terça-feira, 31 de maio de 2022

A beleza da palavra «foda-se»

 e a sublime liberdade que é usá-la no momento certo




 Tenho para mim que uma das palavras mais bonitas da língua portuguesa é, em simultâneo, uma que mais usamos e renegamos.

 

Facilmente veremos uma mãe a dar uma palmadinha na mão do filho que o diz, diretamente antes de a usar para reclamar da vida numa situação mundana. Um contrassenso! E um contrassenso escusado, se quiserem a minha opinião. Versátil. De uso comum. Simples e eficaz em situações diversas, a palavra não devia ser assim menosprezada, censurada, penalizada… Haja quem entenda! Nunca lhe é dado o devido valor!

 

Falo do foda-se, sim! Interjeição. Trejeito. Exclamação. Expressão de indignação. Clamor. Enunciação. Admiração. Desabafo. Surpresa. Confissão. Desagrado. Desejo. Vontade. Insulto. Enfim... pontuação.

 

Deve ser uma das palavras mais versáteis da língua portuguesa, uma das mais úteis e uma que guarda para si um toque de requinte quando e se usada da forma correta e no momento ideal.

 

Soltar um foda-se ao vento quando o trânsito não anda no único dia em que tínhamos de chegar a horas, quando salgamos a comida no dia em que recebemos visitas ou quando as nossas calças de ganga favoritas já não apertam. Ou fazê-lo na cara quando alguém amplamente idiota que insiste em nos dar sermões sobre coisas que não lhe dizem respeito. Ou quando é o último dia para a entrega do IRS e a página das Autoridade Tributária nos dá a rodinha incessante, avisando que está a processar (sendo que não está a processar porra nenhuma). É humano, catártico, digno de honras. Se o Marcelo soubesse, já teria, provavelmente, condecorado a palavra, para que o destaque merecido lhe fosse dado entre a nata da nata portuguesa.

 

Há uma certa beleza em usar a palavra foda-se. Mesmo quando é só porque batemos com o mindinho do pé no canto do móvel. E uma necessidade maior de o usar quando vemos documentários como o Para Sama, tomando contacto com Alepo e descobrindo que o mundo sai das fronteiras dos nossos umbigos. Ou quando os partidos fascistas começam a ganhar destaque na maioria dos países, com os seus ditadores acéfalos a dizer merda em horário nobre...

 

E, deuses!, é muito preciso que se diga foda-se a uma ou outra pessoa que nos trava os caminhos para o bem-estar... e se essa pessoa formos nós, é preciso que o digamos mentalmente, deixando a vida seguir o seu curso e ser o que for.

 

 

Todos os foda-se servem um propósito e é por isso que esta é uma palavra tão bonita e que defendo com tanto afinco.

 

Mas há aquele foda-se. Aquele que sai no momento exato. Com a capacidade de mudar vidas para sempre. De libertar almas. De promover a libertação.  E isto já nem tem só a ver com a palavra mas com a sublime liberdade que nasce de a usarmos no momento certo. É melhor do que um medicamento. Melhor do que uma vacina. Salva vidas. Essa arte de dizer foda-se quando dizer foda-se é a única coisa sã a fazer.

 

Sem dúvida, é hora de deixar de dar palmadinhas na mão das crianças que repetem, sem pensar nem perceber, uma palavra que tanto serve os adultos. É uma palavra de beleza indiscutível e com uma plasticidade que poucas oferecem. Seria a Miss Universo do dicionário, caso o concurso existisse. E ganharia, certamente, dizendo que quer promover a paz mundial. Não por estereótipo. Por ser verdade...

 

 

E sim, eu sei que algumas almas mais afetadas e conservadoras vão achar que este texto era escusado. A opinião é livre. Pensem o que quiserem. Foda-se.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 24 de maio de 2022

Sala sem subterfúgio

 


Fotografia de Rui Barroso

Foda-se!

 

Seria capaz de me sentar contigo. Sem televisão. Sem música. Sem telemóvel. Só tu e eu. Sem livros. Sem paisagens bonitas... sem janelas, sequer! Sem pessoas na mesa ao lado, a comentar a atualidade da vida e do mundo. Só tu e eu. Numa sala sem subterfúgio.

