terça-feira, 26 de julho de 2022

Futuros possíveis

 

Fotografia de Hélio Silver

Parto daqui e não sei para onde. Quero a arte de não pensar, mas aprendi pouco com Caeiro. Então, vou como Violante de Cysneiros. Sem ir, como se não existisse. A cantar poetas que permanecem. E a amar, valha o que valer...

 

 

Daqui. Mil sonhos na algibeira. Sobre livros que quero escrever e letras de músicas que ainda não viraram canção. Sobre estas palpitações loucas no meu peito de todas as vezes que penso em ti. Acordo e não estás. Escrevo um poema sobre a saudade e desejo que sejas feliz. Vejo passar as estações e os anos, sempre a lutar pelo mesmo. Sopro as velas do meu 36º aniversário. Digo, como Florbela, “se passar do dia dos meus anos, morrerei velha”. Tenho um alegado edema pulmonar cuja autópsia ninguém confirma. E morro.

 

 

Daqui. Engravido de um livro sobre a Morte e resolvo pari-lo num pinhal à beira das estradas principais da literatura. De repente, ele ganha vida e chora. E alguém o ouve. E o vento dos sucessos sopra-lhe as folhas, deixando-as eternamente abertas na página onde se lê “fim”. Sorris-me. E eu sorrio-te. E vamos juntos, caminhando pela berma, segurando esse filho só meu. Envelhecemos sem que o livro envelheça. Sempre à sombra desse one-hit-moment que perdurou até ao esquecimento. E há uma lareira, numa casa junto à mata. Tenho as mãos enrugadas e o coração cheio. Ela vem, suave. Abraças-me. E eu morro.

 

 

Daqui. Tenho o maior desgosto da minha vida e não quero escrever nem mais uma linha. Queimo todos os poemas que alguma vez fiz e a minha casa com ela. Tomo uns antidepressivos quaisquer e adormeço por entre fumo e poesia. Morro.

 

Daqui. Vivo a maior história de amor de todos os tempos. Sempre que me debruço sobre os teus olhos e o teu sorriso, nasce-me a ideia de um poema. Só escrevo alguns e não publico nem metade... Apego-me à vida todas as manhãs, quando te olho. Deixo-me apaixonar diariamente pelos cheiros e os toques e as sensações. Falo pouco sobre isto, embora escreva longamente sobre o milagre dos dias. De caneta na mão e contigo na sala ao lado, repouso a cabeça no braço. Adormeço em paz. Não acordo mais. Morro.

 

Daqui. Os anos vão subtis e leves. Os meus sobrinhos convidam-me para jantar algumas vezes por mês. O trabalho paga-me as contas. Tenho tempo para tirar algumas folgas. Vivo sozinha com a gata, mas temos entre nós muitas histórias de amor antigas para contar. E elas não me deixam triste, porque sei que tudo foi pelo melhor. Vou envelhecendo aos poucos. Um dia vou dormir. Deixo coisas para um amanhã que nunca chega. E morro.

 

 

Daqui. Dou-te um beijo de corrida ao sair da cama. Estou atrasada para uma reunião. Engulo o café de um trago, agarro o computador, a carteira e saio, soltando uma palavra de amor por cima do ombro. Estou a atravessar a estrada e ele vem, não sei de onde. O computador cai a alguns metros de mim. Penso em ti e em como gostava de ter ficado na cama. A ambulância chega. Tarde. E eu morro.

 

 

Parto daqui e não sei para onde. Quero a arte de não pensar, mas aprendi pouco com Caeiro. Então, vou como Violante de Cysneiros. Sem ir, como se não existisse. A cantar poetas que permanecem. E a amar, valha o que valer...

 

Parto daqui e não sei para onde. Todos os futuros são possíveis. Mesmo outros, que não estes. E não importa, sequer, qual se concretiza numa realidade corpórea. O espesso da realidade é, usualmente, feito da matéria dos sonhos que decidimos abraçar.

 

 

Parto daqui e não sei para onde. Em alguns passos leves pelas ruas de casinhas ordenadas, de cheiro a mar, penso como é bom estar feliz agora, neste lugar onde todos os futuros são possíveis e incertos.

 

Gostava que o desconforto não te fosse maior do que a felicidade, para contemplares comigo a rua do agora. E quero dizer novamente que não importa o que vem depois. Tenho-me inteira para dar neste segundo que passa. E também não sei. Como tu não sabes. Como ninguém sabe... o que vem depois.

