terça-feira, 14 de maio de 2019

Divisão de bens




Uma coisa eu sei. A divisão de bens foi-me favorável. Fiquei com a melhor parte. E, se isso servisse de conforto, eu estaria, agora, a rejubilar, comendo nuvens como algodão doce e enchendo de sonhos a barriga infértil. Porque eu não duvido. Nem por um segundo. Eu fiquei a ganhar na divisão de bens.

Algures, enquanto fazias as malas, eu tentava atulhar nelas todos os pedaços de entulho que tinham sobrado de nós, mais o sofá que acabaria por não caber e ficar a manchar-me a sala de raivas. Eu sabia que quanto mais coisas pusesse nos bolsinhos interiores e exteriores dos teus sacos, melhor ficaria a minha vida depois de saíres.

Era como se me apetecesse colocar nos teus caixotes até o ar, que me parecia – e ainda parece – absolutamente impossível de respirar sem que alguma coisa em mim doa. Mas, sem nunca vacilar, eu continuei a colocar neles os livros e as histórias, misturadas com cartas e memórias de um tempo que não devia ter existido.

Vai. Era isso que eu dizia, enquanto as roupas saíam das gavetas e tomavam morada em sacos e malas e malões. Se tens de ir, vai. Mas, por dentro, eu sabia dos futuros fora da mala. Dos futuros fora da caixa. Das mãos que acabariam por me embalar e encaixotar a mim, como se o meu corpo fosse a roupa de uma alma atropelada pelo tempo e desfeita em cacos.

A casa, de cheia que está, é-me vazia. Como o corpo que respira e cujo coração bate. Mas sem razão nenhuma além do hábito. Sim, a casa está habituada a estar cheia, como eu estou habituada a estar viva. Com uma camada de cinza de incenso, depois de arder o fogo-fátuo nos meus cemitérios interiores. A casa está habituada a estar cheia, como eu estou habituada a estar viva. Limpo o pó a ambas, de vez em quando. Mas só mesmo para as visitas.

Mesmo assim, no vazio cheio da casa e na minha sobrevivência sem fogo, eu sei, todos os dias. À medida que te enchia as malas e te via as costas, eu puxei para mim o que havia de melhor. Partindo e repartindo a meu favor, ainda que tentasse que levasses tudo, mais o sofá. Ainda que tentasse que me levasses a mim também, por não querer ficar sem ti.

Talvez por saberes isso - que fiquei com a melhor parte na divisão de bens – inventas na tua cabeça histórias que não te contei. Histórias que só não contei porque não existem. Histórias que não existem porque tu existes.

Mas não te preocupes. Vai lá. Enfia na cabeça as ideias, da mesma forma que eu tentei enfiar uma vida a dois nas tuas malas.

Vai lá. Não incomodo mais. Vai ser feliz. Finge que eu também sou, se isso te der conforto. Inventa-me a companhia que não tenho. Inventa-me o riso que não liberto. Inventa-me a história que te fizer bem.

Vai lá. Não incomodo mais. A sério. Vai. Vai ser feliz. Eu não digo que fiquei com a melhor parte na divisão de bens porque tivesse ficado com o melhor futuro. Digo-o só porque fiquei com a gata.





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