Deste-me um beijo antes de partir. Plantaste-o no meu rosto,
casual como a noite que se punha agreste. E viraste costas. E foste. E eu
fiquei. Fiquei com um beijo dado no rosto. Uma promessa esquecida que nunca foi
dita. E apercebi-me, quando desapareceste, que me tinha esquecido, também eu,
de dizer muitas coisas. Tantas coisas.
No desaparecimento metálico e branco das suas costas por
entre as arcadas, eu descobri o peso do silêncio. Descobri que só existem tempos irregulares
nos verbos que não se conjugam. Espaços em branco por entre linhas pardacentas
onde nada pode ser construído. No desaparecimento do teu eu por entre um nós
que quebrara, eu soube que o sangue era fogo. Senti-o queimar nas veias. Nos
olhos. Na alma. Devia ter-te dito.
Devia ter-te dito que te odeio. Naquele momento. Olhos nos
olhos. Mala na mão. Avião à espera. Pois que esperasse. Devia ter-te dito.
Devia ter-te explicado, de forma detalhada e irrevogável, o quanto te odeio.
Não disse. Talvez nunca diga. Mas é verdade.
Odeio a maneira como te conheci. No metro. Por entre a
sujidade que as pessoas fazem e a sujidade que elas trazem. Nas mãos. No olhar.
Nos silêncios. Odeio ter-te conhecido por entre a sujidade do metro. Odeio que
a tua primeira frase tenha sido "com licença". Odeio tenhas esbarrado
em mim e entornado metade do café morno em cima do meu vestido, logo pela
manhã. Odeio que te tenhas rido enquanto pedias desculpa e que tenhas deixado o teu
nome e número de telefone no verso de um talão de mercearia com a desculpa de
que pagarias a lavandaria. Odeio-te.
Odeio a maneira como me encontraste na rua e reclamaste por
nunca te ter ligado, como se tivesse obrigação de o ter feito. Odeio a forma
como me obrigaste a faltar a um exame da faculdade para ir beber café contigo e
como, no final, te apercebeste que não tinhas a carteira e me fizeste pagar do
meu bolso. Odeio que tenhas ficado com o meu número e que me tenhas prometido
que ias ligar. Odeio que tenhas cumprido a promessa passado dez minutos.
Odeio-te.
Odeio que me tenhas levado a um concerto de Free Jazz no nosso primeiro encontro oficial. E a maneira como, olhando para o meu nariz
torcido, me disseste que os melhores gostos não são inatos. Odeio que me tenhas
tratado como uma criança a noite toda, impedindo-me de beber álcool, enquanto
fazias deslizar cerveja pela garganta como se fosse água. Odeio que não me
tenhas apresentado a nenhum dos teus amigos com a pretensa desculpa do ciúme
mas que, mesmo assim, me tenhas desfilado pelas ruas, orgulhoso, como se fosse
um troféu. Odeio que me tenhas beijado pela primeira vez ao lado de um caixote
do lixo, depois de teres roubado uma flor a um dos senhores marroquinos que
deambulava por ali. Odeio-te.
Odeio que tenhas publicado nas redes sociais que estávamos
numa relação antes de teres falado comigo. E que tenhas dito aos teus pais que
tinhas conhecido "a tal", antes de eu sequer saber se te amava. Odeio
que te importasses com detalhes e que corrigisses constantemente aquela madeixa
do meu cabelo que cai para o lado errado. Odeio que percebesses a minha
irritação, mesmo quando a escondia e que a acalmasses com um beijo na ponta do
nariz. Odeio que me desses as mãos em todo o lado. Odeio que as tenhas notado
vazias e que nelas tenhas depositado um anel e um pedido cheio de palavras de amor.
Odeio que me tenhas feito sentir vontade de te dizer que sim. Odeio-te.
Odeio que me tenhas feito deixar a casa dos meus pais para
ir viver contigo. A maneira como insistias em levantar-te da cama sem eu dar
conta para me fazeres o pequeno-almoço e mo levares pela alvorada. Odeio a
maneira como olhavas para mim, sem maquilhagem e com o cabelo todo desgrenhado
e enfatizavas o quão bonita eu estava. E a forma deitavas a cabeça no meu colo
e me dizias que era dia de ficar doente e faltar ao trabalho porque querias
fazer amor comigo o dia todo. Odeio-te.
Odeio que tenhas recebido um telefonema. Odeio que tenhas
ouvido o que te disseram. Odeio que não tenhas decidido sozinho e que tenhas
feito passar por mim essa deliberação que te levou. Odeio que tenhas dito que
preferias ficar e que me tenhas obrigado a dizer-te que não. Odeio as palavras
que me fizeste dizer: "é o teu sonho e é só por uns anos... vai!".
Odeio que me tenhas dado ouvidos, como sempre. Odeio que tenhas ido.
Devia ter-te dito! Devia ter-te dito como odeio cada uma
destas coisas. Mas, acima de tudo, devia ter-te dito que te odeio por me teres
beijado o rosto. Por teres virado costas. Por teres ido embora. Por não me teres
dito para ir. Por teres respeitado os meus projectos e sonhos. Por me teres
deixado para trás.
Odeio-te porque te amo. E dói tudo em mim. O ódio e o
amor...
Devia ter-te dito. Não disse. Ainda não disse. Por favor
volta, meu amor. Esqueci-me de te dizer que te odeio.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da internet
Nossa,não tenho palavras para descrever esse texto,senti-me na pele da que nos fala e sofri com ela por cada ódio.Muitas vezes isso acontece,esse fato de gostarmos tanto que odiamos,porque na ausência é que se sente mais.
ResponderEliminarMeu trecho preferido "Descobri que só existem tempos irregulares nos verbos que não se conjugam. Espaços em branco por entre linhas pardacentas onde nada pode ser construído."
Parabéns querida :D
Beijinhos Jenny ^.^
PS:Tenho estado tão ocupada,mas leio todos os textos,só não comento.Você é sempre incrível na escrita,tenho amado cada e todo texto publicado,acho que nem terei como escolher um preferido apenas ehehe. :* <3