Uma coisa eu sei. A divisão de bens foi-me favorável. Fiquei
com a melhor parte. E, se isso servisse de conforto, eu estaria, agora, a
rejubilar, comendo nuvens como algodão doce e enchendo de sonhos a barriga
infértil. Porque eu não duvido. Nem por um segundo. Eu fiquei a ganhar na
divisão de bens.
Algures, enquanto fazias as malas, eu tentava atulhar nelas
todos os pedaços de entulho que tinham sobrado de nós, mais o sofá que acabaria
por não caber e ficar a manchar-me a sala de raivas. Eu sabia que quanto mais
coisas pusesse nos bolsinhos interiores e exteriores dos teus sacos, melhor
ficaria a minha vida depois de saíres.
Era como se me apetecesse colocar nos teus caixotes até o
ar, que me parecia – e ainda parece – absolutamente impossível de respirar sem
que alguma coisa em mim doa. Mas, sem nunca vacilar, eu continuei a colocar
neles os livros e as histórias, misturadas com cartas e memórias de um tempo
que não devia ter existido.
Vai. Era isso que eu dizia, enquanto as roupas saíam das
gavetas e tomavam morada em sacos e malas e malões. Se tens de ir, vai. Mas,
por dentro, eu sabia dos futuros fora da mala. Dos futuros fora da caixa. Das
mãos que acabariam por me embalar e encaixotar a mim, como se o meu corpo fosse
a roupa de uma alma atropelada pelo tempo e desfeita em cacos.
A casa, de cheia que está, é-me vazia. Como o corpo que
respira e cujo coração bate. Mas sem razão nenhuma além do hábito. Sim, a casa
está habituada a estar cheia, como eu estou habituada a estar viva. Com uma
camada de cinza de incenso, depois de arder o fogo-fátuo nos meus cemitérios
interiores. A casa está habituada a estar cheia, como eu estou habituada a
estar viva. Limpo o pó a ambas, de vez em quando. Mas só mesmo para as visitas.
Mesmo assim, no vazio cheio da casa e na minha sobrevivência
sem fogo, eu sei, todos os dias. À medida que te enchia as malas e te via as
costas, eu puxei para mim o que havia de melhor. Partindo e repartindo a meu
favor, ainda que tentasse que levasses tudo, mais o sofá. Ainda que tentasse
que me levasses a mim também, por não querer ficar sem ti.
Talvez por saberes isso - que fiquei com a melhor parte na
divisão de bens – inventas na tua cabeça histórias que não te contei. Histórias
que só não contei porque não existem. Histórias que não existem porque tu
existes.
Mas não te preocupes. Vai lá. Enfia na cabeça as ideias, da
mesma forma que eu tentei enfiar uma vida a dois nas tuas malas.
Vai lá. Não incomodo mais. Vai ser feliz. Finge que eu
também sou, se isso te der conforto. Inventa-me a companhia que não tenho.
Inventa-me o riso que não liberto. Inventa-me a história que te fizer bem.
Vai lá. Não incomodo mais. A sério. Vai. Vai ser feliz. Eu
não digo que fiquei com a melhor parte na divisão de bens porque tivesse ficado
com o melhor futuro. Digo-o só porque fiquei com a gata.
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