terça-feira, 15 de julho de 2025

A palavra difícil

 

Imagem gerada por I.A.

Apodítico, exórdio, prosápia ou ubérrimo. Incentivo-vos a abrir um dicionário a sério. Daqueles clássicos, feitos de uma tecnologia intemporal chamada papel. Incentivo-vos a folhear esse dicionário – por favor, sem o desfolharem! – e a beberem, não tanto o significado de palavras como as que iniciam este texto, mas a variedade de vocábulos similares. Raros. Difíceis na língua e no entendimento. Incentivo-vos a descobrirem, entre as palavras que saem à rua, aquelas que ficam nas bibliotecas, nas prateleiras, sentindo-se inúteis. Devem ser mulheres, porque dizem que são difíceis...

 

Às vezes, eu abro o dicionário para olhar para elas. Peço-lhes desculpa. Apresento-me àquelas que ainda não conheço. Algumas são pedantes e não me respondem, porque o meu nome é simples. Entendo-as. Quem é renegado raramente confia nas vozes brandas, com medo do abandono ou da traição... Outras, ainda assim, atraem-me, cativam-me. Dizem-me para lhes conhecer os sentidos. De todas, no entanto, recebo o mesmo queixume. Aprenderam sobre si próprias que são difíceis. E é então, ao ouvir esse lamuriar, que me sento no trono de azulejo do chão da casa e inicio o monólogo.

 

A palavra mais difícil do dicionário sai à rua. Prostitui-se na boca de toda a gente. Imprime-se em cartazes políticos, grita-se nas altas instituições e nas tabernas. Nas escolas e nos jardins. Nas casas de família, sejam as famílias tradicionais, monoparentais ou queer. Essa palavra é de entoação básica, curta para não atrapalhar a vocalização, rápida para não gastar o precioso tempo de uma geração digital, permanentemente ocupada com merda nenhuma. Vem no dicionário, mas desconfio que ninguém alguma vez a procurou, porque uma criança a usa entre as cinco primeiras que aprende, quando não calha ser logo a primeira, para desanimar mãe, pai, avó e avô, que tanto fizeram para soltar a língua do petiz com a comprovada evidência vocal de que são os grandes favoritos do bebé. A palavra mais difícil do dicionário não é, portanto, difícil de conhecer, difícil de dizer, difícil de identificar. Mas – vá-se entender – todos os dias deseja ser antes uma espécie de apodítico, exórdio, prosápia ou ubérrimo, para que se justifique a falta de entendimento.

 

Por esta hora, estão as palavras todas do dicionário na página aberta, focadas em mim, que sou só uma desinteressante Marina – “local, dentro de um porto, dotado de vários cais e de instalações de apoio, destinado ao estacionamento e abrigo de pequenas e médias embarcações, geralmente barcos de recreio” – tentando descobrir do que estou eu a falar. Mas as palavras são como cerejas, já lá dizia a minha avó. E continuo a verborreia.

 

A palavra mais difícil da língua portuguesa não é longa ou técnica. Não exige um conhecimento lexical profundo, nem qualquer perícia semântica. Não é extravagante, exagerada, fácil de ser confundida com outras, seca ou estranha. Não usa letras estrangeiras. Não tem acentuação incomum. Não.

 

As palavras do dicionário estão agora aos pulos de curiosidade. Sorrio-lhes. Continuo:

 

Exatamente! Como vocês, que ainda não perceberam que vos dei já a resposta. Não. É essa a resposta. Não. E ainda me irão explicar um dia como é que da pessoa mais simples à mais erudita se mantém esta imensa dificuldade de ouvir, dizer, entender e respeitar o “não”.

Porque desconfio que se o “não” fosse fácil, teríamos menos violações, violência e assassinatos. Teríamos mais vozes a dizer “não” ao racismo, à xenofobia, à guerra, à precariedade. Haveria manifestações que levariam a palavra na bandeira. Pessoas exaustas que o diriam aos amigos e amantes nos dias em que, simplesmente, é melhor ficar em casa. Mas não. Não se diz o não. Não se entende o não, mesmo quando alguém o diz.

 

Apodítico, exórdio, prosápia ou ubérrimo, assim como outros irmãos de elevada complexidade podem dormir em paz. São palavras que vivem felizes no anonimato. O “não” é um sem-abrigo. Palavra de rua. Tantas vezes inaudito. Tantas vezes dito e ignorado. Tantas vezes dito e contestado. Tantas vezes violado e maltratado. Tantas vezes sacrificado. Tantas vezes desrespeitado. É uma palavra difícil. Verdadeiramente difícil.

 

É por isso que, quando a uso, se a insistência vem, acrescento: abre um dicionário a sério. Daqueles clássicos, feitos de uma tecnologia intemporal chamada papel. Folheia-o – por favor, sem o desfolhares! – vai até ao “N” e vê se entendes que não é não. Mas efetiva, verdadeira e realmente! Afinal, nem todos somos um partido político, para pôr um “a menos que” no fim de todo e qualquer advérbio!

Marina Ferraz




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