Autor da foto: Miguel Pião
Eles contestavam tudo. Até a contestação em si. Concordavam
só com o desacordo e, mesmo aí, optavam por acautelar fogos de batalha de volta
em vez, apenas para que não se dissesse que concordavam com alguma coisa. Não,
eles não queriam concordar. Queriam bater-se, eternamente, inimigos. Mas também
a isso diziam que não. Porque admitirem que se odiavam era, de alguma forma,
sugerir que tivessem o ódio em comum. E não havia nada em comum entre eles.
Ele era símbolo de desapego. E ela dona da tenacidade. Ele,
amante da rotina. Ela, senhora da inconstância. Se, de manhã, ele programava o
horário; ela atirava-se às ruas. O lema dele era “prevenir”. O dela era
“arriscar”. Quando amava, ele amava com peso e medida, até que outra porta se
abrisse. Quando amava, ela queria a loucura de rebolões no colchão até cair da
cama, e era para sempre.
Se tinham algo em comum – o que negavam – era apenas o facto
de não terem nada em comum. Ele adorava cães, pela sua cumplicidade. Ela
adorava gatos, porque lhes admirava a independência.
O passaporte dela devia ter tantos carimbos como o ticket de
supermercado dele. E, à medida que ele listava nomes de amantes de passagem,
ela somava um ou dois casos de fogo-fátuo. Mortos, é verdade, mas ardentes e
inesquecíveis.
Numa noite de copos, ele tinha bebido duas cervejas, uma
tequila e dois shots de absinto. Por esta ordem, já que todos sabem que, quando
é para beber, o melhor para evitar a ressaca é avançar de bebidas fracas para
as fortes. Ela tinha mandado a contagem para um lugar de palavras asneirentas e
intercalara o que viera à mão. Ambos ébrios de bebida e cansaço, dançaram – com
outras pessoas, evidentemente – a noite inteira, sem sequer se cruzarem.
Acabaram por chocar no centro da pista. Onde resmungaram por
se verem. Sobre a maneira como o outro se movia. Sobre o estado parcialmente
alterado do outro. E sobre a potencial teoria de que a Terra seja, afinal,
plana.
Plano era o colchão em que se atiraram. E onde embateram um
contra o outro, numa paixão de ódio desmedido. Acordaram abraçados. Ele
desapegou-se da ideia do ódio. Ela pintou-o de forma tenaz, por impulso. Ele,
fez dela rotina. Ela deu o nome dele às ruas. Ele preveniu-se de a perder. Ela
arriscou apaixonar-se por ele. Ela foi a porta aberta dele. E ele a eternidade
dela.
Ainda zonzos da bebida e da partilha dos corpos, nunca
entenderam muito bem o que se passara. Desacordaram também sobre isso, tantas
vezes que, entretanto, começam a surgir rugas e cabelos brancos no seu amor.
Dizem pelas ruas que eles não vai funcionar e eles
concordam. Mas os gatos no parapeito parecem gostar de caçar a cauda dançante
do cão dele. E ainda somam carimbos nos passaportes e no ticket de
supermercado. Contestam a contestação. E discutem com frequência. Beijam-se a
seguir. Fazem as pazes, despindo roupas e preconceitos.
Às vezes, precisam de um copo para superar o toque dos dedos
da raiva quando discordam. Brindam antes de beber. Olhos nos olhos. E, embora
não o admitam, não sabem viver sem o outro estar lá.
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