 

Mas depois do depois. Depois do depois eu sei. Morro. Sei que morro.

 

Depois do depois pode ser daqui a um segundo...

 

E estou viva agora.

 

Por favor, deixa-me olhar para ti, abraçar-te... e sorrir.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 19 de julho de 2022

O movimento mais difícil

 

Fotografia de Ana Formigo | Modelo: Ana Leonor Jesus



Sei que os bailarinos vão dizer que é o Demi-plié. E os ginastas vão dizer que é Salto Mortal de Produnova. Os aficcionados pelo Crossfit falarão do Handstand Walk. E os da calistenia do Manna. Mas eu posso assegurar. Há um movimento mais difícil. Um movimento que é um milhão de vezes mais difícil.

 

 

 

Quando ela nasceu, tinha uma tonalidade arrocheada na pele perfeita. E era tão pequenina e frágil que uma parte de mim tinha medo de que, se lhe tocasse, ela partisse. Mas foi magnético e impossível de evitar. O toque. Que virou colo. Que virou biberões dados ao som do coração com buraquinhos. Escrevi-lhe a minha primeira canção. Eu acredito em fadas. E derreti, com ela nos braços. Perguntei-lhe, em quadra tradicional, muito antes que ela soubesse a primeira palavra, uma pergunta que, tantos anos depois, continua sem resposta:

 

  Guardo só uma pergunta,

  neste mundo agreste e louco:

  Como se pode amar tanto

  quem se conhece há tão pouco?

 

A resposta nunca foi necessária. Nunca vai ser. É aquela eterna pergunta de retórica. Que acompanhou a minha alma, à medida que o bebé de colo aprendia a gatinhar, a andar, a fazer travessuras, a dançar, a falar, a viver...

 

Quando ela começou a crescer, a tonalidade da tez era clarinha e luzente. Adornada com olhos azuis, que se iam transfigurando em verdes, tomando uma tonalidade indefinida que faz lembrar dois pequenos planetas no centro da face perfeita. Emoldurada pelos caracóis loucos – que viriam a ser puxados, esticados, pintados de azul ou de outros tons de fantasia.

 

Perdi a conta ao número de dias em que a levei para a sala de aula, para que não esperasse tanto tempo pela educadora. E perdi a conta ao número de vezes em que corri, no segundo toque, porque era difícil deixá-la na pré, ainda que fosse o mesmo edifício, um piso acima. Olhar para ela sempre me fez ter aquele compassozinho de espera no coração. Pequenas mortes felizes e cheias de orgulho. Cheias de vida.

 

Então, um dia, ela pegou na mochila. Cheia de sonhos sobre o futuro, embora se lesse claramente, no livro do colégio, que a única coisa que queria ser quando fosse grande era pequenina. Pegou nos livros. Pegou nos cadernos. Pegou na sua mente povoada pela magia da Disney e as histórias da Floribela e da Barbie. Pegou em si, com as duas pernas, sem precisar dos meus braços. Foi ser uma aluna incrível. Foi ser uma bailarina que se destaca num grupo de dezenas. Foi ser uma adolescente apaixonada pelo mundo. Foi transformar-se numa mulher inexplicavelmente boa. Foi ser uma estudante distinta e um ser humano como existem muito poucos... E começou naquele dia, quando, pegando na mochila pesada sem ajuda, caminhando nos seus próprios passos, ela me obrigou a fazer o movimento mais difícil de todos.

 

 

 

Sei que os bailarinos vão dizer que é o Demi-plié. E os ginastas vão dizer que é Salto Mortal de Produnova. Os aficionados pelo Crossfit falarão do Handstand Walk. E os da calistenia do Manna. Mas eu posso assegurar. Há um movimento mais difícil. Um movimento que é um milhão de vezes mais difícil: abrir mão e deixar ir.

 

É difícil. Tão complicado que é como se os músculos e ossos do corpo doessem e os ossos e músculos da alma também. Exige uma flexibilidade que não temos e uma vontade que não existe. Mas, como todas as coisas difíceis, dá frutos...

 

 

Ela é uma parte de mim a ser melhor do que eu. E ainda tenho a sensação da bebé que carreguei em braços. Ainda a vejo na mulher que sorri e chora e se dá aos outros. Lembro-me sempre de que, com ela, tive de fazer o movimento mais difícil de todos. De aceitar que não sou mais do que uma pequena peça de um percurso que ela soube fazer com passos indiscutivelmente certos.

