terça-feira, 28 de maio de 2019

Aviso de encerramento




Por motivos de força maior, informa-se que o meu coração fechou para obras. O projeto está a ser financiado por entidades oficiais do Ministério da Providência, pelo que não existe, à data, previsão de reabertura.

Para eventual resolução de problemas emocionais, conflitos sentimentais ou eclosão de sensibilidades, pede-se aos lesados que se dirijam a, literalmente, qualquer outro coração, nesta cidade, nas cidades vizinhas ou até nos países circundantes.

Já assuntos alegadamente pendentes podem ser reencaminhados para entidades divinas ou supremas, na espera de uma resolução mais célere do que a eventual reabertura de portas coronárias.

Uma vez que o coração era, também, espaço de arquivo de documentos sensíveis e de acesso restrito, queremos assegurar todos os seus utilizadores de que os mesmos se encontram em segurança e serão oportunamente destruídos para que nenhum dado confidencial possa ser, de forma involuntária, divulgado.

Relembro que, nos termos do previsto no artigo nº1 do Código Coronário de Junho de 2013, o meu coração está isento de manter um Livro de Reclamações formal. Assim, aqueles que, por motivos pessoais, sintam que o fecho do meu coração possa resultar em danos significativos no decurso do seu quotidiano, podem utilizar as redes sociais para expressar a sua indignação, sendo os murais de Facebook e de Instagram, aparentemente, os locais mais oportunos para a colocação das reclamações, de forma direta ou indireta.

Para todos os seus clientes e amigos, o meu coração manterá publicações regulares nos seus espaços, publicando em blogues, redes sociais e cartas, entre outros meios, aquilo que lhe der na real telha.

Embora de portas fechadas, o meu coração congratula-se de manter um espaço físico, agora em remodelação, e que poderá, eventualmente, no futuro, voltar a ser recetivo a algum tipo de visita ou interação.

Acreditamos que todo o processo em curso é para melhor responder às expetativas de eventuais interessados e promover o bem-estar dos seus trabalhadores e proprietários. Espera-se, no entanto, que o processo seja moroso e, devido aos fundos da Providência, potencialmente mal sucedido.

Agradecendo, desde já, toda a atenção prestada e sem mais assunto, resta apenas pedir, desde já, desculpa por qualquer incómodo causado.






Sigam também o meu instagram, aqui

terça-feira, 21 de maio de 2019

Adio a morte




Adio assim a morte. Com poemas. Adio. A morte. Como se dissesse ao corpo. Espera. Dá lá mais dois batimentos cardíacos. E espera mais um bocadinho. Que eu ainda tenho um romance para acabar.

Adio a morte a olhar para as nossas fotografias antigas. Adio. A morte. Digo-lhe. Vem cá, olha. E enquanto vemos as fotografias, ela distrai-se e esquece-se de que tem de me levar. Passo-lhe os álbuns para as mãos ossudas. É engraçado ver a morte a folhear páginas de amor, com uma expressão esbugalhada nos olhos que não tem. E fingindo que não chora sem lágrimas. Ao lembrar que nos matou antes de me matar. E que está a esquecer-se de me matar porque nos matou.

Adio a morte. Uma espécie de penitência. Obrigo-me a adiar a morte. E quão estranho é que se adie o que se deseja. Mas adio. De pés no mar. Adio a morte, enquanto ela continua a deambular pelo meu passado, sem perceber muito bem como pôde matar-me antes de me parar o coração.

E ela diz-me. Não estás viva. Não estou. Não estás viva mas respiras. Respiro. Vem. Não vou.

E continuamos nesta discussão porque eu não posso morrer. Explico que essa é a minha condenação. E que a condição é esta. Atiro-me aos seus braços num segundo. Mas só depois. Só depois de terminar esse romance que ainda quero escrever. E só quando os olhos cansados e vividos, negros e ternos de uma anciã não forem chorar lágrimas por mim plantadas.

