olheiras iguais. Essas que contam as histórias do amor. Essas que acendem a luz do olhar. Essas que vão escondendo a escuridão do rosto e aquecendo o sorriso. Porque mais importante do que a olheira é o olhar. E o amor nunca é negrume.


Marina Ferraz




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terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Grupos de doações

 

 Fotografia de Pixelkult

Ter coisas incomoda(-me). Este é um conceito estranho. Eu sei. Mas ter coisas incomoda(-me). Como se as divisões fechassem e houvesse um nó na garganta. Uma espécie de sufoco. Paredes que se fecham e reduzem o espaço aos limites do corpo. Apertam o corpo. Esmagam o corpo. Eu não sabia que as coisas que povoam as estantes nos pesavam nos ombros. Mas tenho vindo a descobrir isso, com o tempo. É um incómodo incontornável – que sempre existem objetos de valor emocional que vão ficando - mas é um incómodo real. Maior quando sabemos que o nosso excesso é a falta do outro. Desisti dos monos. Mesmo dos que são “eventualmente úteis”. Se não uso, se não serve, se não têm propósito, gosto de os destinar a outros, que os valorizem, que precisem deles, que não se sintam incomodados, mas antes agraciados por eles. E foi assim, senhoras e senhores, que cheguei a essa grande lavandaria chamada grupos de doações do Facebook.

 

Há quem dê. Há quem peça. Há pessoas que trocam um produto por outro. E depois há a maioria: aqueles que criticam. Criticam os que dão. Criticam os que pedem. Criticam os que trocam. E até criticam os que, como eles, criticam.

 

Vem a pessoa que pede algo para a casa e surgem cem que dizem que o grupo é para doar, não é para pedir. De entre estes, pelo menos metade diz que qualquer dia as pessoas do grupo querem que se lhes mobile a casa inteira. Dessa metade, no mínimo 10% acha por bem responder a pedir um Ferrari vermelho ou algo no mesmo escalão de preço, troçando do pedido e daqueles que, tendo para dar, ofereceram a sua ajuda. É difícil encontrar estes – os que ajudam – no meio dos comentários.

 

Vem alguém que tem produtos alimentares não perecíveis, mas subjugados a prazo de validade caduco. Perguntam se alguém ainda quer, porque não vai usar por este ou aquele motivo. Vem a trupe que critica a dádiva fora de prazo. A trupe que diz que já comeu muita coisa fora de prazo e que não deviam criticar. A trupe que critica essa crítica porque o incentivo ao consumo de produtos fora de prazo é perigoso. E uma alma só que agradece e aceita o produto, com humildade e, possivelmente, medo de ser a próxima vítima das trupes.

 

Chega quem tem artigos danificados. E os mesmos (ou outros) se juntam para reclamar da qualidade da oferta. E os mesmos, ou outros, criticam e envergonham quem dá. Descendo no feed, alguém diz que dá sacos de coisas, mas só a quem levar tudo (provavelmente para desocupar) e vem logo uma horda de gente a reclamar de não poder levar só a peça A, B ou C.

 

Dar já não é fácil. Pedir muito menos. Cada vez mais pessoas optam por fazê-lo de forma anónima. E… adivinhem! Critica-se o anonimato! O que têm estas pessoas a esconder, afinal?

 

Fico atónita a olhar para os grupos de doações, essa lavandaria onde a roupa suja e a lavada vão para a máquina das opiniões em conjunto... Fico atónita. Tanto que, muitas vezes, preciso de parar e pensar o que raio ia publicar à partida. Quando dou conta, eu que me incomodo com estes monos dos quais não preciso e que podem fazer jeito a alguém, dou por mim a escrever um pedido em vez de uma doação: “Há alguém a doar milho para pipocas?”

 

Haverá críticas dos que acham que as pipocas não prestam, que as melhores são com manteiga, salgadas ou doces, que não tarda também têm de dar o bilhete para o cinema e valha-me Nosso Senhor das Longas Metragens…

 

Voltarei. Para ler os comentários. Quando houver pipocas.