 

Olho o céu e sei que não estive só nesse movimento difícil, que acabou por torná-la tão perfeita quanto sempre soubemos que ela era. E, quando a pergunta ressoa, a resposta é evidente. Faria o mesmo outra vez, rasgando músculos e partindo ossos do corpo e da alma, porque – deuses – que orgulho é ter feito parte desta história. Que orgulho é ter estado lá no dia em que ela pegou na mochila, abriu as asas, e se tornou tudo aquilo que é.

 

 

O movimento mais difícil é abrir mão...

 

... contrariada, abri... ainda bem!

 

 

(mas – se precisares - terás sempre colo onde voltar!)


 Marina Ferraz





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terça-feira, 12 de julho de 2022

Alergia

 


É um problema crónico. Sou profundamente intolerante. Mas pior ainda... sou alérgica... E apesar de muitas tentativas – todas vãs – não consigo amenizar nem os sintomas, nem os efeitos...

 


Tens de…

 

Todo um prurido na camada cutânea se inicia. E, de repente, é como se coçasse até a ideia do respirar. O tempo torna-se insuportável. A temperatura começa a subir. A cabeça pesa. O corpo morde.

 

Tens de…

 

Abro a torneira de água fria e passo por ela os braços. Sinto que abrem pústulas no lugar dos poros. Sinto que elas alastram aos poucos. O dano entranha e espalha-se.

 

Tens de…

 

Quero chamar alguém. Nem importa quem. Estou em desespero. Tragam alguma coisa. Arranjem alguma mezinha. Façam algum curandeirismo ancestral. Qualquer coisa. Quero dizer isto. Mas não consigo. Porque, de repente, a garganta fechou.

 

Tens de…

 

O desespero da garganta fechada vira grito interior. Arde-me cada um dos alvéolos. Quero respirar e não consigo. Não é apneia. É sufoco. Como se o mundo me estrangulasse com os seus dedinhos disfuncionais de ideias preconcebidas.

 

Tens de…

 

Rebolo pelo chão da minha mente. Quero puxar o ar. Não há ar. E a pele deteriora-se, soltando sangue e desesperos em poças salgadas de lágrimas que ardem na carne viva.

 

Tens de…

 

Uma alergia não diagnosticada. Um choque. Não sei se anafilático ou não. Mas intenso. E acontece todo dentro, sem que ninguém veja nada além da perplexidade da expressão.

 

Tens de…

 

É um problema crónico. Sou profundamente intolerante... mas pior ainda. Sou alérgica... e apesar de muitas tentativas – todas vãs – não consigo amenizar nem os sintomas, nem os efeitos...

 

Procuro o anti-histamínico. Por entre a crise demoro alguns segundos a encontrá-lo… mas anda sempre comigo, nesta mala - o cérebro - onde fiz questão de guardar uma farmácia funcional contra as agressões de uma sociedade de conceitos fechados e ridículos.

 

Quando o encontro, tomo-o. De imediato. Palavra e intenção largada numa irrupção de momento.

 

Tens de…

 

Tens de…?!

 

Nem me interessa o fim da frase!

 

Não!

Eu não tenho de fazer absolutamente nada que eu não queira!


 Marina Ferraz





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terça-feira, 5 de julho de 2022

Retórica em oito partes

 


É uma pergunta de retórica. É sempre uma pergunta de retórica. Não penses muito nisso. Está tudo bem. Não tenho nem quero respostas. Para quê? A vida... entende... a vida planta sempre dois pontos de interrogação na terra adubada para plantar afirmações. Não é necessário que exista uma resposta. Às vezes, é só preciso perguntar. Ouve. Simplesmente ouve. O clamor das interrogações despidas de expetativa. É só uma pergunta de retórica...

 


I. BAILADO

O teu sorriso quando me dizes. Voltei para a dança. Esses olhos azuis-verdes-cinza-mundo todos cheios de brilho. Terem passado mais de vinte anos e nem um dia. A loucura do coração no peito, retumbante. Que bom!

E olhas-me, cheia de mundo nos olhos e de futuro nos pés. Cada palavra um bailado dessa eternidade que trago dentro. Amo-te mais do que tudo e tento dizer-to, pendurando a noção do amor nos fios louros dos teus cabelos.

