Parto daqui e não sei para onde. Quero a arte de não pensar, mas aprendi pouco com Caeiro. Então, vou como Violante de Cysneiros. Sem ir, como se não existisse. A cantar poetas que permanecem. E a amar, valha o que valer...
Daqui. Mil sonhos na algibeira. Sobre livros que quero escrever e letras de músicas que ainda não viraram canção. Sobre estas palpitações loucas no meu peito de todas as vezes que penso em ti. Acordo e não estás. Escrevo um poema sobre a saudade e desejo que sejas feliz. Vejo passar as estações e os anos, sempre a lutar pelo mesmo. Sopro as velas do meu 36º aniversário. Digo, como Florbela, “se passar do dia dos meus anos, morrerei velha”. Tenho um alegado edema pulmonar cuja autópsia ninguém confirma. E morro.
Daqui. Engravido de um livro sobre a Morte e resolvo pari-lo num pinhal à beira das estradas principais da literatura. De repente, ele ganha vida e chora. E alguém o ouve. E o vento dos sucessos sopra-lhe as folhas, deixando-as eternamente abertas na página onde se lê “fim”. Sorris-me. E eu sorrio-te. E vamos juntos, caminhando pela berma, segurando esse filho só meu. Envelhecemos sem que o livro envelheça. Sempre à sombra desse one-hit-moment que perdurou até ao esquecimento. E há uma lareira, numa casa junto à mata. Tenho as mãos enrugadas e o coração cheio. Ela vem, suave. Abraças-me. E eu morro.
Daqui. Tenho o maior desgosto da minha vida e não quero escrever nem mais uma linha. Queimo todos os poemas que alguma vez fiz e a minha casa com ela. Tomo uns antidepressivos quaisquer e adormeço por entre fumo e poesia. Morro.
Daqui. Vivo a maior história de amor de todos os tempos. Sempre que me debruço sobre os teus olhos e o teu sorriso, nasce-me a ideia de um poema. Só escrevo alguns e não publico nem metade... Apego-me à vida todas as manhãs, quando te olho. Deixo-me apaixonar diariamente pelos cheiros e os toques e as sensações. Falo pouco sobre isto, embora escreva longamente sobre o milagre dos dias. De caneta na mão e contigo na sala ao lado, repouso a cabeça no braço. Adormeço em paz. Não acordo mais. Morro.
Daqui. Os anos vão subtis e leves. Os meus sobrinhos convidam-me para jantar algumas vezes por mês. O trabalho paga-me as contas. Tenho tempo para tirar algumas folgas. Vivo sozinha com a gata, mas temos entre nós muitas histórias de amor antigas para contar. E elas não me deixam triste, porque sei que tudo foi pelo melhor. Vou envelhecendo aos poucos. Um dia vou dormir. Deixo coisas para um amanhã que nunca chega. E morro.
Daqui. Dou-te um beijo de corrida ao sair da cama. Estou atrasada para uma reunião. Engulo o café de um trago, agarro o computador, a carteira e saio, soltando uma palavra de amor por cima do ombro. Estou a atravessar a estrada e ele vem, não sei de onde. O computador cai a alguns metros de mim. Penso em ti e em como gostava de ter ficado na cama. A ambulância chega. Tarde. E eu morro.
Parto daqui e não sei para onde. Quero a arte de não pensar, mas aprendi pouco com Caeiro. Então, vou como Violante de Cysneiros. Sem ir, como se não existisse. A cantar poetas que permanecem. E a amar, valha o que valer...
Parto daqui e não sei para onde. Todos os futuros são possíveis. Mesmo outros, que não estes. E não importa, sequer, qual se concretiza numa realidade corpórea. O espesso da realidade é, usualmente, feito da matéria dos sonhos que decidimos abraçar.
Parto daqui e não sei para onde. Em alguns passos leves pelas ruas de casinhas ordenadas, de cheiro a mar, penso como é bom estar feliz agora, neste lugar onde todos os futuros são possíveis e incertos.
Gostava que o desconforto não te fosse maior do que a felicidade, para contemplares comigo a rua do agora. E quero dizer novamente que não importa o que vem depois. Tenho-me inteira para dar neste segundo que passa. E também não sei. Como tu não sabes. Como ninguém sabe... o que vem depois.
Mas depois do depois. Depois do depois eu sei. Morro. Sei que morro.
Depois do depois pode ser daqui a um segundo...
E estou viva agora.
Por favor, deixa-me olhar para ti, abraçar-te... e sorrir.