Comentávamos as minhas nódoas
negras – ou a minha nódoa negra, na verdade, sendo que as tonalidades dos
hematomas começavam a estender-se um pouco por todo o lado, formando uma mancha
mais proeminente do que a pele saudável. E eu disse: não entendo, nem há nenhum movimento de impacto... Ela sorriu-me.
Um sorriso repleto de sabedoria. Sabes,
minha querida, às vezes não é do embate, é da repetição...
Impacto e repetição. Vamos. Passo a passo. A coreografia é improviso. É sempre improviso. Ninguém sabe, quando nasce, se passará mais tempo em pé, de joelhos ou de rojo no chão. Ninguém sabe, quando nasce, se cederá ou cansaço ou fará das quedas uma semente fértil para se erguer mais forte. Mas toda a gente sabe isto: no palco da vida, a dor é inevitável.
Marca-nos a alma. Com nódoas
negras invisíveis para os outros. Primeiro, não nos importamos muito. Só dói quando carrego. Mas depressa se
torna impossível um movimento sem toque. E muda o discurso. Ligeiramente. Quase
de forma impercetível. Só dói... e
carrego.
O luto. A doença inesperada. A perda do emprego. O adeus permanente dos para sempres que não duram. Podem até ser as piores dores de todas. Prego a fundo. Parede de cimento. Impacto. Chagas e desgostos impressos onde não se vê. Fingir que está tudo bem. Até estar. E acompanhar a nódoa negra, que vai desaparecendo...
A responsabilidade que nos fica pelo que não se controla é parca. Sentimos ser a peça movida pelo destino, no qual acreditamos ou não. Mas perdoamos facilmente a culpa que nunca tivemos. Porque não podíamos ter segurado os mortos, nem os empregos, nem os amores... As nódoas negras ganham tonalidades arroxeadas, depois acastanhadas, depois amareladas, até serem reticências ocasionais. Um dia, saram... ficam apenas as mazelas evidentes da memória, que visita de quando em vez, recordando-nos a dor. Fantasma de dor. Sombra de dor. Mas só. Já nem dói. Só parece que sim.
Mas nem tudo é impacto. Por vezes não é. Por vezes são as escolhas repetidamente erradas, levando-nos por caminhos que sabemos que não podem cumprir os desígnios da nossa alma. Repetição. O mesmo estímulo, a mesma resposta... e a imbecilidade de negar atempadamente a aprendizagem. Chagas e desgostos. Impressos. Também ocultos pelas camadas sadias de pele e carne e osso. Mas presentes. Alastrando. Aumentando centímetro a centímetro quando se insiste no que não nos merece a teimosia.
Controlamos. O tamanho, a forma, a cor dessa nódoa negra. Temos o livre arbítrio de travar o processo, de abrir o espaço da cura, de sarar. Frequentemente, ainda assim, repetimos. O mesmo padrão, que de tão familiar parece confortável; que de tão familiar parece certo. Um olhar sobre o espelho da alma facilmente nos diz que definhamos. Dorian Gray de nós mesmos, trazendo dentro tudo o que nós mesmos plantamos em nós, escolha a escolha.
As nódoas negras do impacto são quase sempre mais fortes... mas muito menos permanentes. Doem mais, mas menos tempo. As nódoas negras do impacto são inevitáveis. As da repetição, são opcionais.
Mostrei-lhe os meus joelhos
massacrados. E eu disse: não entendo, nem
há nenhum movimento de impacto... Ela sorriu-me. Um sorriso repleto de
sabedoria. Sabes, minha querida, às vezes
não é do embate, é da repetição...
Sorri-lhe, em resposta. E pensei. Não sobre a dança. Sobre a vida. Talvez seja hora de parar de repetir o que tão claramente magoa...
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