quarta-feira, 27 de abril de 2016

Amar um monstro


Não digas a ninguém que me amas. As pessoas não vão entender, como também eu não entendo. Não digas a ninguém que me amas.

Trago nas mãos. Nas mesmas mãos que demos e onde dedos se enlaçaram. Trago nelas o vazio. E o sabor salgado dos teus lábios, guardo-o nos recantos poeirentos dos meus, enxutos de paixão e de fé. A palavra amor ainda ecoa. Sórdida. Inesperada. Acidental. Falaste-me de amor.  Porquê? Não devias ter-me dito. Não devias ter dito a ninguém.

Tínhamos a aceitação. Tu fingias não ver o monstro sob a minha pele. Eu fingia que podia sentir de forma casual a partilha dos momentos. E era na aceitação que bebíamos a esperança de que amanhã pudéssemos ainda encontrar-nos pelas ruas e selar beijos escondidos da multidão. Traíste-me. Falaste de amor. E acabou. Porque não havia amor. Havia apenas ilusão e mentira. E um monstro, que era eu. E uma pessoa, que eras tu. Ninguém pode amar um monstro.

Amor. As tuas palavras despidas. Despidas até ao tutano da alma. Despojadas de tudo o que a palavra amor deve ter. E as minhas palavras. Iguais. Reais. Assustadoras. Não. Quem me dera que nunca tivéssemos falado de amor. Quem me dera que tivéssemos tido a força de saber que as regras fundamentais do mundo não podem ser quebradas, nem mesmo por nós.

Palavras. São só palavras. Mas as palavras são sempre algo mais. Não digas a ninguém que me amas. Dá às gentes o silêncio que, em vez de ti, hoje me beija. Não digas. Não digas a ninguém essas palavras. Não digas a ninguém que me amas.

No lugar de mim, está a dor. No lugar de ti, a ausência. No lugar de nós, o riso desvairado da multidão.  Não lhes digas. Não lhes digas que me amas. Que me amaste. Não fales de amor.

Desassossega-me o olhar furtivo lançado ao vidro fosco da parede da minha memória. Qual espelho, reflete-se nele a minha mágoa. Reflete-se nele a história. E é como se não existíssemos. Como se fossemos esse amor que anunciaste, de forma fortuita e vazia. Há somente pedras quebradas no chão da minha esperança. E a certeza de que nunca poderia ter acreditado num amor assim.

Não digas a ninguém que me amas. Faz do coração bandeira e do amor segredo. Não digas a ninguém que me amas. É melhor assim.

Amor. Palavra solta. Vazia. Usada para dar  ao sonho gasto a ilusão do que não é. Por que razão falarias de amor? O meu rosto desfigurado das lágrimas não despertaria sentidos em nenhum universo de compaixão. E, se sou indigna do amor de alguém, que razão louca poderia, alguma vez, fazer-me merecer o teu? Logo o teu, que és único no universo e, simultaneamente, o universo inteiro. Não mereço o teu amor. Não mo dediques. Mas, principalmente, se o sentires, não fales dele. Deixa-o amornecer num qualquer canto silencioso de ti.

Não digas a ninguém que me amas. Nem mesmo a mim. Nunca mais. Não o digas! Afinal... por que razão dirias? Não sou digna de amor. Não! Não digas a ninguém que me amas. O meu sorriso não é motivo que te valha a mentira. Guarda-a para ti. Incapaz de a esquecer, eu vou abraçá-la com carinho. Até dormir. Até morrer. Mas não digas a ninguém que me amas. Ninguém pode amar um monstro.

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet

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terça-feira, 19 de abril de 2016

Retoques


A mulher entrou. E era lindíssima. Mas o mundo não a via.

Com uma voz temerosa, apresentou a decisão: "Quero abandonar o que é único e selvagem em mim... preciso de uma vida mais fácil".

Sorriram. Sorrisos de plástico. Todos iguais. Anuindo. Como os cachorrinhos de plástico nas bagageiras dos carros. Entusiasticamente. Disseram-lhe: "Apenas alguns retoques e será perfeita". Por um preço. Ela queria pagar o preço. A invisibilidade pesava-lhe nas costas como um tormento de muitas eras.

Retoques.