Adio assim a morte. Com amor. Adio. A morte. Como se dissesse aos dias que passam que o calendário ainda tem mais tormentas para me infligir. Olha: ainda não passei fome. Olha: ainda não fui à guerra. Olha: ainda não rasguei a pele nos sulfatos de ansiedade das escarpas poentes.

Nunca ninguém enganou a morte. E, por isso, ela não se apercebe dos enganos na minha voz e continua. Continua a folhear o álbum da história que eu conto em palavras no romance. Cada vez que termina, recomeça, à procura do que ficou por matar.

E ela diz-me. O amor está vivo. Está. Está vivo mas acabou. Acabou. Vem. Não posso.

De tão infrutífera, esta discussão ganha teias de aranha. À noite, cansadas de discutir, eu encosto a cabeça no ombro da morte e vemos juntas passar esse filme sobre tudo o que a minha vida podia ter sido e não foi.

Há lágrimas nos meus olhos e ar nos dela. Eu assoo o nariz e ela relembra o nariz que não tem. Esconde o rosto no manto e rimos as duas. Porque somos eternamente fãs uma da outra e sabemos que só nos temos uma à outra nestas noites frias, onde as fotografias se esquecem e os astros se alinham.

Ela diz-me. Amo-te. Também te amo. Este amor não é o teu maior amor. Talvez seja. Vem. Não, ainda não.

Adio a morte. Com um desprendimento pela vida. E coloco as mãos ao redor de canetas que são histórias e sonhos. Porque sinto culpa no peito, algures entre as costelas e os pulmões. O meu coração é rasgado e trucidado por metralhadoras sem balas. Palavras. Bang. Palavras e mais palavras. Rasgões que também são fotografias de olhos claros.

Ela diz-me. Um dia vens. Vou. Agora? Não. Quando? Quando o romance tiver terminado e a fotografia estiver baça. Quando a esperança se for? Já foi.

Ela parece triste. Triste por ter morto amores e esperanças. E eu abraço-a. Ela não está habituada a abraços. E foge, deixando aberta essa porta feita de batimentos cardíacos.

É assim que eu adio a morte. Amando-a. E convidando-a para que se sente no sofá e sinta. Plenamente. O peso de tudo o que já matou em mim.

A morte vem e volta a partir. Adio a morte. Adio-a, mostrando que a quero. E ela quer que a queira. Mas está a ter dificuldade em encontrar a parte de mim que falta levar…






Sigam também o meu instagram, aqui

terça-feira, 14 de maio de 2019

Divisão de bens




Uma coisa eu sei. A divisão de bens foi-me favorável. Fiquei com a melhor parte. E, se isso servisse de conforto, eu estaria, agora, a rejubilar, comendo nuvens como algodão doce e enchendo de sonhos a barriga infértil. Porque eu não duvido. Nem por um segundo. Eu fiquei a ganhar na divisão de bens.

Algures, enquanto fazias as malas, eu tentava atulhar nelas todos os pedaços de entulho que tinham sobrado de nós, mais o sofá que acabaria por não caber e ficar a manchar-me a sala de raivas. Eu sabia que quanto mais coisas pusesse nos bolsinhos interiores e exteriores dos teus sacos, melhor ficaria a minha vida depois de saíres.

Era como se me apetecesse colocar nos teus caixotes até o ar, que me parecia – e ainda parece – absolutamente impossível de respirar sem que alguma coisa em mim doa. Mas, sem nunca vacilar, eu continuei a colocar neles os livros e as histórias, misturadas com cartas e memórias de um tempo que não devia ter existido.

Vai. Era isso que eu dizia, enquanto as roupas saíam das gavetas e tomavam morada em sacos e malas e malões. Se tens de ir, vai. Mas, por dentro, eu sabia dos futuros fora da mala. Dos futuros fora da caixa. Das mãos que acabariam por me embalar e encaixotar a mim, como se o meu corpo fosse a roupa de uma alma atropelada pelo tempo e desfeita em cacos.

