terça-feira, 10 de setembro de 2024

Conjuntura planetária

 

Fotografia de pt_astrophoto


Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados!

  

Não percebo muito de astrologia. Mas isto eu sei! Na astrologia existe um fenómeno. Planetas retrógrados. Fala-se deles quando, olhando o céu, observamos que esses planetas fazem um movimento contrário ao expectável, andando para trás. Calma! Eles não andam para trás. Mas a Terra move-se e faz com que pareça assim. E, de repente, a conjuntura mais propícia à Lei de Murphy parece abater-se sobre os humanos. Apesar de o planeta mais próximo estar a cerca de 40 milhões de quilómetros de distância.

 

Bem mais perto, andar para trás não é ilusão de ótica, mas ciclo. Caixinhas e caixinhas e mais caixinhas, onde se enfiam seres humanos com base no género, na sexualidade, na cor da pele e na conta bancária. Divisões que separam norte e sul. Que decidem quem vive ou morre. Que colocam a barra do sofrimento em patamares incomparáveis, enquanto as florestas são regadas com água do mar e chuva ácida. Para que um dia o ar escasseie e sobreviva só quem o engarrafou... Tento explicar que o que me importa são as pessoas. O resto são saliências, orifícios, melanina e casualidade.

 

Querem saber em que caixa estou. E eu quero estar fora da caixa. Sem saberem que uniforme devem vestir-me, dão-me uma t-shirt larga com um alvo no bolso frontal, do lado esquerdo. E mandam que volte mais tarde ao guichê, na esperança de que alguém acerte na mouche, e eu não volte.

 

Vou andando. Guerra aqui e ali. Violência ali e aqui. Dor a crescer a céu aberto e esperança a mirrar nas estufas que ninguém rega. Gente de t-shirt vermelha, com uma pequena cratera no bolso. Furo de bala. De bazuca. De tecnologia triste e podre. Lançada por um drone. Escavada por uma draga que sugou até a vida da própria luz que criou a vida, quando os Deuses não tinham sido inventados.

 

Atiro uma bala ao charco. O metal afunda. E eu afundo a cabeça nos joelhos. Espero o meu tempo. Regresso. Ainda não pertenço a nenhuma das caixas. Perguntam o que sou e sou só pessoa. Não têm esse espaço entre os espaços destacados. Querem saber género, sexualidade, cor da pele, estrato social. Saliências, orifícios, melanina e casualidade. Mas eu não me interesso por isso. Não penso nisso. Ignoro-os. É difícil ouvi-los e aos seus pedidos por entre os gritos da tirania, da guerra, da vida no segundo antes de ser morte, quando vai de ruído escabroso a silêncio áspero.

 

Dizem-me que devo estar sob a influência de algum planeta retrógrado. Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados! E perguntam-me se sei qual é... Não percebo muito de astrologia. Mas se um planeta está a fazer-me isto, tenho quase a certeza que é a Terra.


Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de setembro de 2024

A criança torturada

 

Imagem retirada da web | Pixabay

O homem agarrou a criança. O homem obrigou-a a assistir à morte da mãe e do pai, numa tortura muito lenta, que os fez arrancar os olhos e caminhar cegos até ao abismo. O homem disse à criança que precisava de aprender todas as razões pelas quais ele era o herói, o mestre, o único salvador na pátria. O homem determinou que a criança teria de respirar fumo de escape, de segunda a sexta. Obrigou a criança a trabalhar em salas húmidas, com iluminação imprópria e aguentando o calor insuportável dos dias quentes e o frio enregelante dos dias gelados. Castigou a criança. Bateu à criança. Obrigou-a a pagar pelas distrações até que não sobrasse moeda para o lanche. Obrigou-a a deixar de ser criança. Fechou-a na jaula das obrigações com outras crianças iguais a ela: que já não o eram! Mandou que procriassem de noite e se fizessem úteis durante o dia. Deixou que se vissem os ossos miúdos por debaixo da pele, fruto de fome, fadiga e desespero. Transformou as crianças em pais. Torturados lentamente. Até arrancarem os olhos e caminharem cegos para o abismo. Frente às crianças que assistiam, obrigadas...