Começaram pelas roupas. Despiram-na. Mas não a despiram apenas de roupa. Tiraram-lhe a gordura das ancas, da barriga, das nádegas, das coxas. Sugaram-na por tubos e tubinhos. Encheram-lhe os lábios e os peitos. Atenuaram os traços das rugas junto aos olhos, junto aos lábios.
Esticaram-lhe a pele. Corrigiram-lhe a miopia. Partiram-lhe os óculos e deitaram-nos fora. Mas olhos negros como os dela ficavam pesados numa mulher. Puseram-lhe lentes. De cor. Azuis.

Retoques.

Levaram-na para uma sala. Pintaram-lhe o cabelo. Esticaram-lhe o cabelo. Amaciaram-lhe o cabelo. Hidrataram-lhe o cabelo. Desfrisaram-lhe o cabelo. Fizeram-lhe madeixas no cabelo. Estipularam o lugar onde devia surgir uma ocasional onda no cabelo. Domaram-lhe o cabelo.
Aproximaram os lasers. Livraram-se dos pelos. Que chatice, uma mulher ter pelos onde devia ter apenas pele. Não há espaço para pelos na perfeição. Fizeram-lhe o buço. E as axilas. E as pernas. E as virilhas. E as zonas intimas.

Retoques.

Pintaram-lhe a pele esticada. Com pré-bases e bases e pós bases e pós para depois das pós-bases. Pós soltos. Pós compactos. Pós do tom da pele. Pós bronzeadores. Blushes. E puseram-lhe pestanas falsas. Arrancaram metade das sobrancelhas. Pintaram as sobrancelhas. Pintaram as falhas por entre as sobrancelhas. Maquilharam-lhe os olhos, agora azuis: sombras sobrepostas, esfumadas, esbatidas, aperfeiçoadas. Eyeliner. Máscara de Pestanas.
E nos lábios. Batom. Vermelho carmim, feito dentro da linha perfeita - também vermelha - sobreposto com uma camada de brilho voluptuoso.

Retoques

Vestiram-na com roupa justa, adequada ao novo corpo, ao novo look, ao novo penteado, à nova maquilhagem.

"Já sou perfeita?", perguntou, olhando para si. E a resposta foi rápida: "Apenas mais um retoque e será".

Retoques.

Tiraram-lhe o cérebro. Silenciaram-lhe a voz. Programaram-na para anuir. Tornaram-na portadora do "sim" perpétuo, fosse qual fosse a pergunta. E, de olhos presos no infinito do espelho, ela soube que tinha conseguido.

O autómato saiu. Agora, era perfeito. O mundo aplaudiu.

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet

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quarta-feira, 13 de abril de 2016

Espelho meu


Se não fosses tão bonita, encontrarias no caminho das flores os espinhos e, nas ruas da fidelidade, os contornos da dor pejados de crueza.
Se não fosses tão bonita: Em vez de sorrisos, pedras. Em vez de palavras, silêncios. E tropeços. E rasteiras. Pedaços reiterados de injustiça nos jardins da serenidade.
Se não fosses tão bonita. Mancharia a pele branca o negro da mácula e trarias sob o olhar a insónia tatuada das noites choradas.
Se não fosses tão bonita: solidão de fel na promessa de alguém. A pessoa que diz que vem e não chega. Aquela que chega e te rasga a fé. Aquela que vai e te rasga a alma. Pedaços de lâmina entre as pulsações, cortando o peito por dentro. Palavras de desagrado, mentidas, oleadas nas mãos secas da desumanidade.
Se não fosses tão bonita, olharias o horizonte para descobrir a parede de betão e concreto. Cada passo seria a luta de uma eternidade. Um avanço duro, esgotado de forças, esgotado de ti. E o sangue nas mãos que embatem contra o destino que se não move. Fumo em vez de nuvens. Penhascos em vez de céu.
Espelho meu, espelho meu. Se não fosses tão bonita. Nas tuas palavras de atrito. No teu pensamento interrogativo. Na tua forma de ver o mundo. Se não fosses tão bonita. Na brusquidão da tua sinceridade. No erguer do sobrolho da tua inquietude. Na profundeza da tua mente irrequieta. Nas tuas perguntas dispersas, que descentram os limites e incomodam as pessoas. Se não fosses tão bonita...
Amei-te a alma. Lá, no jardim dos espinhos. Por entre as pedras, e os silêncios, e os penhascos. Espelho meu, espelho meu. Um medo que atordoa. Um pensamento que mói. E plantei flores no jardim da mágoa, construí muralhas com as pedras do caminho, cantei canções nos silêncios ancorados do mundo. Dos penhascos fiz asas. Dos espinhos fiz armas. Não sabia que serias tão bonita.
Espelho meu, espelho meu. Pela beleza do teu rosto que te suaviza a rudeza das palavras. Pela leveza do teu corpo que emerge as noções do teu questionamento. Pela forma ténue dos movimentos que agradam mesmo aos pobres de espírito. Sou eternamente grata aos Deuses.
O mundo que embateu contra mim, embala-te. As pessoas que me pisaram, elevam-te. O mundo que me destruiu, coroa-te. Mas ainda és espelho de mim. Não te perdeste no embalo do mundo nem te iludiste com a realeza das vénias.
Se não fosses tão bonita... o mundo seria diferente se não fosses tão bonita. Mas tu não. Tu serias igual. E ainda terias as asas, e a música, e a muralha. Ainda terias um jardim de flores plantadas. E ainda me terias ao lado, empunhando as armas de espinhos. Chegarias ao horizonte. Nem que te levasse ao colo.
Espelho meu, espelho meu: se não fosses tão bonita, ainda serias o meu mundo.