A casa, de cheia que está, é-me vazia. Como o corpo que respira e cujo coração bate. Mas sem razão nenhuma além do hábito. Sim, a casa está habituada a estar cheia, como eu estou habituada a estar viva. Com uma camada de cinza de incenso, depois de arder o fogo-fátuo nos meus cemitérios interiores. A casa está habituada a estar cheia, como eu estou habituada a estar viva. Limpo o pó a ambas, de vez em quando. Mas só mesmo para as visitas.

Mesmo assim, no vazio cheio da casa e na minha sobrevivência sem fogo, eu sei, todos os dias. À medida que te enchia as malas e te via as costas, eu puxei para mim o que havia de melhor. Partindo e repartindo a meu favor, ainda que tentasse que levasses tudo, mais o sofá. Ainda que tentasse que me levasses a mim também, por não querer ficar sem ti.

Talvez por saberes isso - que fiquei com a melhor parte na divisão de bens – inventas na tua cabeça histórias que não te contei. Histórias que só não contei porque não existem. Histórias que não existem porque tu existes.

Mas não te preocupes. Vai lá. Enfia na cabeça as ideias, da mesma forma que eu tentei enfiar uma vida a dois nas tuas malas.

Vai lá. Não incomodo mais. Vai ser feliz. Finge que eu também sou, se isso te der conforto. Inventa-me a companhia que não tenho. Inventa-me o riso que não liberto. Inventa-me a história que te fizer bem.

Vai lá. Não incomodo mais. A sério. Vai. Vai ser feliz. Eu não digo que fiquei com a melhor parte na divisão de bens porque tivesse ficado com o melhor futuro. Digo-o só porque fiquei com a gata.





Sigam também o meu instagram, aqui

terça-feira, 7 de maio de 2019

Café de Lua




O meu café anoiteceu. Em todo o seu sentir crescente, o meu café achava que a noite era o espaço comandado entre a profusão de músicas e a dança de corpos. O meu café era louco. Então, saía. E deixava-se sorver nos lábios sedentos de vida.

Mas o café que anoitecia chegava sempre à conclusão de que as amadas e excitantes noites de sativa e ópio não chegavam para adoçar a amargura. E por isso o meu café, que bebia pela manhã, anoitecia crescente só nas ideias insaborosas da possibilidade.

Era um café levado para a cama e bebido com esperança. Porque havia a esperança de se beber, na cama, o café que anoitecia, logo pela manhã.

Tão pleno de esperança estava que, um dia, foi como se o meu café anoitecesse cheio. Um luar todo preenchido, repleto dos sonhos e dos feitiços que eu nunca tinha feito.

O lugar da felicidade, nessa chávena de café que me anoitecia, era simplesmente o Espaço. Sem um único limite no seu redor. “Será que pode ser sempre assim?”. Não poderia ser de outra maneira.

O café era cheio. E notívago. Gostava de passeios noturnos pela serra e junto ao mar. Se sentia frio, tinha um abraço de permeio. Sim. Era um café quente e doce, que se mesclava na perfeição com o leito da vida e a partilha dos fluídos corporais.

Mas um café que adormece cheio, às vezes anoitece minguante. O meu café minguante acordava de mau humor. E discutia sobre tudo, com tudo, sobretudo comigo. Não havia muita felicidade no café que anoitecia e minguava até que as lágrimas o salgassem.

O café minguante, anoitecia de lua. Pouco ou nada havia que se fizesse para o adoçar. Tudo o que não era açúcar a menos, era açúcar a mais. E as natas causavam dano. E o leite causava náusea. E a esperança estava azeda e transbordava como fel.

O café minguante deu muitas noites de insónia em que se fingia dormir. Ainda com a memória de luas mais cheias e de cafés mais plenos e encorpados, criava-se um fosso no meio da cama, onde novas plantações poderiam ser feitas e novo café poderia vir, quando fosse época das colheitas. A colheita não veio e o fosso não ficou. Em vez disso, ficou meia cama vazia, num café novo, que anoitecia, desaparecendo.

O meu café anoiteceu novo. Era tudo novo. Feito de uma ausência tão plena que pouco importava se estava amargo, queimado ou com um leve travo a anteontem.