 

Olharia dentro dos teus olhos. Longamente. E deixaria que olhasses dentro dos meus. Dos olhos. Da alma. Dos espelhos da alma, que invertem e mancham as perfeições todas do imaginário. Olharíamos só. Demoradamente. Para sempre. Nunca me cansei dos teus olhos. Nunca me cansaria dos teus olhos. Nunca me cansei das tuas conversas e nunca cansaria... E muito menos do teu riso. Esse, que acentua as ruguinhas breves que te emolduram os olhos. Aí, nessas portadas de céu e infinito do teu olhar...

 

Penso. Numa sala sem subterfúgio. E soa perfeito. Se fores tu e eu. Só tu e eu.

 

 

 

As pessoas sabem pouco sobre o amor. Desde que o amor passou a englobar todas as palavras. As pessoas sabem pouco sobre o amor.

 

É natural! Quando o amor se faz com swipe right. Os jeitinhos sentimentais são extrapolados. O sentido de posse determina os sentimentos. A presença é pimenta nos sentidos, que se esquecem – sem sabor – na distância. É natural que saibam pouco... que não saibam nada sobre o amor! Quando o amor se faz... – que expressão tão estúpida “fazer amor”! Se o amor se fizesse, também se desfazia. E depois?! Não era amor... não é amor...

 

Perdoem-me. Não acredito no amor da maioria. Nem na maioria dos humanos que fala de amor. Nem que exista algo de humano na maioria das pessoas que conspurca a palavra. Sinto bafio agarrado ao amor de muitos. E ignorância. E sinto-os – entendam – pelo abuso do “ter”, do “querer”, do “eterno”, do “estar”, da “fidelidade”. Como se amar tivesse algo de posse, de egoísmo, de comparência ou de castidade-patriarcalmente-instituída...

 

O amor em que eu acredito é aquele no qual as pessoas podem sentar-se. Sem mais nada. Numa sala sem subterfúgio. Olhar nos olhos do outro, sem estranheza. Não sentir falta de mais nada. Não precisar de pousar olhos em elementos externos, nem de deixar a mente vagar por pensamentos distantes. Estar.

 

O amor em que eu acredito é aquele no qual uma pessoa pode sentar-se sozinha. Sem mais nada. Numa sala sem subterfúgio. Sem que o outro esteja, se ele não quiser estar... Sentindo-lhe a falta. Mas sabendo largar, libertar. Desejar-lhe a felicidade e estar em paz.

 

 

Foda-se.

 

Seria capaz de me sentar contigo. Sem televisão. Sem música. Sem telemóvel. Sem livros. Sem paisagens bonitas... sem janelas, sequer! Só tu e eu. Numa sala sem subterfúgio. Mas, meu amor. Também sou capaz. De me sentar sozinha nela, para não atrapalhar o curso dos teus dias.

 

Ficarei. Imaginando, sem ver, o teu sorriso, que acentua as ruguinhas breves que te emolduram os olhos. E, de imaginar-te assim. A sorrir. Essa sala sem subterfúgio soa perfeita. Porque posso ser só eu. Eu nessa sala. Se tu fores feliz.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 17 de maio de 2022

 


Há um relógio no corredor. Com laivos dourados. E um simples, redondo e branco, na casa de banho. E o do pulso, de metal. Os ponteiros marcam horas, minutos e segundos. Mas eu não noto que se importe com o tempo. Não quando estamos ali.

 

 

 

Há muitas histórias penduradas nos lábios que sorriem. E, quando sorri, enrugam-se-lhe mais os olhos, tão iguais aos da irmã. Às vezes, quando sorri, é como se ela sorrisse. E, como a amava mais do que a minha própria vida, sorrio também.

 

É leve e divertido. É inteligente e cativante. Sobre o amor tem histórias que descrevem o amor. Sobre o trabalho, aventuras de fazer corar as pedras da calçada. Há uma anedota e outra, ponteando a conversa. E memórias ocasionais, que lhe vertem dos olhos com saudosismo.

 

 

Éramos cinco. Diferentes como estes cinco dedos. Abre a mão para nos mostrar os dedos, na mão onde o relógio dá horas, sem que ele queira saber do tempo. Mas eu sou o mais diferente de todos.

 

Olhando para ele, recordo outras histórias. A do “maninho” que nasceu à minha avó, desavisada, que nem notara a gravidez da mãe. A das folhinhas de amoreira que ela pedia ao senhor Tomé, no Seminário, para que ele pudesse criar livremente os seus bichos-da-seda. Mas depressa me salta a memória para o chá, na mesa dos meus avós, com a tia a ouvir as anedotas que ele descreve picantes e a dizer, em uníssono com a minha avó: Oh Zé!

