quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

A palavra do ano

 


“Guerra”, “vacina”, “violência doméstica”, “incêndios”, “refugiado” e “corrupção”. Podem parecer palavras feias. São. Feias e feitas. Feitas pela realidade que nos rodeia (e vai matando). Mas também são algumas das palavras que, nos últimos 10 anos, ganharam o título de “palavra do ano” em Portugal.

 

Todos os anos, uma das mais conceituadas casas editoriais do nosso país determina, com base num inquérito, qual a palavra que mais marcou o ano. Não têm sido, globalmente, palavras muito bonitas. Safa-se a “saudade”. Tão lusa. Tão nossa. Essa que carrego comigo. Saudade. De tempos que nunca houve. De tempos em que “amor” era a palavra mãe para todas as outras. De tempos onde “liberdade” significava algo. De tempos onde havia o objetivo comum de criar um mundo com paz… Saudade. Do que nunca foi.

 

Dizem-me, frequentemente, que sou um espaço de negrume. De negrura. Dark. Mórbida. Uma espécie de ponto negro do mundo, que incomoda. Um elemento da família Adams que se perdeu no casting. Nem toda a gente sabe chegar perto e, porque falo baixo, é preciso chegar perto para saber que guardo em mim muitas palavras que nunca seriam a palavra do ano. Algumas por serem doces e leves. Outras por serem agrestes e ofensivas. Muitas porque soam a impropério, na leitura das palavras que marcam uma década de viagem.

 

Quando lancei o meu livro – negro por fora, como eu alegadamente sou por dentro - uma das minhas melhores amigas dedicou algum tempo à contagem de palavras-chave nele contidas. Acontece que, em “[A(MOR]TE)”, as duas palavra mais frequentes eram “vida” e “amor”. “Morte” ocupava o terceiro lugar, ainda que o título a evocasse, saltando da capa escura, no seu brilho de prata.

 

Penso-me como alguém que usa a morte como as linhas dos cadernos pautados. Para escrever a direito, sobre ela, numa corrida intuitiva pelo ponto. E esse ponto: interrogação, exclamação, final. Esse ponto nada mais é do que uma saudação à beleza das coisas. Que estarmos vivos é a minha improbabilidade favorita. E amar é uma espécie em vias de extinção, que crio no cativeiro de mim, para libertar depois, quando se multiplicar.

 

Tenho muitas palavras feias para usar na construção desse jardim de improváveis. Palavras duras e que a sociedade desaprova. E eu quero que a sociedade se f… porque escrevo com o dicionário inteiro, na tentativa de que as palavras incomodem, sem se tornarem palavras do ano. É que existe nas palavras escolhidas - “guerra”, “vacina”, “violência doméstica”, “incêndios”, “refugiado” e “corrupção” – um desapego inerente que eu não quero nas minhas. Porque é fácil esquecer os cadáveres carcomidos pelas palavras, os hematomas rubros e negros, as florestas feitas em cinza e a fome quando as palavras são ditas sós, vazias, sem contexto nem impropério que nos lembre do seu peso.

 

Uso palavras que incomodam e não me incomodam as palavras. Quero agarrar as pessoas pelos ombros e abaná-las até que falem. Que digam asneiras. Que gritem impropérios. Incomodam-me os silêncios. A pacatez. A horda de apáticos que caminha, aceitando que, ano após ano, palavras tristes descrevem como a bondade perdeu mais uma batalha nas guerras do mundo.

 

Todos os anos, uma das mais conceituadas casas editoriais do nosso país determina, com base num inquérito, qual a palavra que mais marcou o ano. Em 2023, a palavra elegida até foi bonita – “professor”. É claro que o motivo da escolha não é necessariamente bom. Bem-vindos a Portugal. Greves sucessivas e problemas intensos no setor da educação colocaram os professores nas bocas do mundo no ano que passou. Mas faço o esforço da desconexão. Tento esquecer, só por alguns minutos, as razões. Escolho achar “professor” uma palavra muito bonita. Agora é pedir à palavra do ano que nos ensine. Para que sejamos pessoas melhores. E a palavra do ano, em 2024 possa ser “felicidade”.


(Eu, por cá, direi a minha quota parte de impropérios, a tentar acordar algumas almas, para trabalharmos juntos num dicionário melhor.)


Marina Ferraz




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2 comentários:

  1. Lucy Galhardo12:47

    Concordo com o que dizes acerca das palavras. Se tu própria!

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  2. Claro que gostei imenso, gosto sempre do que escreves. É uma escrita muito sincera e autêntica e tu sabes, como sabes, que eu adoro tudo o que é autêntico e sincero. Neste caso ainda mais porque foste buscar a palavra professor, palavra do ano, dizem, sem o ser verdadeiramente, porque de facto não tem sido como deveria. E eu, na qualidade de ex-professor, sinto, pressinto, recuso e protesto contra a destruição da escola pública onde me formei e ensinei durante tantos anos. E sim, aposto na próxima, a felicidade que tão bem sugeriste e que eu adoraria que existisse, sem o conseguir. Beijo grande

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