 

Só que o homem era o Estado.

 

E a criança éramos nós.

 

Talvez com os olhos nas mãos, a caminhar para o abismo seja tarde.

 

Talvez fosse diferente se, enquanto estão no rosto, os mantivéssemos abertos.


Marina Ferraz




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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sismo

 

Fotografia: João Almeida Firmo

Provavelmente fui eu. Perdoem. Ando a cismar no que não devo. Porque quando eu cismo, cismo... Vou dizendo a mim mesma que não quero mudar ninguém. Repito para dentro o mesmo mote que me move a vida. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Mas cismo. E dá vontade de dar uns abanões por aí. Abanar o chão. Abanar as pessoas. Fazer com que entendam que não é sobreviver. Mas sobre viver.

 

 

A terra tremeu. Eu não dei por que ela tremesse. Mas tremeu. Não dei por isso, provavelmente, porque tenho precisado de dias de 48 horas para acabar o trabalho. Porque tenho contas para pagar e o que sobra depois de pagos os impostos nem sempre chega para o resto. Porque quando me deito, em vez de dormir, como toda a gente, durmo com a conta das próximas 48 de que preciso para continuar a fazer o mesmo, e já a arrepender-me do prejuízo que será fechar os olhos por três, quatro, cinco horas... só para não fritar mais o único neurónio que ainda se arrasta para a função, marcando ponto com os filamentos trémulos e já a emborcar um café triplo.

 

Estava ocupada a fazer o que ninguém faz por mim. Descansar. Para depois me ocupar de fazer o que ninguém faz por mim. Trabalhar. A pensar na possibilidade de fazer o que ninguém faz por mim. Viver. E a lembrar-me de que, provavelmente, também não estou a fazer isso por mim. Porque tenho contas para pagar. E o que sobra depois de pagar os impostos nem sempre chega.

 

Segui pelo meu dia como sigo pelos dias. Sem querer saber de que a terra tivesse tremido. Lendo, aqui e ali, sobre isso. Desconhecendo ainda o impacto que um sismo pode ter nas pessoas. Mas tem. Tanta gente me perguntou se o tinha sentido, que dei por mim a repetir para dentro. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Até à exaustão. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Porque o monstro dentro de mim queria soltar-se da boca. Porque o monstro dentro de mim queria abanar as pessoas. A terra. O planeta inteiro. E perguntar: sentiste quando te roubaram a possibilidade de viver a vida que querias? Sentiste quando te mataram a esperança? Sentiste quando te obrigaram a ser escravo do teu país? Sentiste quando definhou a tua luz, porque eles a apagaram num sopro, como quem celebra o aniversário? Não perguntei isto a ninguém! Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser.

 

Estou a tremer. O chão parece-me estático. As pessoas também. E estou a tremer. Um pouco de raiva. Um pouco de dor. Um pouco porque o cansaço faz com que se sinta frio, mesmo que estejam dias quentes lá fora. Não sei se estão. A minha casa é fria porque mal apanha sol... e eu tenho de trabalhar as ditas 48 horas dos dias estendidos, porque o meu país me impede de existir condignamente a menos que o faça.

 

As pessoas, meio assustadas, reúnem agora um conjunto de estratégias de sobrevivência... e perguntam, baixinho, como se não quisessem assustar as placas tectónicas: Porque é que isto aconteceu? É que foi um sismo com uma magnitude de 5,3 na escala de Richter... Porque é que isto aconteceu?...

 

Provavelmente fui eu. Perdoem. Ando a cismar no que não devo. Porque quando eu cismo, cismo... Provavelmente fui eu. Apetece-me abanar qualquer coisa. Alguém. Mas quem sou eu? Fico por aqui. A cismar. A tremer. A pensar. Talvez se a tirania se medisse na escala de Richter, pudéssemos ser nós o terramoto.