E quero dizer-te que foi o teu menisco que se lesionou, mas são os meus joelhos que são fracos. Caio sempre na primeira pergunta que te fiz... como se pode amar tanto quem se conhece há tão pouco?

 

II. HERANÇA

Dizes que saio a ti. Mas não creio. Porque só o dizes quando venço uma batalha qualquer ou sou centro da atenção do mundo...

Saí da minha mãe... acho que é a ela que saio. Poesia não é leitura nem memória entoada nas viagens de longo curso dentro de um Daewoo. Poesia é presença incondicional, orgulho ocasional, sem razão evidente.

Pergunto muitas vezes. Onde estavas quando caí? Onde estavas quando precisei de amor imaterial e incondicional?


III. LUA CRESCENTE

A areia sob as sapatilhas de guerra e a lua no alto. O coração descompassado no peito. Falar do mundano para não dizer – porque realmente não importava dizê-lo – que afinal o coração não é de pedra.

Largar todas as certezas criadas. Libertar todos os conceitos pré-feitos. Ser. Na mais pura acessão desse ser que é ser-se. Até o próprio conceito do ser ir além do pequeno-eu determinado e redutor.

Uma mão no rosto. O fechar dos olhos. A explosão de todos os sentidos e de todos os sentimentos inauditos. Magia. A resposta antes da pergunta e depois dela e dentro dela... sem resposta. Como é que isto aconteceu?

 

IV. A MANEIRA ERRADA (DE FAZER A COISA CERTA)

O punhal cravado e o enaltecimento do eu. Um suspiro triste. Vai criança. Solto e encolho os ombros, sem te culpar. Estás magoada. Permanentemente ferida. Culpando tudo e todos. (Con)vivo bem com essas culpas arremessadas no mutismo corrosivo. Não dói.

Um passo certo para dignificar a alma... no chão de todas as raivas discretas. O retrair da mágoa na expansão do ego. E um toque de acidez em cada movimento.

Olhar e não te reconhecer mais. Silenciar-te de forma mais ampla, para não te ver desaparecer de ti. Nem sequer ter vontade de falar. Mas soltar um breve: onde está aquela pessoa da qual gostei tanto?

 

V. VIOLETA

Entre a morte e a quase-morte e a sobrevivência em tons de verde. Até que, um dia, a flor. Duas flores. Três. Esse matizado de cores. Amor em forma de Primavera.

O pousar dos lábios no veludo das folhas e um pensamento lá para onde moram os que eternamente sobrevivem em nós.

Estavas à minha espera para florirmos juntas, não estavas?

 

VI. QUINZE MINUTOS

A floresta ao nosso lado. O mar ali à frente. O tempo que permeia a descida até ao Paraíso – quem diria que o Céu é para baixo? – e essa vontade de conduzir para o pôr-do-sol.

Quinze minutos de silêncio. Um silêncio povoado de gaivotas e ondas. O sopro do vento nos ouvidos e na pele. O calor de um sol descendente e da pele areada. A paz de uma eternidade muito lenta, no espetáculo diário que o mundo oferece aos homens cegos. E derreter o corpo nessa areia. Ser fluído com a perfeição do final da tarde, esquecendo por momentos o som das músicas desajustadas e das conversas banais.

Só o toque da pele e a música da Natureza. Quinze minutos perfeitos. Porque é que as pessoas não sabem ser como o espaço onde estão?

 

VII. O LIVRO

Não. Uma palavra que pode ser dita com palavreados de boca cheia e muitos vazios de alma. Desculpas que podem somar-se até formarem um edifício de Jenga, que desmorona.

O desejar de sorte. Vazio. Porque todos sabemos que a sorte não tem nada a ver com o assunto. Aceitar o não e a bênção vazia. Aceitá-los. Simplesmente. Calando na garganta a pergunta: Como é possível fazer o caminho se todos nos vedam a estrada?

 

VIII. OLHOS NOS OLHOS

Depois das luzes da cidade adormecida, a luz nos olhos. E depois do negro da vida, a felicidade.

O que é isto?

Olhos nos olhos. Sorrio silêncios. Eu também não sei.

 



O clamor das interrogações despidas de expetativa. Essas que não visam nem o controlo nem a vigilância. Limpas. Livres. É só uma pergunta de retórica. Um suspiro pontuado... entendes?

 

Shhh... não respondas... não é preciso que haja resposta. Está tudo bem!


 Marina Ferraz





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