 

 Marina Ferraz




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quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

A palavra do ano

 


“Guerra”, “vacina”, “violência doméstica”, “incêndios”, “refugiado” e “corrupção”. Podem parecer palavras feias. São. Feias e feitas. Feitas pela realidade que nos rodeia (e vai matando). Mas também são algumas das palavras que, nos últimos 10 anos, ganharam o título de “palavra do ano” em Portugal.

 

Todos os anos, uma das mais conceituadas casas editoriais do nosso país determina, com base num inquérito, qual a palavra que mais marcou o ano. Não têm sido, globalmente, palavras muito bonitas. Safa-se a “saudade”. Tão lusa. Tão nossa. Essa que carrego comigo. Saudade. De tempos que nunca houve. De tempos em que “amor” era a palavra mãe para todas as outras. De tempos onde “liberdade” significava algo. De tempos onde havia o objetivo comum de criar um mundo com paz… Saudade. Do que nunca foi.

 

Dizem-me, frequentemente, que sou um espaço de negrume. De negrura. Dark. Mórbida. Uma espécie de ponto negro do mundo, que incomoda. Um elemento da família Adams que se perdeu no casting. Nem toda a gente sabe chegar perto e, porque falo baixo, é preciso chegar perto para saber que guardo em mim muitas palavras que nunca seriam a palavra do ano. Algumas por serem doces e leves. Outras por serem agrestes e ofensivas. Muitas porque soam a impropério, na leitura das palavras que marcam uma década de viagem.

 

Quando lancei o meu livro – negro por fora, como eu alegadamente sou por dentro - uma das minhas melhores amigas dedicou algum tempo à contagem de palavras-chave nele contidas. Acontece que, em “[A(MOR]TE)”, as duas palavra mais frequentes eram “vida” e “amor”. “Morte” ocupava o terceiro lugar, ainda que o título a evocasse, saltando da capa escura, no seu brilho de prata.

 

Penso-me como alguém que usa a morte como as linhas dos cadernos pautados. Para escrever a direito, sobre ela, numa corrida intuitiva pelo ponto. E esse ponto: interrogação, exclamação, final. Esse ponto nada mais é do que uma saudação à beleza das coisas. Que estarmos vivos é a minha improbabilidade favorita. E amar é uma espécie em vias de extinção, que crio no cativeiro de mim, para libertar depois, quando se multiplicar.

 

Tenho muitas palavras feias para usar na construção desse jardim de improváveis. Palavras duras e que a sociedade desaprova. E eu quero que a sociedade se f… porque escrevo com o dicionário inteiro, na tentativa de que as palavras incomodem, sem se tornarem palavras do ano. É que existe nas palavras escolhidas - “guerra”, “vacina”, “violência doméstica”, “incêndios”, “refugiado” e “corrupção” – um desapego inerente que eu não quero nas minhas. Porque é fácil esquecer os cadáveres carcomidos pelas palavras, os hematomas rubros e negros, as florestas feitas em cinza e a fome quando as palavras são ditas sós, vazias, sem contexto nem impropério que nos lembre do seu peso.

 

Uso palavras que incomodam e não me incomodam as palavras. Quero agarrar as pessoas pelos ombros e abaná-las até que falem. Que digam asneiras. Que gritem impropérios. Incomodam-me os silêncios. A pacatez. A horda de apáticos que caminha, aceitando que, ano após ano, palavras tristes descrevem como a bondade perdeu mais uma batalha nas guerras do mundo.

 

Todos os anos, uma das mais conceituadas casas editoriais do nosso país determina, com base num inquérito, qual a palavra que mais marcou o ano. Em 2023, a palavra elegida até foi bonita – “professor”. É claro que o motivo da escolha não é necessariamente bom. Bem-vindos a Portugal. Greves sucessivas e problemas intensos no setor da educação colocaram os professores nas bocas do mundo no ano que passou. Mas faço o esforço da desconexão. Tento esquecer, só por alguns minutos, as razões. Escolho achar “professor” uma palavra muito bonita. Agora é pedir à palavra do ano que nos ensine. Para que sejamos pessoas melhores. E a palavra do ano, em 2024 possa ser “felicidade”.


(Eu, por cá, direi a minha quota parte de impropérios, a tentar acordar algumas almas, para trabalharmos juntos num dicionário melhor.)


Marina Ferraz




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