terça-feira, 19 de julho de 2022

O movimento mais difícil

 

Fotografia de Ana Formigo | Modelo: Ana Leonor Jesus



Sei que os bailarinos vão dizer que é o Demi-plié. E os ginastas vão dizer que é Salto Mortal de Produnova. Os aficcionados pelo Crossfit falarão do Handstand Walk. E os da calistenia do Manna. Mas eu posso assegurar. Há um movimento mais difícil. Um movimento que é um milhão de vezes mais difícil.

 

 

 

Quando ela nasceu, tinha uma tonalidade arrocheada na pele perfeita. E era tão pequenina e frágil que uma parte de mim tinha medo de que, se lhe tocasse, ela partisse. Mas foi magnético e impossível de evitar. O toque. Que virou colo. Que virou biberões dados ao som do coração com buraquinhos. Escrevi-lhe a minha primeira canção. Eu acredito em fadas. E derreti, com ela nos braços. Perguntei-lhe, em quadra tradicional, muito antes que ela soubesse a primeira palavra, uma pergunta que, tantos anos depois, continua sem resposta:

 

  Guardo só uma pergunta,

  neste mundo agreste e louco:

  Como se pode amar tanto

  quem se conhece há tão pouco?

 

A resposta nunca foi necessária. Nunca vai ser. É aquela eterna pergunta de retórica. Que acompanhou a minha alma, à medida que o bebé de colo aprendia a gatinhar, a andar, a fazer travessuras, a dançar, a falar, a viver...

 

Quando ela começou a crescer, a tonalidade da tez era clarinha e luzente. Adornada com olhos azuis, que se iam transfigurando em verdes, tomando uma tonalidade indefinida que faz lembrar dois pequenos planetas no centro da face perfeita. Emoldurada pelos caracóis loucos – que viriam a ser puxados, esticados, pintados de azul ou de outros tons de fantasia.

 

Perdi a conta ao número de dias em que a levei para a sala de aula, para que não esperasse tanto tempo pela educadora. E perdi a conta ao número de vezes em que corri, no segundo toque, porque era difícil deixá-la na pré, ainda que fosse o mesmo edifício, um piso acima. Olhar para ela sempre me fez ter aquele compassozinho de espera no coração. Pequenas mortes felizes e cheias de orgulho. Cheias de vida.

 

Então, um dia, ela pegou na mochila. Cheia de sonhos sobre o futuro, embora se lesse claramente, no livro do colégio, que a única coisa que queria ser quando fosse grande era pequenina. Pegou nos livros. Pegou nos cadernos. Pegou na sua mente povoada pela magia da Disney e as histórias da Floribela e da Barbie. Pegou em si, com as duas pernas, sem precisar dos meus braços. Foi ser uma aluna incrível. Foi ser uma bailarina que se destaca num grupo de dezenas. Foi ser uma adolescente apaixonada pelo mundo. Foi transformar-se numa mulher inexplicavelmente boa. Foi ser uma estudante distinta e um ser humano como existem muito poucos... E começou naquele dia, quando, pegando na mochila pesada sem ajuda, caminhando nos seus próprios passos, ela me obrigou a fazer o movimento mais difícil de todos.

 

 

 

Sei que os bailarinos vão dizer que é o Demi-plié. E os ginastas vão dizer que é Salto Mortal de Produnova. Os aficionados pelo Crossfit falarão do Handstand Walk. E os da calistenia do Manna. Mas eu posso assegurar. Há um movimento mais difícil. Um movimento que é um milhão de vezes mais difícil: abrir mão e deixar ir.

 

É difícil. Tão complicado que é como se os músculos e ossos do corpo doessem e os ossos e músculos da alma também. Exige uma flexibilidade que não temos e uma vontade que não existe. Mas, como todas as coisas difíceis, dá frutos...

 

 

Ela é uma parte de mim a ser melhor do que eu. E ainda tenho a sensação da bebé que carreguei em braços. Ainda a vejo na mulher que sorri e chora e se dá aos outros. Lembro-me sempre de que, com ela, tive de fazer o movimento mais difícil de todos. De aceitar que não sou mais do que uma pequena peça de um percurso que ela soube fazer com passos indiscutivelmente certos.

 

Olho o céu e sei que não estive só nesse movimento difícil, que acabou por torná-la tão perfeita quanto sempre soubemos que ela era. E, quando a pergunta ressoa, a resposta é evidente. Faria o mesmo outra vez, rasgando músculos e partindo ossos do corpo e da alma, porque – deuses – que orgulho é ter feito parte desta história. Que orgulho é ter estado lá no dia em que ela pegou na mochila, abriu as asas, e se tornou tudo aquilo que é.

 

 

O movimento mais difícil é abrir mão...

 

... contrariada, abri... ainda bem!

 

 

(mas – se precisares - terás sempre colo onde voltar!)


 Marina Ferraz





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