 

Não para tentar sobreviver. Para tentar viver.

 

A sobreviver estamos nós... e para quê?

Marina Ferraz




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terça-feira, 20 de agosto de 2024

Verão

 

Nasci no Verão. Sempre me liguei mais ao Outono. Talvez porque, se a matemática não me falha, fui gerada nessa estação, com a queda das folhas. Disseram-me muitas vezes que, como elas, a minha vida seria em queda. Como se eu fosse a folha frágil que tomba, sem capacidade para se agarrar aos ramos e sobreviver. Não é que eu faça muita questão de sobreviver. Mas ainda aqui estou. Tomando as tonalidades quentes do mundo, perseverando e seguindo para o Inverno com a seiva muito viva em mim.

 

Todos os anos, atravesso o Inverno e a Primavera para chegar ao Verão. Chego caótica. Com sardas no rosto, fazendo reticências na pele branca que escondo do sol sempre que possível. Cansada de esticar o cabelo, até porque o treino de braços do ginásio me chega, desisto mais vezes de sequer me pentear. As ondas e cachos bravios fazem um retorno, dando razão às placas dos cafés onde se lê “há caracóis”. E eu transformo-me, assim, num misto entre um dálmata e um poodle, caminhando nas mesmas ruas e escondendo-me no mesmo covil.

 

Olho para mim e sei que é Verão. Mas, quando abro as páginas das redes sociais, descubro que as duas estações do momento são o Inverno e o Inferno. Há um frio nas pessoas de enregelar a alma, e o mundo vai ardendo com temperaturas que negam quem nega as alterações climáticas e um ambiente de guerra e medo, um pouco por todo o lado.

 

As estações estão todas trocadas. Mesmo que as sazonais fotografias de pernoca ao léu ainda compitam com os anúncios dos ginásios para quem é crente no milagre do Espírito Santo... As estações estão todas trocadas. O mundo arde. Ora bomba. Ora incêndio. Fogos postos por homens que não merecem esse nome, pois não respeitam homens, mulheres, crianças, árvores, animais, nem coisa nenhuma...

 

Fico feliz por não acreditar num deus único, nem que ele criou o mundo, porque me incomodaria ter pena de deus. Mas num concílio de todos os deuses, de todas as fés, imagino que há um desespero agarrado à desistência, vertendo copos de gin tónico... porque é amargo como a visão terrena e embriaga os sentidos.

 

Vivaldi tocaria agora de forma muito diferente as suas Quatro Estações. Talvez fossem duas estações, mais desafinadas e grotescas. Uma peça que os pianistas só pudessem tocar em pianos partidos, aos quais já faltassem teclas.

 

Olho para mim e sei que é Verão. Há qualquer coisa em cima das minhas sardas. É realmente Verão. Tenho mar a fugir dos olhos. 


Marina Ferraz




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terça-feira, 13 de agosto de 2024

Frases feitas

 


As pessoas usam frases feitas. Não eram frases feitas da primeira vez que foram ditas. Tinham muito sentido. Conteúdo. Como o primeiro hambúrguer quando foi feito, antes da maquinaria pesada. Mas hoje em dia, entra vaca, sai Big Mac. E não me parece que seja a mesma coisa.

  

As pessoas dizem-te “estuda, se queres ser alguém”. O que não te dizem é que ninguém te vai ensinar a gostares de estudar. Ninguém te vai incentivar a pensares pela tua cabeça, fora do manual. Ninguém te vai dizer que História não é de decorar, mas de entender. Nem que o mais provável é que acabes por ter de trabalhar em algo muito diferente da tua linha de estudos, ou de sair do país para encontrares trabalho. Ninguém te diz que as coisas mais importantes que precisarás de saber na vida não estavam nos manuais escolares, nem no currículo académico. E ninguém irá dizer-te que, agarrado à expressão do “podes ser o que quiseres”, há um se que se prende com as regras da estatística. Podes ser o que quiseres, mas se decidires ir contra a norma, prepara-te para pagar pelo menos 50% do teu salário em impostos e contar trocos o mês inteiro. Acima de tudo, aquilo que ninguém te diz é que se não estudares, também vais ser alguém. Que toda a gente é alguém. Profissão é o que fazes. Não define o que és.