 

Sobreviveu a ambas. Talvez justamente pela sua forma jovial e ridente de viver os dias. Mas sente-lhes a falta. E lembra-as com um cuidado extremo, manuseando as memórias com um cuidado tal que parece acariciar pétalas de flores vivas, muito frágeis, muito sensíveis.

 

É um homem com dias cheios e feitos de gente. Toda a gente o conhece, porque ele se dá a toda a gente. Entrega o nome, essa relíquia de mãe e pai, graça de outros tempos, e usa-o para criar laços. No caderninho onde anota os contactos, existem funcionários de supermercado, amigos inusitados e médicos de todas as especialidades. Sempre privados. Ao hospital, ele que trabalhou em saúde, chama de matadouro.

 

Pensaríamos facilmente, pela lista de contactos vasta, que é um homem social. E é. Mas só o é até não ser, porque ninguém pense domar-lhe o espírito ou moê-lo para fazer farinha. Eu sou o que sou. Mas quando deixo de ser o que sou... nunca mais volto a ser o que sou. Palavras ditas à porta de um elevador. No rés-do-chão. Mostrando-lhe os alicerces que sustentam o Eu. Mas ele sabe. Eu sei. Sabemos todos. A sua alma mora na cobertura do edifício mais alto da cidade, onde é dona de muitas qualidades fora de época.

 

Bebemos um copo de vinho. Ele prefere os que têm a casta Syrah. Água é para que uma pessoa se afogue. Brincamos. Mas se for para afogar, que seja com a água de Penacova, que é mais filtrada. Chegamos à conclusão que a malha que me tece tem muito da dele. E sinto orgulho.

 

Todos os relógios param. O do pulso. O da casa de banho. O do corredor. Aquele pequenino e nunca referido que fica, azul, na sala. Todos param quando chego e voltam a correr quando saio.

 

 

 

Ele para o tempo. Faz viagens no tempo. Acorda fantasmas idos. Oh Zé... Faz previsões de eternidade. E toca-me na mão, levemente, para contar mais uma história, mais uma anedota, mais uma lembrança...

 

Saio de lá muito rica, depois do tempo parado. E gosto do meu nome na voz dele, mesmo na despedida. E do sorriso que me traz de volta outro olhar. Embriago-me de sensações.

 

Há um relógio no corredor. Com laivos dourados. E um simples, redondo e branco, na casa de banho. E o do pulso, de metal. E mais alguns que se espalham, aqui e ali, pela casa... Mas, realmente, eu nunca olho para eles. E ele também não. E sabem porquê? O tempo é curto demais para isso... e ficam sempre histórias por contar.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 10 de maio de 2022

Nódoas Negras

 

Fotografia e skate: ZX Boards


Comentávamos as minhas nódoas negras – ou a minha nódoa negra, na verdade, sendo que as tonalidades dos hematomas começavam a estender-se um pouco por todo o lado, formando uma mancha mais proeminente do que a pele saudável. E eu disse: não entendo, nem há nenhum movimento de impacto... Ela sorriu-me. Um sorriso repleto de sabedoria. Sabes, minha querida, às vezes não é do embate, é da repetição...

 

 

Impacto e repetição. Vamos. Passo a passo. A coreografia é improviso. É sempre improviso. Ninguém sabe, quando nasce, se passará mais tempo em pé, de joelhos ou de rojo no chão. Ninguém sabe, quando nasce, se cederá ou cansaço ou fará das quedas uma semente fértil para se erguer mais forte. Mas toda a gente sabe isto: no palco da vida, a dor é inevitável.

 

Marca-nos a alma. Com nódoas negras invisíveis para os outros. Primeiro, não nos importamos muito. Só dói quando carrego. Mas depressa se torna impossível um movimento sem toque. E muda o discurso. Ligeiramente. Quase de forma impercetível. Só dói... e carrego.

 

O luto. A doença inesperada. A perda do emprego. O adeus permanente dos para sempres que não duram. Podem até ser as piores dores de todas. Prego a fundo. Parede de cimento. Impacto. Chagas e desgostos impressos onde não se vê. Fingir que está tudo bem. Até estar. E acompanhar a nódoa negra, que vai desaparecendo...

