Ela era assim: uma força bruta da natureza, enfiada pelo
destino num corpo esguio e frágil. Ninguém a entendia e ela não entendia
ninguém. Mas quando falava sobre a vida... ah... quando falava sobre a vida
parecia que não havia nada que não entendesse. As pessoas podiam beber da sua
sabedoria ancestral, que vinha sabe-se lá de onde, permear a idade que ela não
tinha.
O seu sorriso abria-se por poucas coisas, embora toda a
gente a conhecesse a sorrir. É que os sorrisos, na sua maioria, eram mentiras
ensaiadas ao espelho. Viveu a maior parte da vida triste. E, quem o sabia,
habituou-se, por força da necessidade, a fingir que não o notava.
Se aqui estivesse diria: deixa as palavras bonitas para o
meu elogio fúnebre. Não acreditava em louvores. Passou a vida a achar que não
valia o tecto sob o qual se deitava nem as pedras sobre as quais caminhava. Mas
reivindicava para si mesma o direito ao sonho. Esse, achava que merecia. Foi
por ele que viveu. Foi nele que morreu. O sonho que se estendia pelas
ramificações da arte, do amor, da família. O sonho que lhe marcou, sob os
olhos, o negro das noites que passou acordada, fosse a escrever ou a chorar.
Ela foi uma boa pessoa. Uma boa amiga. Crente inabalável num
panteísmo velho e que ela não julgava gasto. Reduzia a religião aos princípios
da bondade. Reduzia as normas sociais aos princípios da liberdade. Reduzia tudo
ao mínimo denominador comum. Não queria ser igual aos outros mas também não
queria destacar-se. Cumpria o necessário para ser diferente... mas não demais. Parecia
um elefante numa loja de cristais, tentando desesperadamente não causar dano.
E, por entre a falta de jeito para se enquadrar e o desastre completo que
causava ao passar brevemente, feito furacão, nas vidas dos outros, ela deixava
uma aura de imperfeição que obrigava a sorrir. Era isso que a tornava perfeita.
Se aqui estivesse e me ouvisse falar, ela diria que as
minhas palavras eram um exagero. Que nunca foi perfeita. Que não queria ser
perfeita. Mas eu posso dizê-lo. Ela já não ouve. E, por alguma razão, sei que
não se importa de não ouvir.
Era, de entre todas as coisas, a mais peculiar: ela não
tinha medo da morte. Foi a única pessoa que conheci que não tinha medo da
morte. Sempre me pareceu que tinha mais medo da vida. E das pessoas. E até de si
mesma. Da morte não. Imaginei, ao longo de muitos anos, que ela tinha feito um
qualquer pacto de irmandade com a velha ceifeira ao longo das muitas vidas que
a sua alma velha certamente experienciou. Imaginei que se tinham tornado
amigas. Que ansiavam por se ver. Da morte, falava com paixão e encantamento.
Chamava-lhe irmã. Dizia que iria com ela, em qualquer momento, num piscar de
olhos.
Cumpriu a promessa. Foi. Mas não tem a ver com a ida. Não
tem a ver com o que foi levado, roubado, usurpado. Tem a ver com o que ficou.
Para trás não deixou a tristeza, a estranheza, a desolação. Deixou antes o que
havia de mais belo em si. Sabedoria. Poemas. Textos. Coisas das quais nem mesmo
ela conhecia o valor.
No mundo, deixou um pedaço de si.
Em mim, deixou a saudade.
Voou com os pássaros. E imagino que agora, finalmente, está
feliz.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet