terça-feira, 28 de julho de 2015

Homenagem póstuma



Ela era assim: uma força bruta da natureza, enfiada pelo destino num corpo esguio e frágil. Ninguém a entendia e ela não entendia ninguém. Mas quando falava sobre a vida... ah... quando falava sobre a vida parecia que não havia nada que não entendesse. As pessoas podiam beber da sua sabedoria ancestral, que vinha sabe-se lá de onde, permear a idade que ela não tinha.

O seu sorriso abria-se por poucas coisas, embora toda a gente a conhecesse a sorrir. É que os sorrisos, na sua maioria, eram mentiras ensaiadas ao espelho. Viveu a maior parte da vida triste. E, quem o sabia, habituou-se, por força da necessidade, a fingir que não o notava.

Se aqui estivesse diria: deixa as palavras bonitas para o meu elogio fúnebre. Não acreditava em louvores. Passou a vida a achar que não valia o tecto sob o qual se deitava nem as pedras sobre as quais caminhava. Mas reivindicava para si mesma o direito ao sonho. Esse, achava que merecia. Foi por ele que viveu. Foi nele que morreu. O sonho que se estendia pelas ramificações da arte, do amor, da família. O sonho que lhe marcou, sob os olhos, o negro das noites que passou acordada, fosse a escrever ou a chorar.

Ela foi uma boa pessoa. Uma boa amiga. Crente inabalável num panteísmo velho e que ela não julgava gasto. Reduzia a religião aos princípios da bondade. Reduzia as normas sociais aos princípios da liberdade. Reduzia tudo ao mínimo denominador comum. Não queria ser igual aos outros mas também não queria destacar-se. Cumpria o necessário para ser diferente... mas não demais. Parecia um elefante numa loja de cristais, tentando desesperadamente não causar dano. E, por entre a falta de jeito para se enquadrar e o desastre completo que causava ao passar brevemente, feito furacão, nas vidas dos outros, ela deixava uma aura de imperfeição que obrigava a sorrir. Era isso que a tornava perfeita.

Se aqui estivesse e me ouvisse falar, ela diria que as minhas palavras eram um exagero. Que nunca foi perfeita. Que não queria ser perfeita. Mas eu posso dizê-lo. Ela já não ouve. E, por alguma razão, sei que não se importa de não ouvir.

Era, de entre todas as coisas, a mais peculiar: ela não tinha medo da morte. Foi a única pessoa que conheci que não tinha medo da morte. Sempre me pareceu que tinha mais medo da vida. E das pessoas. E até de si mesma. Da morte não. Imaginei, ao longo de muitos anos, que ela tinha feito um qualquer pacto de irmandade com a velha ceifeira ao longo das muitas vidas que a sua alma velha certamente experienciou. Imaginei que se tinham tornado amigas. Que ansiavam por se ver. Da morte, falava com paixão e encantamento. Chamava-lhe irmã. Dizia que iria com ela, em qualquer momento, num piscar de olhos.

Cumpriu a promessa. Foi. Mas não tem a ver com a ida. Não tem a ver com o que foi levado, roubado, usurpado. Tem a ver com o que ficou. Para trás não deixou a tristeza, a estranheza, a desolação. Deixou antes o que havia de mais belo em si. Sabedoria. Poemas. Textos. Coisas das quais nem mesmo ela conhecia o valor.

No mundo, deixou um pedaço de si.

Em mim, deixou a saudade.

Voou com os pássaros. E imagino que agora, finalmente, está feliz.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

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