 

As pessoas vão dar-te os sentimentos no enterro de alguém que amas e vão dizer-te “o tempo cura”. O que não te dizem é que o esquecimento é feito de fios de teia de aranha, muito finos, e que eles se vão agarrando à pele da mente e incomodando, à medida que começas a esquecer cheiros e vozes e momentos. O que não vão dizer-te é que vais desesperadamente tentar agarrar tudo isso, para que não vá. E que a dor dessa segunda perda é um segundo luto. Um terceiro luto. Até que simplesmente perdes uma batalha e lembras um nome, um rosto, histórias que se vão esvaziando. Aquilo que ninguém te diz é que o tempo – esse que cura – também é quem te fere.

 

As pessoas vão dizer-te “nunca é tarde demais”. O que não te dizem, com franqueza, é que tudo o que não fizeste, não poderás fazer agora. Um ato vive no momento em que é feito. Uma palavra vive no momento em que é dita. E o momento é, também, parte do que define o seu sentido e o seu entendimento. Nada se repete. Então, o que as pessoas não dizem é que tudo o que se adia, morre. Não é tarde demais para viver outro momento, para dizer algo... mas é tarde demais para saber o que teria significado antes. Aquilo que ninguém te diz é que, depois de todas estas pequenas mortes de procrastinação, ainda assim chegará o dia em que, por definitivo, será tarde demais.

 

As pessoas dizem “o amor supera tudo”. O que ninguém te diz é que às vezes ele só precisava de se superar a si mesmo e nem isso faz...

 

E aqui estamos. Comigo a querer dizer-te um mundo de clichês. Consciente, muito consciente de que as pessoas usam frases feitas, que não eram frases feitas da primeira vez que foram ditas. Tinham muito sentido. Conteúdo. Como o primeiro hambúrguer quando foi feito, antes da maquinaria pesada. Mas hoje em dia, entra vaca, sai Big Mac. E eu tenho muitas palavras em mim... e olho para ti e não me ocorre nada eloquente para te dizer.

 

Silencio-me. Choro um bocadinho no desespero dos meus dias, cada vez mais colados à realidade. E qualquer clichê da tua boca me soaria a tese filosófica.

 

Olhas-me e dizes: “o que vier, nós enfrentamos”.

 

Quero acreditar em ti. Como se tivesses sido a primeira pessoa a dizê-lo...

 

   Marina Ferraz




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terça-feira, 6 de agosto de 2024

Lentes

 

Fotografia de Ricardo Torb

Devia ter uns 13 anos. Quando o queixume sobre quão difícil me era ver o que escreviam no quadro ao sentar-me da segunda fila para trás deixou de ser interpretado como a nerdzinha que queria sentar-se nas primeiras filas para cair nas boas graças dos docentes, lá me levaram a um oftalmologista.

 

Ainda que não visse muito bem, não foi difícil de ver que o senhor – considerado o melhor da região – devia uns anos à reforma e agia como se já estivesse reformado. Cada gesto pedia permissão ao anterior para se dar. O desinteresse pautado nos olhos. Perguntas que julguei idiotas logo que entrei, entrando neste leque o velho: “então, porque estamos aqui?”. Ele estava porque era o trabalho dele e ainda não se tinha reformado. Eu estava porque via mal... que não tenho por desporto andar a correr as capelinhas da saúde privada.

 

Fez-me alguns testes. Pediu-me para ler letras cavalares e letras médias, ignorando as mais pequenas, como se elas não estivessem no painel. Deu-me duas palmadinhas nas costas. Disse que eu tinha os melhores olhos que ele analisava há anos. Entregou a astronómica conta à minha mãe e mandou-nos para casa, para continuar, assim, a sua atividade de dolce far niente.

 

Confirmava-se a suspeita da tripulação do navio dos tristes. A nerdzinha queria sentar-se nas primeiras filas para cair nas boas graças dos docentes. Seis meses depois fui saber uma segunda opinião e descobri que era míope. Lembro-me do espanto de ver a tal famosa linha do horizonte e de descobrir, pela primeira vez, que era efetivamente uma linha.

 

 

Hoje, com as minhas lentes de contacto, a olhar para o mundo, sinto-me muitas vezes na cadeira do meu primeiro oftalmologista... mas ao contrário.

 

Vejo claramente a roda do tempo trazer de volta a tirania, a censura, a disparidade social, a discriminação, o genocídio... vejo-o antes de estar nas notícias, antes de outros o dizerem. E, quase sempre, quando o comento antes do tempo certo me é dito que são teorias da conspiração.

 

 

As lentes pelas quais vejo o mundo têm atualmente 2,75 e 3 de graduação. Mas a História faz-me ver de forma muito clara o que, aparentemente, anda desfocado atrás das camadas de gatekeeping e dos interesses das grandes empresas. 

 

 

Mas sabem qual é diferença entre ter teorias da conspiração e ver para onde o mundo está a ir?

Exatamente a mesma que existe entre ter os olhos mais saudáveis do mundo e ser míope...

Seis meses!


  Marina Ferraz




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terça-feira, 30 de julho de 2024

Sobre a educação

 

Foto da performance "A Fada Desastrada"

Eu sei que pode ser otimismo exacerbado. Mas eu ainda acredito que é possível aprender...

 

Algumas crianças não são fáceis. São inocentes. Acreditam em mundos além do mundo. São insistentes. Fazem perguntas intermináveis. Exploram a paciência de quem as rodeia com as suas vontades, as suas manias, as suas teorias insensatas sobre as coisas.

 

Algumas crianças não distinguem uma pessoa da outra. Confiam. Colocam-se em risco pela confiança. Outras, escondem-se atrás da primeira entidade ou objeto, quando sentem a primeira centelha de perigo. Para compensar, correm como se não pudessem cair. E caem. Magoam-se. Choram. Fazem ocasionais birras porque querem algo que está fora do alcance. E depois tentam outra vez. Batem com a cabeça na esquina do móvel. Voltam a chorar. E repetem a seguir.

 

Algumas crianças gostam mais de olhar pela janela para ver os pássaros e a neve, do que de enfiar as cabeças nos livros de ciências que lhes falam dos pássaros e da neve. Algumas pintam nas paredes, sem o mínimo de respeito pelos custos de uma pintura interior. Algumas cantam alto durante as viagens. E perguntam se falta muito para chegar. Ficam entusiasmadas com a ideia de chegar.

 

Algumas crianças largam a mão para correr, mesmo depois de lhes terem dito para não largarem a mão e não correrem. Saem dos quartos, mesmo quando estão de castigo. Fazem o que querem e lhes apetece. Algumas crianças vão fazer asneiras e pedir desculpa a seguir. Vinte vezes consecutivas. A mesma asneira. O mesmo pedido de desculpas.

 

Eu sei que pode ser otimismo exacerbado. Mas eu ainda acredito que é possível... tem de ser... Com o esforço, empenho e dedicação certos, eu acredito que é possível - para qualquer adulto - aprender com elas...

  Marina Ferraz




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terça-feira, 23 de julho de 2024

Modo de baixo consumo

 

Imagem retirada da web | Pixabay

Eu e o meu computador temos um ritual. Uma luta inglória. Uma espécie de discussão entre homem e máquina, em que inevitavelmente perco. Vencida, mas não convencida, lá acabo por me levantar. É difícil levantar, às vezes.