No centro das minhas mãos, nem a chávena aquece o frio da vida. Nem o açúcar aumenta a sua acidez amarga. Nem a cafeína me acorda do pesadelo.

O meu café anoiteceu. Anima-me o corpo que nunca se anima. E aquece-me a esperança que nunca esfriou. Só que o corpo é débil e a esperança é parca. E o café é depressão líquida e escura, qual abismo para a memória que se quer largar.

O meu café anoiteceu. Bebo-o para sobreviver. No dia em que ele me amanheça, talvez durma mais. Talvez para sempre.






Sigam também o meu instagram, aqui

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Contestação


Autor da foto: Miguel Pião


Eles contestavam tudo. Até a contestação em si. Concordavam só com o desacordo e, mesmo aí, optavam por acautelar fogos de batalha de volta em vez, apenas para que não se dissesse que concordavam com alguma coisa. Não, eles não queriam concordar. Queriam bater-se, eternamente, inimigos. Mas também a isso diziam que não. Porque admitirem que se odiavam era, de alguma forma, sugerir que tivessem o ódio em comum. E não havia nada em comum entre eles.

Ele era símbolo de desapego. E ela dona da tenacidade. Ele, amante da rotina. Ela, senhora da inconstância. Se, de manhã, ele programava o horário; ela atirava-se às ruas. O lema dele era “prevenir”. O dela era “arriscar”. Quando amava, ele amava com peso e medida, até que outra porta se abrisse. Quando amava, ela queria a loucura de rebolões no colchão até cair da cama, e era para sempre.

Se tinham algo em comum – o que negavam – era apenas o facto de não terem nada em comum. Ele adorava cães, pela sua cumplicidade. Ela adorava gatos, porque lhes admirava a independência.

O passaporte dela devia ter tantos carimbos como o ticket de supermercado dele. E, à medida que ele listava nomes de amantes de passagem, ela somava um ou dois casos de fogo-fátuo. Mortos, é verdade, mas ardentes e inesquecíveis.

Numa noite de copos, ele tinha bebido duas cervejas, uma tequila e dois shots de absinto. Por esta ordem, já que todos sabem que, quando é para beber, o melhor para evitar a ressaca é avançar de bebidas fracas para as fortes. Ela tinha mandado a contagem para um lugar de palavras asneirentas e intercalara o que viera à mão. Ambos ébrios de bebida e cansaço, dançaram – com outras pessoas, evidentemente – a noite inteira, sem sequer se cruzarem.

Acabaram por chocar no centro da pista. Onde resmungaram por se verem. Sobre a maneira como o outro se movia. Sobre o estado parcialmente alterado do outro. E sobre a potencial teoria de que a Terra seja, afinal, plana.

Plano era o colchão em que se atiraram. E onde embateram um contra o outro, numa paixão de ódio desmedido. Acordaram abraçados. Ele desapegou-se da ideia do ódio. Ela pintou-o de forma tenaz, por impulso. Ele, fez dela rotina. Ela deu o nome dele às ruas. Ele preveniu-se de a perder. Ela arriscou apaixonar-se por ele. Ela foi a porta aberta dele. E ele a eternidade dela.

Ainda zonzos da bebida e da partilha dos corpos, nunca entenderam muito bem o que se passara. Desacordaram também sobre isso, tantas vezes que, entretanto, começam a surgir rugas e cabelos brancos no seu amor.

Dizem pelas ruas que eles não vai funcionar e eles concordam. Mas os gatos no parapeito parecem gostar de caçar a cauda dançante do cão dele. E ainda somam carimbos nos passaportes e no ticket de supermercado. Contestam a contestação. E discutem com frequência. Beijam-se a seguir. Fazem as pazes, despindo roupas e preconceitos.

Às vezes, precisam de um copo para superar o toque dos dedos da raiva quando discordam. Brindam antes de beber. Olhos nos olhos. E, embora não o admitam, não sabem viver sem o outro estar lá.






Sigam também o meu instagram, aqui