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet

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quarta-feira, 6 de abril de 2016

A feira dos enganos


"Vendo verdades por 5 cêntimos. Preço por palavra." Era o que dizia o letreiro. Mesmo à frente da banca vazia. Mesmo à frente da rapariga de olhar realista e duro. De braços cruzados. Semblante firme, desencantado com a vida. Tinha ar de pessoa que conhecia o mundo. E, à sua frente, o letreiro. Um letreiro onde se lia: "vendo verdades por 5 cêntimos. Preço por palavra.".

Mas ninguém se aproximava dela. Embora fosse bonita. Se lhe dissessem que o era, provavelmente diria apenas que a beleza era um conceito inexistente, feito e formatado para integrar padrões irrealistas e fazer as pessoas gastar fortunas à procura do ideal  da perfeição. Ninguém lhe dizia que era bonita. Ninguém se aproximava dela ou da banca onde permanecia, vendendo verdades.

Quando começara a vender verdades, tinha vendido uma ou duas. Tinha vendido a alguns depressivos, presos em relacionamentos abusivos ou sem amor, a noção de que tinham duas pernas e desculpas demais. Tinha vendido a alguns famosos a ideia de que, no prazo de dez anos, ninguém saberia quem eram. Tinha vendido a algumas beatas a ideia de que não importava quantas promessas faziam e cumpriam, nem quantos Domingos passavam a murmurar orações na igreja, se a seguir tricotavam e vestiam nos becos das ruas alguns dos traços mais desprezíveis da humanidade.

Fizera poucas vendas. Todas repletas de qualidade. Mas poucas. E pouco importava a qualidade do produto que vendia. Ninguém gostava dele. A verdade estava para as palavras como os brócolos estavam para os legumes. Não importava quão bons fossem, a grande maioria das pessoas seria sempre, de alguma forma, intolerante a eles.

Ela continuava lá. De braços cruzados. Na feira. À espera do cliente que não vinha. E ela sabia que não vinha. Nem dizia a si própria outra coisa. Sabia que ia levantar-se da cama. Abrir a banca. Esperar pela hora do fecho. Sem uma venda. Nem uma sequer. Levantava-se apenas para colocar o letreiro e o retirar. O letreiro onde se lia: "vendo verdades por 5 cêntimos. Preço por palavra.".

A feira tinha a abertura e o fecho. A banca estava vazia. A feira enchia e esvaziava. A banca estava vazia. E, na banca vazia, ela estava cheia de verdades para dizer. Mas ninguém queria ouvi-las.

Ao seu lado, outra banca. A fila alongando-se por metros e metros. As pessoas expectantes. Mesmo ao pé da banca vazia, que ignoravam. Alinhavam-se, em filas mais ou menos coordenadas. Com risinhos e conversas fúteis. Aguardando pela vez. Ao lado da banca vazia da rapariga das verdades, estava a  mais popular da feira. Sempre cheia. Da abertura ao fecho. Também tinha um letreiro. O letreiro dizia "Vendo mentiras bonitas a  10 cêntimos por palavra.".

Marina Ferraz



*Imagem retirada da Internet

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