A mulher entrou. E era lindíssima. Mas o mundo não a via.
Com uma voz temerosa, apresentou a decisão: "Quero
abandonar o que é único e selvagem em mim... preciso de uma vida mais
fácil".
Sorriram. Sorrisos de plástico. Todos iguais. Anuindo. Como
os cachorrinhos de plástico nas bagageiras dos carros. Entusiasticamente. Disseram-lhe:
"Apenas alguns retoques e será perfeita". Por um preço. Ela queria
pagar o preço. A invisibilidade pesava-lhe nas costas como um tormento de
muitas eras.
Retoques.
Começaram pelas roupas. Despiram-na. Mas não a despiram
apenas de roupa. Tiraram-lhe a gordura das ancas, da barriga, das nádegas, das
coxas. Sugaram-na por tubos e tubinhos. Encheram-lhe os lábios e os peitos.
Atenuaram os traços das rugas junto aos olhos, junto aos lábios.
Esticaram-lhe a pele. Corrigiram-lhe a miopia. Partiram-lhe
os óculos e deitaram-nos fora. Mas olhos negros como os dela ficavam pesados
numa mulher. Puseram-lhe lentes. De cor. Azuis.
Retoques.
Levaram-na para uma sala. Pintaram-lhe o cabelo.
Esticaram-lhe o cabelo. Amaciaram-lhe o cabelo. Hidrataram-lhe o cabelo.
Desfrisaram-lhe o cabelo. Fizeram-lhe madeixas no cabelo. Estipularam o lugar
onde devia surgir uma ocasional onda no cabelo. Domaram-lhe o cabelo.
Aproximaram os lasers. Livraram-se dos pelos. Que chatice,
uma mulher ter pelos onde devia ter apenas pele. Não há espaço para pelos na
perfeição. Fizeram-lhe o buço. E as axilas. E as pernas. E as virilhas. E as
zonas intimas.
Retoques.
Pintaram-lhe a pele esticada. Com pré-bases e bases e pós
bases e pós para depois das pós-bases. Pós soltos. Pós compactos. Pós do tom da
pele. Pós bronzeadores. Blushes. E puseram-lhe pestanas falsas. Arrancaram
metade das sobrancelhas. Pintaram as sobrancelhas. Pintaram as falhas por entre
as sobrancelhas. Maquilharam-lhe os olhos, agora azuis: sombras sobrepostas,
esfumadas, esbatidas, aperfeiçoadas. Eyeliner. Máscara de Pestanas.
E nos lábios. Batom. Vermelho carmim, feito dentro da linha
perfeita - também vermelha - sobreposto com uma camada de brilho voluptuoso.
Retoques
Vestiram-na com roupa justa, adequada ao novo corpo, ao novo
look, ao novo penteado, à nova maquilhagem.
"Já sou perfeita?", perguntou, olhando para si. E
a resposta foi rápida: "Apenas mais um retoque e será".
Retoques.
Tiraram-lhe o cérebro. Silenciaram-lhe a voz. Programaram-na
para anuir. Tornaram-na portadora do "sim" perpétuo, fosse qual fosse
a pergunta. E, de olhos presos no infinito do espelho, ela soube que tinha
conseguido.
O autómato saiu. Agora, era perfeito. O mundo aplaudiu.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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Nossa,não sei o que dizer desse texto *0* é incrível,verdadeiro e é uma lição que todos deveriam ler.As pessoas mascaram a própria alma pelo que entendem ser perfeição.Já dizia Renato Russo "Vamos celebrar Eros e Thanatos
ResponderEliminarPersephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade."
Enfim,ficou incrível,parabéns :D
Beijinhos,Jenny ^.^