terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Ceia de Natal

 

Imagem retirada de Pixabay

Os meus avós casaram no dia de Natal. Então, quando o meu avô morreu, a minha avó caminhava lenta e desgostosa pela casa, escondendo as lágrimas atrás de desculpas simples. Choram-me os olhos e não sei porquê, dizia.

Os olhos choravam-lhe de saudade. Os olhos choravam-lhe de tristeza. As lágrimas eram ornamento triste dos pratos da consoada, regando-os com o sal da alma.

 

Ano após ano, a mesma alergia à falta que ele fazia lhe regava os olhos.

Ano após ano, até ao ano em que também ela não estava para celebrar em lágrimas a quadra do seu matrimónio.

 

Ao redor da mesa, sentamo-nos ainda. Temos o nosso mundo, esse do privilégio, servido nos pratos. Uma dose de desarmonia política e de perguntas inconvenientes. Duas pitadas de piadas descontextualizadas. Bacalhau, batatas e couve cozida. Doces para uma legião. Leitores de clássicos e de fast food literário. Um menu cheio de neurodivergências. E a memória.

 

Sou melhor a conter as lágrimas do que a minha avó era. Ela chorava por dois motivos: por tudo e por nada. Eu guardo-me para o nada. Mas a realidade do mundo é esse nada.

 

Vazios estão três lugares na minha ceia. O do meu avô. O da minha avó. O da esperança.

 

A esperança costumava sentar-se entre eles, onde havia calor. Era ela que amenizava o peso do privilégio, acreditando que se encontraria solução para a guerra e a fome. Era ela que harmonizava as conversas e tirava densidade à paródia funesta e negra. Era ela que sugeria novas obras, que agradassem a leitores e pseudo-leitores.

 

Fico a pensar se a esperança morreu para todos ou só para mim. Mas ninguém lhe serve o prato. E o Bolo-Rei está inteiro. Ela era a única que gostava de Bolo-Rei!

 

Talvez, penso, a esperança tenha morrido só para mim. Talvez porque eu tenha crescido e já não queira saber de prendas, ou sequer goste de as receber.

 

Hoje, passei pelo presépio. O dos imigrantes. O do puto nu na manjedoura. Parei e disse-lhe. Não cresças. A vida é tão difícil e tão dura, que acabarás como todos nós. A carregar a própria cruz em que hás de morrer. Com toda a gente a olhar e sem ninguém dar conta.

 

E depois, pagã como sou – de fé e vida – espantei-me ao perceber que o lugar mais vazio da mesa é o meu. Que desapareço, roída por cada desalento, um bocadinho todos os anos.

 

O que não tenho em hipocrisia, sobra-me em desalento.

Não olhem para mim agora.

Choram-me os olhos e não sei porquê.


Marina Ferraz



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