 

 

Esta história começa nos 20% de bateria. A tela iluminada perde parte substancial da sua luminosidade. O pop-up pula para o meio do ecrã. Explica - como se eu não tivesse percebido - que está em modo de poupança de bateria. Digo-lhe que também estou, como se isto fosse uma conversa num grupo de apoio. Uma demonstração de empatia ou de falta dela. Aquele típico não és só tu que tens problemas.

 

Só que, ao contrário de mim que sou independentemente problemática, o computador lembra-me de que se baseia em modelos numéricos com frequência. E, como a Matemática, fica à espera que eu lhe resolva o problema. Quer comer. Quer ter energia. Não se cansa de me dizer que devia ligar o computador à corrente. Insiste tanto que, por vezes, pensando que deixei o cabo na mochila, na entrada, lhe digo: Aguenta-te! O cabo está na China... se eu for buscar o cabo, é para te enforcar com ele!

 

Sim. Poderia dizer-se que temos problemas quando começamos a falar com o nosso computador. Mas é um problema maior ainda quando ele começa a responder. Quando damos conta, as redes sociais estão repletas de anúncios de cabos e cordas e viagens para Pequim. Um olhar em redor, para tentar encontrar a escuta. A minha carreira na política - que ainda nem começou – não pode ser, deste modo, precocemente destruída com gravações indevidas!

 

Tento continuar a trabalhar. Ou a procurar alternativas. Ou a ver qual foi a conta que chegou esta semana por parte das Finanças ou da Segurança Social e exatamente quão na merda vou ficar quando as pagar, e à renda, e aos serviços. Logo o computador me placa, numa luta corpo a corpo, lançando um novo pop-up. 10% de bateria. Para continuar, ligue o seu dispositivo à corrente. Como quem diz, paga a conta da Luz ou nem terás meios de verificar exatamente quão fodida estás por causa do capitalismo.

 

Dos 10% aos 5% de bateria, eu e o meu computador vivemos um momento à Velho Oeste, com banda sonora dramática e tudo. Discutimos sobre quem tem menos energia. E, mesmo continuando a achar que sou eu, lá acabo por me levantar.

 

É difícil levantar, às vezes. Digo-lhe. Sou portuguesa. Hoje em dia, para me levantar, não é só do sofá, é do fundo do poço...

 

Enquanto o ecrã retoma o brilho e o queixume dele se dissolve, penso que, já que estou levantada, poderá ser um bom momento para fugir, pegar em todo o dinheiro que sobra destes pagamentos e simplesmente sair em viagem até que ele acabe.

 

Penso que seja suficiente para ir até à Amadora, se voltar de boleia.

 

 Marina Ferraz




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terça-feira, 16 de julho de 2024

Notas de viagem

 


Querem que eu saia de casa como as borboletas saem dos casulos. Naturalmente e sem fazer alarde. Aguardando que o céu traga novas aventuras. Aventuras frugais. Querem que o meu ir seja um ir como os outros vão. Trazendo para contar aquela história engraçada e os relatos das paisagens, dos monumentos, da multiculturalidade e do exótico.

 

E eu continuo a voltar para o casulo. Parece que há vontade inerente de ser a lagarta de asas comprimidas. Talvez seja cultural. Um conforto português. Esse. De viver com as asas comprimidas...

 

Só que, a cada viagem, acontece o mesmo. Não caibo no casulo de onde saí. Já não caibo nesse casulo há muito tempo. E esteve tudo bem enquanto ficava uma perna de fora. Ou um pé. Ou o nariz. Só que a mão e a boca são muitas vezes soberanas nessa arte de ficarem desalojadas... traço também luso, este de longa tradição. Não sei muito bem como não criticar o meu país. E não sei parar de amá-lo, ainda que a relação seja claramente tóxica.

 

 

Não tenho aquela história engraçada. Os relatos das paisagens, dos monumentos, da multiculturalidade e do exótico. Ou tenho. Na verdade tenho. Só não tenho vontade de falar sobre eles.