 

A responsabilidade que nos fica pelo que não se controla é parca. Sentimos ser a peça movida pelo destino, no qual acreditamos ou não. Mas perdoamos facilmente a culpa que nunca tivemos. Porque não podíamos ter segurado os mortos, nem os empregos, nem os amores... As nódoas negras ganham tonalidades arroxeadas, depois acastanhadas, depois amareladas, até serem reticências ocasionais. Um dia, saram... ficam apenas as mazelas evidentes da memória, que visita de quando em vez, recordando-nos a dor. Fantasma de dor. Sombra de dor. Mas só. Já nem dói. Só parece que sim.

 

Mas nem tudo é impacto. Por vezes não é. Por vezes são as escolhas repetidamente erradas, levando-nos por caminhos que sabemos que não podem cumprir os desígnios da nossa alma. Repetição. O mesmo estímulo, a mesma resposta... e a imbecilidade de negar atempadamente a aprendizagem. Chagas e desgostos. Impressos. Também ocultos pelas camadas sadias de pele e carne e osso. Mas presentes. Alastrando. Aumentando centímetro a centímetro quando se insiste no que não nos merece a teimosia.

 

Controlamos. O tamanho, a forma, a cor dessa nódoa negra. Temos o livre arbítrio de travar o processo, de abrir o espaço da cura, de sarar. Frequentemente, ainda assim, repetimos. O mesmo padrão, que de tão familiar parece confortável; que de tão familiar parece certo. Um olhar sobre o espelho da alma facilmente nos diz que definhamos. Dorian Gray de nós mesmos, trazendo dentro tudo o que nós mesmos plantamos em nós, escolha a escolha.

 

As nódoas negras do impacto são quase sempre mais fortes... mas muito menos permanentes. Doem mais, mas menos tempo. As nódoas negras do impacto são inevitáveis. As da repetição, são opcionais.

 

 

Mostrei-lhe os meus joelhos massacrados. E eu disse: não entendo, nem há nenhum movimento de impacto... Ela sorriu-me. Um sorriso repleto de sabedoria. Sabes, minha querida, às vezes não é do embate, é da repetição...

 

Sorri-lhe, em resposta. E pensei. Não sobre a dança. Sobre a vida. Talvez seja hora de parar de repetir o que tão claramente magoa...

 

 Marina Ferraz





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terça-feira, 3 de maio de 2022

Lá. Longe.

 

Fotografia: João Vilaça *


Arde. Até te tocar a pele. Vazia e acinzentada. A-cinza-ntada. Mas não dás por nada. Arde. Frente a frente com o espetro dos teus olhos mudos. Na cegueira dos teus lábios fechados. Entreabertos. Sorvendo. O fumo. Mas como se inalasse os aromas do infinito.

 

Quem és? Onde estás? Agarras a incoerência das distâncias. É lá. Lá. Longe. Onde o tempo dos ponteiros se agita mais lento... e insistes que não estás lá.

 

Calma e sossego. O rosto calhoado das mulheres atrás do hijab. Paz e contentamento. A explosão dos mísseis em Severodonetsk, em Kiev, em Alepo, em Erbil. Serenidade e mansidão. E meninas, crianças, grávidas de soldados e sacerdotes. Placidez e impassividade. E costelas à vista, nos olhos dos abutres, estadistas e aves e milionários cegos. Descanso e inação. A fila interminável para a comida racionada, para a fuga, para a morte... Respiras. É lá. Lá. Longe.

 

Fica aí. Esticas o corpo na delonga, que difícil, para ti, define o levantar da cama. Queixas-te da dor do corpo depois do ginásio. Defines impossível a posição do Pilates. E tartamudeias o queixume na fila para entrar no estádio de futebol, agitado pelos cânticos dos rivais.

 

Arde. Até te tocar a pele. Mas tens a dose certa de anestesia. O som baixinho da televisão, com imagens cautelosamente selecionadas para que não penses. As frases ocas dos livros que te recomendam nos programas de day time. Centros comerciais. Promoções. Saldos. Jogos de futebol. Concertos de artistas reconhecidos. Tens a dose certa de anestesia. Arde. Até tocar a pele. Mas o epicentro do mundo está no centro do teu ventre e não te liga já nem à tua mãe... quanto mais ao mundo.

 

Arde. Arde como arde, nos meus olhos, a tua apatia louca. O som da bomba abafa o som dos teus batimentos cardíacos. Não sei se tens coração.

 

Arde. Quando vais parar de olhar dentro? Quando vais perceber? É que, acredita, um dia... simplesmente... ardeu!

 

 Marina Ferraz





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*Texto criado especificamente para a memória descritiva 

do projeto deste fotógrafo, onde a foto apresentada se inclui.