 

 

Apetece-me falar sobre os transportes públicos gratuitos. Sobre o respeito pela Natureza. Sobre os festivais em prol da inclusão. Sobre a bandeira LGBTQIA+ hasteada à frente de um dos principais monumentos da cidade. Sobre a ligeireza das pessoas.

 

 

Não me fica a vontade de ficar noutro canto do mundo, mas a vontade de mudar o meu canto. A utópica vontade de mudar o meu canto. Esse onde o único transporte gratuito é o que leva as pessoas para a miséria e o inferno dos dias. Onde se arrancam e cortam e queimam as árvores. Onde se atacam estrangeiros. Onde se discutem os danos que tem iluminar o parlamento com as cores do arco-íris. Onde as pessoas caminham encurvadas, soturnas, tantas vezes com o peso do mundo. Fico com vontade de mudar o meu canto. E o meu casulo fica mais pequeno. Mais desconfortável. Se já era miúdo para mim, imaginem para mim e a utopia...

 

 

 

Então busco a compensação. Relatos. Aquela história engraçada. Vem à memória a prova de vinhos da Geórgia. Valha-nos a abençoada prova de vinhos. É preciso que a haja, para recordar Amália. Dar de beber à dor. Encontrar a forma cordial de dizer “nah...”.E lembrar a opinião realista, sorrida, no verter do copo: eu sou portuguesa, temos muito bom vinho.

 

 

Temos. Temos bom vinho. E pouca vontade estar sóbrios perante a dificuldade permanente.

Raios, lá vou eu outra vez...

 

 

 

Continuo a voltar para o casulo. Esse, no qual não caibo. Continuo a amar o meu canto. Esse onde as condições escasseiam. Ainda quero (estar com) o meu país. Mas a cada voo, eu sei – e não posso des-saber – esta é uma relação tóxica. E talvez morra disto... cedo. Como as borboletas depois de saírem dos casulos.


Marina Ferraz




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terça-feira, 9 de julho de 2024

O fruto

 

Imagem gerada por I.A.

O fruto que nasceu na árvore do mundo foi o mais doce desde há muitos verões. Por isso, cortei-o em gomos muito finos e dei um pedacinho dele a cada pessoa. Toda a gente sorriu. Havia sete mil milhões de pessoas a sorrir. Subitamente, ninguém sentia fome. Todas as doenças sararam. Ninguém sentia frio. Ninguém tinha vontade de fazer a guerra. De lutar na guerra. De fugir da guerra. De lembrar a guerra. A rua era morna. As portas das casas estavam destrancadas. Quartos que há muito serviam de arrecadação foram arrumados e deram espaço aos sem-abrigo. E as pessoas apanhavam outros frutos e distribuíam os gomos umas pelas outras. Quem não tinha fruto, dava pão. Quem não tinha pão, dava poema. Quem não tinha poema, dava canção. Ou peça. Ou auxílio. Ou conforto. Ou cobertor.

 

 

A menina olhou para mim, enquanto eu contava esta história. E disse-me: "Oh, mas esse mundo não existe."

 

E eu disse-lhe. "Tudo o que se diz existe. Tudo o que se escreve existe."

 

- Até as fadas e os unicórnios?

 

- Até as fadas e os unicórnios... Até os frutos mágicos...

 

Ela sorriu, fechando os olhos.

 

E é por isso, acrescentei, sem que me ouvisse, que a primeira coisa que os ditadores nos roubam é a esperança e a liberdade de expressão.

 

 

Trinquei o fruto da fruteira. Não tinha sabor. E o telejornal falou da doença e da fome. Dos desalojados e dos mortos de guerra. Da escassez e da ganância. Tranquei a porta antes de me deitar.

 

Tudo o que se diz existe. Tudo o que se escreve existe.

 

Quero o mundo das minhas histórias. Estou farta deste!


Marina Ferraz




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